CLXV. INTERESSANTE

Elohkar entrou a passos largos na sala de aula, com quase uma hora de atraso. Tinha a roupa coberta de manchas de terra e havia folhas secas emaranhadas em seu cabelo. Estava sorrindo.

Nesse dia, éramos apenas seis à sua espera. Jarrek não havia aparecido nas duas aulas anteriores. Pelos comentários mordazes que fizera antes de sumir, eu duvidava que voltasse.

— Já! Digam-me coisas! — gritou Elohkar, sem nenhum preâmbulo.

Era sua mais nova maneira de desperdiçar nosso tempo. No começo de cada aula, ele pedia um fato interessante de que nunca tivesse ouvido falar. Elohkar, é claro, era o único árbitro do que era interessante e, quando o primeiro fato fornecido não ficava à altura de suas expectativas, ou quando ele já o conhecia, o mestre exigia outro e mais outro, até finalmente se dizer algo que o divertisse.

— Vá! — disse, apontando para Brim.

— As aranhas podem respirar embaixo d'água — disse ela, prontamente.

Elohkar meneou a cabeça.

— Ótimo.

Em seguida olhou para Marzus.

— Há um rio no sul de Mitreza que flui no sentido errado. É um rio de água salgada que corre do mar de Cinthia para a terra.

Elohkar balançou a cabeça.

— Eu já sabia disso.

Marzus baixou os olhos para um pedaço de papel.

— Uma vez, o imperador Vintoran aprovou uma lei...

— Chatice — interrompeu Elohkar, cortando-o.

— Se a pessoa beber mais de dois quartilhos de água salgada, ela vomita? — perguntou Marzus.

Elohkar mexeu a boca especulativamente, como se tentasse tirar um pedaço de cartilagem dos dentes. Depois, deu um aceno satisfeito com a cabeça.

— Essa é boa.

Apontou para Aresh.

— O infinito pode ser dividido um número infinito de vezes e as partes resultantes continuarão a ser infinitamente grandes — disse Aresh, com seu curioso sotaque lenatiano. — Mas, se dividirmos um número não infinito um número infinito de vezes, as partes resultantes serão não infinitamente pequenas. Já que são não infinitamente pequenas, mas existe um número infinito delas, se voltarmos a somá-las, sua soma será infinita. Isso implica que, na verdade, qualquer número é infinito.

— Uau! — exclamou Elohkar, depois de uma longa pausa. Apontou um dedo sério para o lenatiano. — Aresh. Sua próxima tarefa é ter relações sexuais. Se não souber como fazê-lo, procure-me depois da aula. 

Virou-se para Enyssa.

— O povo iyânes nunca desenvolveu uma língua escrita — disse ela.

— Não é verdade — objetou Elohkar. — Eles usavam um sistema de nós tecidos. — Fez um movimento complexo com as mãos, como se trançasse alguma coisa. — E já o faziam muito antes de começarmos a rabiscar pictogramas em peles de ovelha.

— Eu não disse que lhes faltava uma língua registrada - murmurou Enyssa. — Eu disse língua escrita.

Elohkar conseguiu transmitir seu vasto enfado com um simples dar de ombros.

Enyssa fitou-o com o cenho franzido.

— Ótimo. Há um tipo de cão em Sceria que dá à luz por um pênis vestigial — disse.

— Uau! — exclamou Elohkar. — Certo. Sim.

Apontou para Faela.

— Há 80 anos, a Iátrica descobriu como retirar a catarata dos olhos.

— Eu já sei disso — retrucou Elohkar, abanando a mão com descaso.

— Deixe-me terminar — disse Faela. — Quando descobriram como fazê-lo, isso significou que puderam devolver a visão a pessoas que nunca tinham enxergado até então. Essas pessoas não haviam ficado cegas, mas nascido cegas.

Elohkar inclinou a cabeça, curioso.

Faela continuou:

— Depois que elas se tornaram capazes de ver, mostraram-lhes objetos. Uma bola, um cubo e uma pirâmide, todos dispostos numa mesa. — Faela foi desenhando as formas com as mãos ao falar. — E então, os fisiopatias lhes perguntaram qual dos três objetos era redondo.

Fez uma pausa, para aumentar o efeito, e olhou para todos nós.

— Elas não souberam dizer apenas olhando para os objetos. Precisaram tocá-los primeiro. Só depois de tocarem na bola perceberam que era ela o objeto redondo.

