CLXIII. CAÇADA

Decidido a causar boa impressão na aula de Elohkar, procurei o Alastor e negociei uma troca de bebidas futuras por sua ajuda para circular pelo Arquivo.

Caminhamos juntos pelas ruas calçadas de pedra da Academia, contra lufadas de vento, enquanto a forma gigantesca e sem janelas do Arquivo avultava diante de nós, do outro lado do pátio. Gravadas acima das maciças portas de pedra estavam as palavras Vanfelar Roenta Murial.

Ao chegarmos mais perto, percebi que minhas mãos estavam suadas.

— Pelo senhor e senhora, espere um segundo — pedi, parando de andar.

Alas me olhou com a sobrancelha levantada.

— Estou nervoso como uma prostituta estreante — comentei. — Apenas me dê um momento.

— Você disse que o Loran suspendeu a proibição há dois dias — disse Alastor. — Achei que estaria lá dentro assim que obtivesse a permissão.

— Eu estava esperando eles atualizarem os registros — retruquei, enxugando as mãos úmidas na camisa. — Sei que vai acontecer alguma coisa — acrescentei, ansioso. — Meu nome não estará no livro. Ou o Drazno estará na recepção e eu terei uma espécie de recaída daquela droga feita de ameixa e vou acabar ajoelhado no pescoço dele, aos gritos.

— Isso eu gostaria de ver — disse Alas. — Mas o Drazno não trabalha hoje.

— Já é alguma coisa — admiti, relaxando um pouco. Apontei para as palavras acima da porta. — Você sabe o que aquilo quer dizer?

Alas olhou para cima.

— O desejo de saber molda o homem — respondeu. — Ou algo parecido com isso.

— Gostei. — Respirei fundo e disse: — Certo. Vamos.

Empurrei as imensas portas de pedra e entramos numa pequena antecâmara. Em seguida, Alas abriu as portas internas e pisamos no saguão de entrada. No meio do cômodo havia uma enorme escrivaninha de madeira com vários livros grandes de registro, encadernados em couro e abertos. Várias portas majestosas abriam-se em direções diferentes.

Faela estava sentada atrás da escrivaninha, com o cabelo ondulado puxado para trás num rabo de cavalo. A luz vermelha das lâmpadas de simpatia dava-lhe uma aparência diferente, porém não menos bonita. Ela sorriu.

— Olá, Faela — cumprimentei-a, tentando não soar tão nervoso quanto me sentia. — Eu soube que voltei aos livros bons do Loran. Pode verificar para mim?

Ela assentiu com a cabeça e começou a folhear o registro à sua frente. Seu rosto se iluminou e ela apontou para algo. Em seguida, sua expressão assombrou-se.

Senti um nó na boca do estômago.

— O que foi? Há alguma coisa errada? — perguntei.

— Não, nada de errado — respondeu ela.

— A sua cara é de que há alguma coisa errada — resmungou Alas. — O que diz aí?

Faela hesitou, depois girou o livro para que pudéssemos lê-lo: Vanitas, filho de Meridan. Cabelo alvo. Tez clara. Jovem. Ao lado disso, escritas à margem numa letra diferente, estavam as palavras Bastardo Therion.

Sorri para ela.

— Correto em todos os pontos. Posso entrar?

Faela fez que sim.

— Precisam de lâmpadas? — perguntou, abrindo uma gaveta.

— Eu preciso — disse Alas, já escrevendo o nome num registro separado.

— Eu tenho a minha — respondi, tirando minha pequena lâmpada de um bolso da capa.

Faela abriu o registro de entrada e anotou nossos nomes. Minha mão tremia quando assinei o livro, agitando a ponta da pena de forma constrangedora, fazendo-a respingar tinta na página.

Faela secou-a com um mata-borrão e fechou o registro. Sorriu para mim e disse:

— Seja bem-vindo de volta.

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Deixei Alastor me conduzir pelo Acervo e fiz o melhor que pude para parecer adequadamente admirado. 

