Ao acordar na manhã seguinte, meu primeiro pensamento foi para a aula de Elohkar. Havia uma agitação em meu estômago. Após longos meses tentando conseguir que o Nomeador-Mor me desse aulas, eu finalmente teria a chance de estudar denominação. Magia de verdade. Magia do Grande Valoran.
Mas o trabalho vinha antes da diversão. A aula de Elohkar seria apenas ao meio-dia. Com a dívida com Devi pairando sobre a minha cabeça, eu precisava encaixar umas duas horas de trabalho na Ficiaria.
Ao entrar na oficina do Kelvin, a barulheira familiar de meia centena de mãos atarefadas inundou-me feito música. Embora fosse um lugar perigoso, eu achava a oficina estranhamente relaxante. Muitos alunos se ressentiam de minha ascensão rápida nas fileiras do Arcano, mas eu tinha conquistado um respeito relutante da maioria dos outros artífices.
Vi Monet trabalhando perto das fornalhas e comecei a me esgueirar por entre as bancadas agitadas em direção a ele. Monet sempre sabia qual dos trabalhos pagava melhor.
— Vanitas!
O enorme salão aquietou-se e, ao me virar, vi Mestre Kelvin parado à porta de seu gabinete. Ele fez um gesto seco para me chamar e entrou novamente no aposento.
O som encheu a oficina aos poucos, à medida que os estudantes retomaram o trabalho, mas senti seus olhos pousados em mim quando atravessei o salão, serpeando por entre as bancadas.
Ao me aproximar, vi Kelvin pelo janelão de seu gabinete, escrevendo numa lousa montada na parede. Ele era 15 centímetros mais alto que eu, com um tronco que parecia um barril. Sua enorme barba hirsuta e os olhos negros faziam-no parecer ainda maior do que realmente era.
Bati educadamente no batente da porta e Kelvin se virou, pousando o giz.
— A'scor Vanitas. Entre. Feche a porta.
Ansioso, entrei na sala e bati a porta. O vozerio e o estrépito da oficina cessaram tão completamente que imaginei que Kelvin devia ter instalado alguma siglística engenhosa para abafar o ruído. O resultado era um silêncio quase sobrenatural no gabinete.
Kelvin pegou um pedaço de papel num canto de sua bancada.
— Ouvi uma coisa inquietante. Dias atrás, uma garota esteve no Estoque. Procurava um rapaz que lhe vendera um amuleto — disse e me olhou nos olhos. — Sabe alguma coisa a esse respeito?
Balancei a cabeça.
— O que ela queria? — perguntei.
— Não sabemos — respondeu Kelvin. — O A'lun Basil estava trabalhando no Estoque na ocasião. Disse que a moça era jovem e parecia muito aflita. Estava à procura de... — deu uma espiada no papel — um jovem mago. Não sabia o nome dele, mas descreveu-o como jovem, de cabelos brancos e bonito.
Kelvin baixou o pedaço de papel e prosseguiu:
— O Basil disse que ela foi ficando cada vez mais agitada enquanto os dois falavam. Parecia assustada e, quando ele tentou obter seu nome, ela saiu correndo, em lágrimas. — Cruzou os braços enormes sobre o peito, com o rosto severo. — Portanto, eu lhe pergunto sem rodeios: você anda vendendo amuletos a moças?
A pergunta me apanhou de surpresa.
— Amuletos? — perguntei. — Amuletos para quê?
— Isso é o que você deveria me dizer — respondeu Kelvin, em tom sombrio. — Amuletos para trazer amor ou dar sorte. Para ajudar uma mulher a engravidar ou para prevenir o mesmo resultado. Amuletos contra demônios e coisas similares.
— Essas coisas podem ser feitas? — indaguei.
— Não — veio a resposta firme de Kelvin. — E é por isso que não os vendemos.
Seus olhos negros pousaram pesadamente em mim.
— Por isso, torno a lhe perguntar: você anda vendendo amuletos ao povo ignorante da cidade?
Eu estava tão despreparado para essa acusação que não consegui pensar em nada sensato para dizer em minha defesa. Então, dei-me conta do ridículo da coisa e caí na gargalhada.
Os olhos de Kelvin se estreitaram.
— Isto não é engraçado, A'scor Vanitas. Não apenas essas coisas são expressamente proibidas pela Academia, como um estudante que vendesse amuletos falsos... — interrompeu-se, balançando a cabeça. — Isso revela uma profunda falha de caráter.
— Mestre Kelvin, olhe para mim — falei, puxando um pedaço da camisa. — Se eu estivesse tapeando gente crédula da cidade para lhe tirar dinheiro, não teria que usar roupas de tecido caseiro e de segunda mão.
Kelvin deu uma olhada, como se notasse minha roupa pela primeira vez.
— É verdade — concordou. — Mas seria possível achar que um estudante com menos recursos ficasse mais tentado a praticar esses atos.
— Pensei nisso — admiti. — Com um lumen de ferro e 10 minutos de siglística simples, eu poderia fazer um pingente que desse uma sensação fria ao ser tocado. Não seria difícil vender uma coisa dessas — observei, encolhendo os ombros. — Mas tenho plena ciência de que isso seria enquadrado como Provisão Fraudulenta. Eu não correria esse risco.
Kelvin franziu o cenho.
— Um membro do Arcano evita tais condutas por elas serem erradas, A'scor Vanitas. Não por serem arriscadas demais.
Dei-lhe um sorriso desesperançado.
— Mestre Kelvin, se o senhor tivesse tanta confiança na minha solidez moral, não estaríamos tendo esta conversa.
Houve um leve abrandar de sua expressão e ele me deu um sorrisinho.
— Reconheço que eu não esperaria isso de você. Mas já fui surpreendido antes. E eu seria relapso no meu dever se não investigasse essas coisas.
— Essa moça veio reclamar do amuleto? — perguntei.
Kelvin balançou a cabeça.
— Não. Como eu disse, ela não deixou nenhum recado. Mas não faço ideia de por que outra razão uma jovem aflita, carregando um amuleto, viria procurar você, sabendo a sua descrição, mas não o seu nome. — Ergueu uma sobrancelha para mim, transformando sua fala numa pergunta.
Dei um suspiro.
— Quer a minha opinião sincera, Mestre Kelvin?
Diante disso, ele ergueu as duas sobrancelhas.
— Sempre, A'scor Vanitas.
— Imagino que haja alguém tentando me meter em encrencas — afirmei. Comparado a me drogar com um veneno alquímico, espalhar boatos era praticamente uma conduta refinada em Drazno.
Kelvin meneou a cabeça, alisando distraidamente a barba com uma das mãos.
— Sim. Entendo.
Deu de ombros e pegou seu pedaço de giz.
— Bem, sendo assim, considero este assunto resolvido por ora.
Virou-se para a lousa e deu uma olhada para mim por cima do ombro.
- Espero não ser importunado por uma horda de mulheres grávidas, agitando pingentes de ferro e maldizendo seu nome, fui claro?
— Tomarei providências para evitar isso, Mestre Kelvin.