Elohkar jogou a cabeça para trás e riu, encantado.

— É mesmo? — perguntou.

Ela fez que sim.

— A Faela leva o prêmio! — gritou o mestre, esticando os braços para o alto. Enfiou uma das mãos no bolso e tirou uma coisa marrom e oblonga, que pôs nas mãos de Faela.

Ela fitou o objeto, curiosa. Era um capucho de algodãozinho-do-campo.

— O Vanitas ainda não falou — disse Brim.

— Não tem importância — retrucou Elohkar, em tom despreocupado. — O Vanitas é uma porcaria nos Fatos Interessantes.

Amarrei a cara mais fechada que pude.

— Muito bem — disse Elohkar. — Fale-me o que você tem.

— Os mercenários parsemanos têm uma arte secreta chamada Netani -— afirmei. — Ela é o segredo que os torna guerreiros tão ferozes.

Elohkar inclinou a cabeça para um lado.

— É mesmo? — perguntou. — E o que é?

— Não sei — respondi, com ar petulante, na esperança de irritá-lo. — Como eu disse, é segredo.

Elohkar pareceu refletir sobre isso por um momento, depois balançou a cabeça.

— Não. É interessante, mas não é fato. É como dizer que os agiotas cealdamos têm uma arte secreta, chamada Finância, que faz deles banqueiros tão agressivos. Não tem substância — afirmou e tornou a me olhar, expectante.

Tentei pensar em alguma outra coisa, mas não consegui. Minha cabeça estava cheia de contos de fadas e pesquisas sobre o Sombraim que levavam a um beco sem saída.

— Viu? — disse Elohkar a Brim. — Ele é uma porcaria.

— Só não sei por que estamos desperdiçando nosso tempo com isso — rebati.

— Você tem coisas melhores para fazer? — perguntou Elohkar.

— Tenho! — explodi, com raiva. — Tenho mil coisas mais importantes para fazer! Como aprender sobre o nome do vento!

Elohkar ergueu um dedo, tentando fazer uma pose sábia e não conseguindo, por causa das folhas no cabelo.

— Pequenos fatos levam a um grande saber — entoou. — Assim como pequenos nomes levam a grandes nomes.

Bateu uma palma e esfregou as mãos, animado.

— Certo! Faela! Abra seu prêmio e poderemos dar ao Vanitas a aula que ele deseja tão ardorosamente.

Faela quebrou a casca seca do capucho de algodãozinho-do-campo. A lanugem branca das sementes flutuantes derramou-se em suas mãos.

O Nomeador-Mor fez sinal para que Faela a jogasse para cima. Quando ela fez isso, todos viram a massa de lanugem branca voar em direção ao teto alto da sala de aula, depois cair pesadamente no chão.

— Diabos! — disse Elohkar. Avançou altivo para o feixe de sementes, apanhou-o do chão e o sacudiu vigorosamente, até o ar ficar cheio de lufadas de sementes de algodãozinho.

Em seguida, começou a persegui-las loucamente pela sala, tentando pegá-las no ar. Trepou em cadeiras, correu pelo estrado dos professores e pulou na mesa na frente da sala.

O tempo todo, tentava agarrar as sementes. No começo o fez com uma das mãos, como quem pegasse uma bola. Mas não teve sucesso e, assim, começou a bater palmas, como se achatasse uma mosca. Quando isso também não funcionou, tentou apanhá-las com as duas mãos, como uma criança tentando agarrar um pirilampo.

Mas não conseguiu pegar nenhuma. Quanto mais as perseguia, mais frenético ficava, mais depressa corria e mais desvairado tentava agarrá-las. Isso continuou por um minuto inteiro. Dois minutos. Cinco minutos. Dez.

Talvez prosseguisse durante todo o período da aula, mas ele acabou tropeçando numa cadeira e desabou dolorosamente no chão de pedra, rasgando uma perna da calça e cortando o joelho, que começou a sangrar.

Segurando a perna, sentou-se no chão e soltou uma série de xingamentos raivosos como eu nunca tinha ouvido em toda a minha vida. Gritou e rosnou e cuspiu. Passou por pelo menos oito línguas e, mesmo quando não pude compreender as palavras que usava, o som me causou um frio na barriga e arrepios nos braços. Ele disse coisas que me fizeram suar. Coisas que me deixaram enjoado. Que eu não sabia que era possível dizer.