Não era um papel difícil de representar. Embora já fizesse algum tempo que eu tinha acesso ao Arquivo, fora obrigado a me esgueirar por ele feito um ladrão. Mantivera minha lâmpada ajustada no grau mais tênue e evitara os corredores principais, por medo de esbarrar sem querer em alguém.

As estantes cobriam cada pedacinho das paredes de pedra. Alguns corredores eram largos e abertos, com pé-direito alto, enquanto outros formavam vielas estreitas, que mal davam passagem a duas pessoas, se ambas se virassem de lado. O ar tinha um cheiro carregado de couro e poeira, velhos pergaminhos e cola de encadernação. Recendia a segredos.

Alastor conduziu-me por estantes sinuosas, depois subimos umas escadas e cruzamos um corredor largo, todo ladeado de livros encadernados no mesmo couro vermelho. Por fim, chegamos a uma porta em cujos contornos transparecia uma tênue luz vermelha.

— Há cômodos separados para estudos particulares — disse Alastor, baixinho. — Cabines de leitura. O Leif e eu usamos bastante esta aqui. Não há muita gente que saiba dela.

Bateu rapidamente na porta antes de abri-la, revelando um cômodo sem janelas, que mal chegava a ser maior do que a mesa e as cadeiras que continha.

Leif estava sentado à mesa, com a luz vermelha da lâmpada de simpatia fazendo seu rosto parecer mais corado que o habitual. Seus olhos se arregalaram ao me ver.

— Vanitas? O que está fazendo aqui? — perguntou. Virou-se para Alastor, horrorizado. — O que ele está fazendo aqui?

— O Loran suspendeu a proibição — respondeu Alastor. — O nosso rapazinho tem uma lista de leituras. Está planejando sua primeira caçada aos livros.

— Parabéns! — exclamou Leif, com um sorriso largo. — Posso ajudar? Estou quase dormindo aqui — disse ele, estendendo a mão.

Dei um tapinha na têmpora.

— O dia em que eu não puder decorar 20 títulos não farei parte do Arcano — respondi, embora isso fosse apenas meia verdade. A verdade completa era que eu só tinha meia dúzia de preciosas folhas de papel. Não podia me dar ao luxo de desperdiçar uma delas numa coisa dessas.

Leif tirou do bolso um pedaço de papel dobrado e um toco de lápis.

— Eu preciso de coisas escritas — disse. — Nem todos nós decoramos baladas por diversão.

Encolhi os ombros e comecei a anotar os títulos.

— É provável que andemos mais depressa se dividirmos minha lista em três.

Alastor me olhou.

— Você acha que pode simplesmente andar por aí e achar os livros sozinho? — perguntou e olhou para Leif, que exibia um largo sorriso.

É claro. Não se esperava que eu conhecesse nada da disposição do Acervo. Alas e Leif não sabiam que fazia quase um mês que eu andava me esgueirando por lá.

Não que eu não confiasse neles, mas o Leif não saberia mentir nem para salvar a própria vida e o Alastor trabalhava como escriba. Eu não queria forçá-lo a escolher entre o meu segredo e seu dever para com Mestre Loran.

Por isso, resolvi bancar o burro:

— Ah, eu me arranjo — respondi, com ar displicente. — Não pode ser tão difícil de entender.

— Há tantos livros no Arquivo — disse Alas, devagar — que a simples leitura de todos os títulos levaria uma onzena inteira. — Fez uma pausa e me olhou atentamente. — Onze dias inteiros, sem parar para comer nem dormir.

— É mesmo? — perguntou Leif. — Tudo isso?

Alas meneou a cabeça.

— Descobri há um ano. Ajuda a fazer os A'luns pararem de choramingar quando têm de esperar que eu busque um livro — disse. Olhou para mim e acrescentou: — Também há livros sem título. E pergaminhos. E argilas. E muitas línguas.

— O que é uma argila? — indaguei.

