Passei algumas horas fazendo peças avulsas na Ficiaria, depois me dirigi à sala do Magnólio onde seria dada a aula de Elohkar. Estava marcada para começar ao meio-dia, mas fui o primeiro a chegar, com meia hora de antecedência.
Os outros alunos foram entrando aos poucos. Sete, ao todo. Primeiro chegou Marzus, meu rival amistoso da Simpatia Avançada. Depois veio Faela com Brim, uma moça bonita de uns 20 anos, de cabelo louro cortado como o de um garoto.
Conversamos e nos apresentamos. Jarrek era um sereniano tímido que eu tinha visto na Iátrica. Reconheci a jovem de vivos olhos azuis e cabelos cor de mel como Enyssa, mas demorei um pouco a me lembrar de onde a conhecia. Ela fora um dos inúmeros relacionamentos efêmeros do Leif. O último a chegar foi Aresh, de quase 30 anos, um A'vór diplomado. Sua tez e seu sotaque o assinalaram como proveniente da distante Lenat.
Soou a sineta do meio-dia, mas não se viu Elohkar em parte alguma.
Passaram-se cinco minutos. Depois, 10. Só ao meio-dia e meia o professor entrou na sala, como se nada houvesse acontecido, carregando uma braçada de papéis soltos. Largou-os numa mesa e começou a andar de um lado para outro, bem diante de nós.
— Diversas coisas devem ficar perfeitamente claras antes de começarmos — disse, sem nenhuma introdução nem pedido de desculpas pelo atraso. — Primeiro, vocês devem fazer o que eu mandar. Devem fazê-lo da melhor maneira possível, mesmo que não entendam as razões. Perguntar, tudo bem, mas no fim, eu mando e vocês obedecem. — Correu os olhos em volta. — Sim?
Assentimos com a cabeça ou murmuramos ruídos afirmativos.
— Segundo, vocês têm que acreditar em mim quando eu lhes disser certas coisas. Algumas coisas que eu digo podem não ser verdadeiras, mas vocês precisam acreditar nelas assim mesmo, até eu mandar que parem. — Olhou-nos um por um. — Sim?
Perguntei-me vagamente se ele começava todas as aulas daquele jeito. Elohkar notou a falta de afirmativa vinda de mim. Fuzilou-me com os olhos, irritado.
— Ainda não chegamos à parte difícil — declarou.
— Farei o melhor possível para tentar — respondi.
— Com respostas como essa, faremos de você um advogado num piscar de olhos — rebateu ele, em tom sarcástico. — Por que não fazer, simplesmente, em vez de fazer o melhor possível para tentar?
Balancei a cabeça. Isso pareceu acalmá-lo e ele tornou a se voltar para a classe em geral:
— Há duas coisas que vocês precisam lembrar. Primeiro, nossos nomes nos moldam e, por nossa vez, moldamos nossos nomes. — Parou de andar e nos fitou. — Segundo, até o nome mais simples é tão complexo que a mente de vocês não conseguiria nem começar a sentir seus limites, muito menos a compreendê-lo bem o bastante para proferi-lo.
Houve um longo silêncio. Elohkar esperou, encarando-nos.
Finalmente, Marzus mordeu a isca.
— Se é assim, como alguém pode ser nomeador?
— Boa pergunta — disse Elohkar. — A resposta óbvia é que não pode. Que até o mais simples dos nomes está muito além do nosso alcance. — Levantou uma das mãos. — Lembrem-se, não estou falando dos nomezinhos que usamos todos os dias. Os nomes designativos, como "árvore" e "fogo" e "pedra". Estou falando de algo inteiramente diferente.
Enfiou a mão num bolso e tirou um seixo rolado, liso e escuro.
— Descrevam a forma exata disto. Falem-me do peso e da pressão que o forjaram com areia e sedimentos. Digam-me como a luz se reflete nele. Digam-me como o mundo puxa sua massa, como o vento o envolve quando ele se movimenta pelo ar. Digam-me como seus vestígios de ferro sentirão o chamado de uma pedra-luden. Todas essas coisas e outras 100 mil compõem o nome desta pedra. — Estendeu-a para nós, esticando o braço. — Esta única, simples pedra.
Baixou a mão e nos fitou por um momento.
— Estão vendo como até esta simples coisa é complexa? — prosseguiu. — Se vocês a estudassem por um longo mês, talvez viessem a conhecê-la suficientemente bem para vislumbrar os contornos externos do seu nome. Talvez. Este é o problema enfrentado pelos números. Temos de compreender coisas que estão fora do alcance da nossa compreensão. Como é possível?
Não esperou resposta.
Em vez disso, pegou alguns dos papéis que havia trazido e entregou várias folhas a cada um de nós.
— Dentro de 20 minutos, vou jogar esta pedra — disse, firmando os pés —, virado para lá. — Endireitou os ombros. — Vou jogá-la por baixo, com cerca de três pulsos de força por trás. Quero que vocês calculem de que maneira ela se deslocará no ar, para que possam estar com a mão no lugar certo para agarrá-la quando chegar o momento.
Colocou a pedra sobre uma mesa.
— Prossigam.
