CLXIV. SEGREDOS

Embora as hora desperdiçadas à caça dos livros de Elohkar me houvessem deixado numa profunda irritação, saí dessa experiência com um sólido conhecimento prático do Arquivo. O que aprendi de mais importante foi que ele não era um mero armazém repleto de livros. O Arquivo era como uma cidade independente. Tinha ruas e alamedas tortuosas. Tinha becos e atalhos.

Tal como numa cidade, partes dele tinham uma atividade febril. O Scriptorium abrigava fileiras de escrivaninhas onde os escribas batalhavam com traduções ou copiavam textos desbotados em novos livros, com tinta preta nova. A Sala de Classificação zumbia de atividade, com escribas selecionando e repondo livros nas estantes.

A Bicharia não era nada do que eu havia esperado, graças aos céus. Ao contrário, revelou-se o lugar em que os livros novos eram descontaminados, antes de serem acrescidos à coleção.

Ao que parece, criaturas de toda sorte adoravam livros, algumas devoraram pergaminho e couro, outras tinham predileção por papel ou cola. As traças eram o menor problema entre elas e, depois de escutar algumas histórias do Alastor, não havia nada que eu quisesse mais do que lavar as mãos.

A Toca dos Catalogadores, a Encadernação, os Rolos, o Palimpsesto, todos eram atarefados como colmeias, repletos de escribas calados e industriosos.

Mas outras partes do Arquivo eram justamente o oposto de agitadas. O Escritório de Aquisições, por exemplo, era minúsculo e perpetuamente escuro. Pelo postigo, vi que uma parede inteira desse cômodo nada mais era que um imenso mapa, onde cidades e estradas eram marcadas com tamanha minúcia que ele parecia um tear emaranhado. O mapa era revestido por uma camada de verniz alquímico transparente e havia anotações a lápis de cera vermelho em vários pontos, detalhando rumores sobre livros desejáveis e as últimas localizações conhecidas das diversas equipes de compras.

A seção dos Tomos assemelhava-se a um grande jardim público. Qualquer estudante tinha a liberdade de entrar e ler os livros daquelas prateleiras.

Ou podia submeter um pedido aos escribas, que partiam de má vontade para o Acervo, a fim de encontrar, se não o livro exato que se queria, ao menos algo estreitamente relacionado.

Mas o Acervo era maior parte do Arquivo. Era ali que os livros efetivamente moravam. E, como em qualquer cidade, havia bons e maus bairros.

Nos bons bairros, tudo era adequadamente organizado e catalogado. Nesses lugares, uma anotação dos livros de registro levava a pessoa a um título com a simplicidade de quem apontasse um dedo.

E havia também as más vizinhanças; setores que tinham sido esquecidos ou negligenciados ou que eram simplesmente complicados demais para que se cuidasse deles no momento. Tratava-se de locais onde os livros eram catalogados por métodos antigos ou não havia catalogação alguma.

Neles existiam paredes de estantes que lembravam bocas parcialmente desdentadas, nas quais escribas desaparecidos fazia muito tempo tinham canibalizado algum velho catálogo, a fim de inserir os livros no sistema que estivesse em moda na ocasião. Trinta anos antes, dois andares inteiros tinham passado de bairros bons a ruins, quando os registros de Larkin foram queimados por uma facção rival de escribas.

E havia, é claro, a porta das quatro chapas. O segredo no coração da cidade.

Era agradável passear pelos bairros bons. Era prazeroso procurar um livro e encontrá-lo exatamente onde devia estar. Era fácil. Reconfortante. Rápido.

Mas os bairros ruins eram fascinantes. Seus livros eram empoeirados e sem uso. Ao abrir um deles, podia-se ler palavras que nenhum olho avistara por centenas de anos. Ali havia um tesouro em meio à escória.

Foi nesses lugares que procurei o Sombraim.

Busquei durante horas e dias. Grande parte da razão de eu ter ido para a Academia tinha sido meu desejo de descobrir a verdade sobre ele. Agora que finalmente ganhara acesso ao Arquivo, compensei o tempo perdido.

Mas, apesar de minhas longas horas de busca, não encontrei praticamente nada. Havia diversos livros de histórias infantis em que o Sombraim aparecia engajado em pequenas maldades, como roubar tortas e fazer o leite azedar. Noutros, seus membros barganhavam como demônios em dramas aturianos de fundo moral.

Dispersos por essas histórias havia alguns tênues fios de realidade, porém nada que eu já não soubesse. O Sombraim era amaldiçoado. Certos sinais indicavam sua presença: chama negra, podridão e ferrugem, uma friagem no ar.

Minha caçada foi mais dificultada pelo fato de eu não poder pedir a ajuda de ninguém. Se a notícia de que eu passava meu tempo lendo contos infantis se espalhasse, isso não melhoraria minha reputação.