— São tábulas de argila — explicou Alastor. — Foram das únicas coisas que sobreviveram ao incêndio de Caluptena. Algumas foram transcritas, mas nem todas.

— Nada disso vem ao caso — interpôs Leif. — O problema é a organização.

— Catalogação — corrigiu Alastor. — Houve muitos sistemas diferentes ao longo dos anos. Certos professores preferem um, alguns preferem outro. — Franziu o cenho e completou: — Há também os que criaram seus próprios sistemas para organizar os livros.

Dei uma risada.

— Você fala como se eles devessem ser levados ao pelourinho por isso.

— Talvez — resmungou Alas. — Eu não choraria por uma coisa dessas.

Leif olhou-o.

— Você não pode censurar um Mestre por tentar organizar as coisas da melhor maneira possível.

— Posso — rebateu Alas. — Se o Arquivo fosse mal organizado, seria um incômodo uniforme, com o qual poderíamos trabalhar. Mas houve inúmeros sistemas diferentes nos últimos 50 anos. Livros erroneamente rotulados. Títulos mal traduzidos. — Passou as mãos pelo cabelo, assumindo de repente um ar cansado. — E estão sempre chegando livros novos, que precisam ser catalogados. Há sempre um A'lun preguiçoso nos Tomos que quer que os procuremos para eles. É como tentar cavar um buraco no fundo de um rio.

— Então, o que você está dizendo — comentei, devagar — é que acha que o tempo que gasta como escriba é agradável e recompensador.

Leif abafou uma risada com as mãos.

— E há também vocês — disse Alas, olhando para mim, com a voz perigosa e grave. — Alunos com liberdade para andar pelo Acervo. Vocês entram, leem metade de um livro e depois o escondem, para continuar mais tarde, quando lhes convier. — Suas mãos fizeram movimentos de apertar, como se agarrassem o peito da camisa de alguém. Ou talvez o pescoço. — Aí vocês esquecem onde puseram o livro e ele desaparece, tão certo quanto se o tivessem queimado.

Alas fez uma pausa, apontou para mim e ameaçou, fervendo de raiva:

— Se algum dia eu descobrir que você fez uma coisa dessas, não haverá Deus que o mantenha a salvo de mim.

Pensei com culpa nos três livros que eu tinha escondido exatamente daquele jeito, ao estudar para os exames.

— Prometo que jamais farei isso — falei. De novo.

Leif levantou-se da mesa, esfregando as mãos animadamente.

— Certo. Dito em termos simples, isto aqui é uma bagunça, mas, se você se limitar aos livros listados no catálogo de Solem, deverá ser capaz de achar o que está procurando. O Solem é o sistema que usamos agora. O Alas e eu vamos lhe mostrar onde eles guardam os livros de registro.

— E mais algumas coisas — acrescentou Alas. - O Solem está longe de ser abrangente. Pode ser que alguns dos seus livros precisem de escavações mais profundas.

Virou-se e abriu a porta.

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Apenas quatro livros da minha lista estavam no catálogo de Solem. Depois disso, fomos obrigados a deixar para trás as partes bem organizadas do Acervo. Alas pareceu encarar a lista como um desafio pessoal, por isso aprendi muito sobre o Arquivo nesse dia. Ele me levou aos registros do Arquivo Morto, à Escada Invertida e à Ala Inferior.

Mesmo assim, ao cabo de quatro horas só havíamos conseguido encontrar sete títulos. Alas pareceu frustrado com isso, mas eu lhe agradeci calorosamente, dizendo que ele me dera tudo de que eu precisava para continuar a busca sozinho.

Nos dias subsequentes, passei quase todos os meus momentos livres no Arquivo, à caça dos livros da lista de Elohkar. Não havia nada que eu quisesse mais do que iniciar aquela matéria com o pé direito e estava decidido a ler tudo o que ele nos indicara.