Dediquei-me ao problema com empenho. Desenhei triângulos e arcos, fiz cálculos, tentei adivinhar fórmulas de que não me lembrava bem. Não demorou muito para que eu me frustrasse com a impossibilidade da tarefa. Havia incógnitas de mais, muitas coisas simplesmente impossíveis de calcular.
Após cinco minutos sozinhos, Elohkar nos incentivou a trabalharmos em grupo. Foi então que vi pela primeira vez o talento de Aresh com os números. Seus cálculos haviam superado em tal grau os meus que não consegui entender grande parte do que ele estava fazendo. O mesmo se deu com Faela, embora ela também tivesse esboçado uma série detalhada de arcos parabólicos.
Nós sete discutimos, argumentamos, experimentamos, fracassamos e tentamos de novo. Ao fim de 15 minutos, estávamos frustrados. Especialmente eu. Detesto problemas que não sei resolver.
Elohkar nos fitou.
— E então, o que podem me dizer?
Alguns de nós começamos a dar meias respostas ou palpites, mas, com um aceno, ele nos silenciou.
— O que sabem me dizer com certeza?
Passado um instante, Faela se manifestou:
— Não sabemos como a pedra cairá.
Elohkar bateu palmas em sinal de aprovação.
— Ótimo! Essa é a resposta certa. Agora, observem.
Foi até a porta e pôs a cabeça para fora.
— Henry! — gritou. — É, você. Venha aqui um segundo.
Recuou e introduziu um dos mensageiros de Jamis, um menino de não mais de oito anos.
Elohkar afastou-se meia dúzia de passos e se virou para o garoto. Empertigou os ombros e deu um sorriso doido.
— Pegue! — disse, e jogou a pedra para o menino.
Assustado, o garoto a pegou no ar.
Elohkar aplaudiu loucamente, deu parabéns ao garoto perplexo, pegou a pedra de volta e o conduziu às pressas porta afora.
Virou-se para nós.
— E então, como foi que ele fez? — perguntou. — Como ele soube calcular num segundo o que sete membros brilhantes do Arcano não conseguiram descobrir em um quarto de hora? Será que ele sabe mais geometria do que a Faela? Seus números são mais rápidos que os do Aresh? Porventura devemos trazê-lo de volta e transformá-lo num A'scor?
Rimos um pouco, relaxando.
— É isto que eu quero dizer — continuou o Elohkar. — Há em cada um de nós uma mente que usamos para todos os nossos atos de vigília. Mas há também uma outra, que está adormecida. Ela é tão poderosa que a mente adormecida de um menino de oito anos é capaz de fazer num segundo o que as mentes despertas de sete membros do Arcano não conseguiram em 15 minutos. — Fez um gesto largo. — A sua mente adormecida é ampla e não cultivada o bastante para conter os nomes das coisas. Sei disso porque, vez por outra, esse conhecimento borbulha na superfície. A Enyssa proferiu o nome do ferro. Sua mente desperta não sabe, mas sua mente adormecida é mais sábia. Alguma coisa nas profundezas da Faela compreende o nome da pedra.
Elohkar parou e apontou para mim.
— O Vanitas chamou o vento. A acreditarmos nos escritos dos que morreram há muito tempo, o caminho dele é o tradicional. O vento era o nome que os aspirantes a nomeadores buscavam e captavam quando as coisas eram estudadas aqui, já se vai muito tempo. — Ele se calou por um momento, fitando-nos com ar sério, de braços cruzados. — Quero que cada um de vocês pense no nome que gostaria de descobrir. Deve ser um nome pequeno. Algo simples: ferro ou fogo, vento ou água, madeira ou pedra. Deve ser algo com que sintam afinidade.
Elohkar se dirigiu à grande lousa montada na parede e começou a escrever uma lista de títulos. Sua letra era surpreendentemente caprichada.
— Estes são livros importantes — disse. — Leiam um deles.
Após um momento, Brim levantou a mão. Percebeu então que não adiantava, já que Elohkar estava de costas para nós.
— Mestre Elohkar? — perguntou, hesitante. — Qual deles devemos ler?
O professor deu uma olhada para trás, sem interromper sua escrita por um segundo sequer.
— Não me importa — respondeu, claramente irritado. — Escolha um. Nos outros você deve passar os olhos superficialmente. Veja as ilustrações. Cheire-os, que mais não seja.
Nós sete nos entreolhamos. O único som audível na sala eram as batidas do giz de Elohkar.
— Qual deles é o mais importante? — indaguei.
O mestre fez um ruído indignado.
— Não sei. Não os li — disse.
Escreveu no quadro En Temerant Voistra e circundou o título.
— Nem sei se este se encontra no Arquivo. — Pôs uma interrogação do lado e continuou a escrever. — Uma coisa eu lhes digo: nenhum deles está nos Tomos. Eu me certifiquei disso. Vocês terão de caçá-los no Acervo. Terão de se esforçar para obtê-los.
Terminou o último título e deu um passo atrás, meneando a cabeça. Havia 20 livros ao todo. Elohkar desenhou asteriscos ao lado de três deles, sublinhou outros dois e desenhou uma cara triste ao lado do último da lista.
E então se foi, retirando-se da sala sem mais uma palavra, e nos deixou pensando na natureza dos nomes e perguntando a nós mesmos no que nos havíamos metido.