E, mais importante, uma das poucas coisas que eu sabia sobre o Sombraim era que seus membros trabalhavam no sentido de reprimir selvagemente qualquer conhecimento de sua existência. Haviam matado minha trupe porque meu pai andara escrevendo uma canção a seu respeito. Em Nebron, destruíram uma festa inteira de casamento porque alguns convidados tinham visto imagens deles numa peça de cerâmica antiga.

Em vista disso, falar do Sombraim não parecia ser o curso de ação mais sensato.

Assim, fiz minhas próprias buscas. Passados alguns dias, perdi a esperança de encontrar algo tão útil quanto um livro sobre o Sombraim, ou mesmo tão substancial quanto uma monografia. Ainda assim, continuei a ler, torcendo para achar um retalho de verdade escondido em algum lugar. Um simples fato. Um indício. Qualquer coisa.

Mas as histórias infantis não são ricas em detalhes e os poucos que encontrei eram obviamente fantasiosos. Onde morava o Sombraim? Nas nuvens. Nos sonhos. Num castelo de açúcar. Quais eram os seus sinais? O trovão. O escurecimento da Lua. Um conto chegava até a mencionar o arco-íris. Quem escreveria uma coisa dessas? Por que fazer uma criança ter pavor do arco-íris?

Os nomes eram mais fáceis de achar, mas todos tinham sido obviamente roubados de outras fontes. Quase todos eram nomes de demônios mencionados no Livro do Caminho ou em alguma peça teatral, sobretudo na Daeonica. Um conto dolorosamente alegórico dava ao Sombraim nomes inspirados em sete imperadores famosos da época do Império Aturiano. Isso, pelo menos, provocou-me uma risada curta e amarga.

Acabei descobrindo um volume fininho, chamado O Livro dos Segredos, mergulhado nas profundezas dos registros do Arquivo Morto. Tratava-se de um livro estranho, disposto à maneira de um bestiário, mas escrito como uma cartilha infantil. Tinha desenhos de criaturas de contos de fadas, como ogros, duendes e gnomos-de-dâmara. Cada verbete tinha uma imagem, acompanhada por um poema curto e insípido.

O Sombraim, é claro, era o único verbete sem ilustração. Em vez dela, havia apenas uma página em branco, emoldurada por arabescos decorativos. O poema que a acompanhava ficava abaixo de inútil:

"O Sombraim gira e muda de lugar

Mas sempre sem vestígio deixar.

Guarda seus segredos com ciúme,

Mas não fere nem mostra azedume.

Não é brigão nem alvoroçado,

Conosco chega a ser delicado.

Num piscar de olhos vem e vai,

Qual raio que luminoso cai."

Por mais irritante que fosse ler uma coisa dessas, um ponto ficava bem claro: para o resto do mundo, o Sombraim nada mais era do que um punhado de contos de fadas infantis. Tão pouco real quanto os secudos ou os unicórnios.

Eu tinha um conhecimento diferente, é claro. Vira-o com meus próprios olhos. Falara com Grim, o de negros olhos. Vira Xehanort vestir-se todo de sombras, como se usasse um manto.

Assim, prossegui em minha busca infrutífera. Não importava no que acreditasse o resto do mundo. Eu sabia a verdade e nunca fui de desistir facilmente.

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Acomodei-me ao ritmo do novo período letivo. Como antes, frequentei as aulas e toquei na taberna do Grilo. Mas passava a maior parte do tempo no Arquivo. Eu havia ansiado por ele durante um período tão longo que poder cruzar a porta de entrada quando bem quisesse parecia quase anormal. 

Nem mesmo minha contínua incapacidade de encontrar algo factual sobre o Sombraim estragava essa experiência. Conforme buscava, eu me distraía cada vez mais com outros livros encontrados. Um manual manuscrito de ervas medicinais, com imagens de várias plantas em aquarelas. Um pequeno in-quarto, com quatro peças teatrais de que eu nunca ouvira falar. Uma biografia admiravelmente cativante de Hebred, o Precavido.

Passei tardes inteiras nas cabines de leitura, perdendo refeições e negligenciando meus amigos. Mais de uma vez, fui o último estudante a sair do Arquivo, antes que os escribas trancassem as portas até o dia seguinte. Eu dormiria lá, se isso fosse permitido.

Em certos dias, quando meu horário ficava apertado demais para que eu me instalasse lá para um longo estirão de leituras, simplesmente caminhava pelo Acervo durante alguns minutos entre as aulas.

Fiquei tão apaixonado por minha nova liberdade que, durante muitos dias, não atravessei o rio para ir a Torrente. Quando efetivamente retornei à pousada Homem Esguio, levei um cartão de visita que tinha feito com um retalho de pergaminho. Achei que Alys se divertiria com ele.

Quando cheguei, porém, o porteiro intrometido da sala de espera da Homem Esguio me disse que não, não poderia entregar meu cartão. Não, a jovem já não estava residindo lá. Não, ele não poderia transmitir-lhe um recado. Não, não sabia para onde ela fora.