O primeiro era um livro de viagens que achei bastante prazeroso. O segundo era poesia bem ruim, mas era curto e eu me forcei a chegar ao final, rangendo os dentes e, vez por outra, fechando um dos olhos, para não danificar todo o meu cérebro. O terceiro era um livro de filosofia retórica, maçantemente escrito.

Depois, veio um que versava sobre flores silvestres do norte de Aturia. Um manual de esgrima com ilustrações muito confusas. Outro livro de poesia, grosso feito um tijolo e ainda mais autoindulgente que o primeiro.

Levei horas, mas li todos eles. Cheguei até a tomar notas em duas de minhas preciosas folhas de papel.

Depois, tanto quanto pude dizer, veio o diário de um louco. Embora isso pareça interessante, na verdade era só uma dor de cabeça espremida entre as duas capas. O homem escrevera com letra miúda e sem espaços entre as palavras. Não havia quebras de parágrafo. Nenhuma pontuação. Nada de gramática ou ortografia coerentes.

Foi nessa hora que comecei a folhear. No dia seguinte, ao deparar com dois livros escritos em sereniano, uma série de ensaios sobre a rotação de culturas e uma monografia sobre mosaicos mitrezianos, parei de tomar notas.

No último punhado de livros, dei apenas uma olhada superficial, perguntando-me por que Elohkar havia de querer que lêssemos um registro de impostos de 200 anos, proveniente de um baronato dos Pequenos Reinos, um texto de medicina ultrapassado e um drama de fundo moral mal traduzido.

Mesmo perdendo rapidamente o meu fascínio pela leitura dos livros de Elohkar, continuei encantado por caçá-los. Irritei um bom número de escribas com minhas perguntas constantes: Quem estava encarregado da reposição nas prateleiras? Onde eram guardados os provérbios mitrezianos? Quem tinha a chave do depósito de pergaminhos do quarto subsolo? Onde ficavam os livros danificados enquanto aguardavam a restauração?

No fim, encontrei 19 dos livros. Todos, menos En Temerant Voistra. E não foi por falta de tentativa. Segundo minha melhor estimativa, a empreitada inteira levou quase 50 horas de buscas e leituras. 

Cheguei à aula seguinte de Elohkar 10 minutos antes da hora, orgulhoso como um sacerdote. Levei minhas duas páginas de anotações criteriosas, ansioso por impressionar o Mestre com minha dedicação e minúcia.

Todos os sete chegamos para a aula antes da sineta do meio-dia. A porta da sala estava fechada, por isso ficamos no corredor, aguardando a chegada de Elohkar.

Compartilhamos histórias sobre nossas buscas no Arquivo e especulamos sobre a razão de Elohkar ter considerado importantes aqueles livros. Fazia anos que Faela era escriba e ela só havia encontrado 17 deles. Ninguém tinha achado En Temerant Voistra, ou mesmo qualquer menção a ele.

Elohkar ainda não havia chegado quando tocou o sino do meio-dia e, 15 minutos depois da hora, cansei-me de ficar em pé no corredor e experimentei a porta da sala de aulas. A princípio, a maçaneta não se mexeu, mas, quando a sacudi, frustrado, o trinco girou e a porta se entreabriu.

— Pensei que estivesse trancada — disse Enyssa, franzindo o cenho.

— Só emperrada — falei, abrindo-a.

Entramos no cômodo imenso e vazio e descemos a escada para a primeira fileira de assentos. Na grande lousa à nossa frente, escrita com a letra estranhamente caprichada de Elohkar, havia uma única palavra: "Discutam".

Acomodamo-nos em nossas cadeiras e esperamos, porém não se viu Elohkar em parte alguma. Olhamos para a lousa, depois uns para os outros, sem saber exatamente o que deveríamos fazer.

Pela expressão no rosto de todos, eu não era o único que estava irritado. Passara 50 horas escavando aquela porcaria de livros inúteis dele. Eu tinha feito a minha parte. Por que Elohkar não fazia a sua?

Nós sete passamos as duas horas seguintes aguardando, conversando à toa, à espera de que Elohkar chegasse.

Ele não chegou.