Imagino que isso pudesse ter continuado, mas, num momento em que inspirou com raiva, ele sugou uma das sementes flutuantes de algodãozinho- do-campo e começou a tossir e a se engasgar violentamente.

Acabou cuspindo a semente, recobrou o fôlego, pôs-se de pé e saiu da sala mancando, sem dizer uma palavra.

Não foi um dia de aula particularmente estranho com Mestre Elohkar.

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Depois da aula de Elohkar, comi um almoço ligeiro na Grilo e fui para meu turno na Iátrica, para ver A'vórs mais experientes diagnosticarem e tratarem os pacientes que chegavam.

Depois disso, tomei o rumo do rio, na esperança de encontrar Alys. Era minha terceira ida no mesmo número de dias, mas fazia um dia frio e ensolarado e, após todo o tempo passado no Arquivo, eu sentia necessidade de esticar um pouco as pernas.

Parei primeiro na Foles, embora fosse cedo demais para que Alys estivesse lá. Conversei com Radagon e Droch antes de seguir para algumas das outras pousadas que ocasionalmente ela frequentava: Barril, Tonel & Fardo e Gancho na Parede. Também não estava em nenhuma dessas.

Perambulei por alguns jardins públicos, cujas árvores estavam quase inteiramente desfolhadas. Depois, visitei todas as lojas de instrumentos que consegui encontrar, dando uma olhada nos alaúdes e perguntando se tinham visto uma bela mulher de cabelos pretos procurando harpas. Não tinham.

Já então havia escurecido por completo. Assim, tornei a passar na Foles e vaguei lentamente pela multidão. Alys ainda não estava em parte alguma, porém encontrei o conde Augus. Dividimos uma bebida e ouvimos algumas músicas antes de eu me retirar.

Apertei mais a capa em volta dos ombros ao retomar o caminho da Academia. Nessa hora, as ruas de Torrente eram mais agitadas do que durante o dia e, apesar da friagem no ar, havia uma sensação de festa na cidade. Uns 10 tipos diferentes de música jorravam das entradas de hospedarias e teatros. Pessoas se aglomeravam na porta de restaurantes e salões de exposição.

Ouvi então uma risada alta e animada elevar-se acima do burburinho das aglomerações. Eu a reconheceria em qualquer lugar. Era de Alys. Eu a conhecia como ao dorso de minhas mãos.

Virei-me, sentindo um sorriso espalhar-se por meu rosto. Era sempre assim. Eu só parecia conseguir encontrá-la depois de perder a esperança.

Examinei os rostos da multidão circulante e a encontrei sem dificuldade. Alys estava parada à porta de um pequeno café, usando um vestido longo de veludo azul-escuro.

Dei um passo na sua direção e me detive. Vi-a falar com alguém parado atrás da porta aberta de uma carruagem. A única parte do acompanhante dela que pude vislumbrar foi o alto da cabeça. Ele usava um chapéu com uma longa pluma branca.

Um momento depois, Drazno fechou a porta da carruagem. Deu um sorriso largo e sedutor e disse algo que fez Alys rir. A luz dos lampiões cintilou no brocado dourado da jaqueta de Drazno e suas luvas eram tingidas no mesmo tom de azul-real escuro das botas. A cor deveria parecer vulgar nele, mas não parecia.

Enquanto eu olhava fixo, uma sege de corrida, puxada por seus dois cavalos, por pouco não me derrubou e passou por cima de mim, o que seria justo, já que eu estava postado no meio da rua. O cocheiro praguejou e deu uma lambada com o chicote ao passar. A chicotada me acertou na nuca, mas nem a senti.

Recuperei o equilíbrio e levantei os olhos a tempo de ver Drazno beijar a mão de Alys. Depois, com gestos graciosos, ofereceu-lhe o braço e os dois entraram juntos no café.

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Depois de ver Drazno e Alys em Torrente, mergulhei num humor sombrio. Na caminhada de volta para a Academia, minha cabeça girava ao pensar neles. Estaria Drazno fazendo aquilo de pura pirraça? Como havia acontecido? O que Alys tinha na cabeça? 

Após uma noite quase toda insone, tentei não pensar no assunto. Em vez disso, enfurnei-me nas profundezas do Arquivo. Os livros são um substituto precário para a companhia feminina, porém são mais fáceis de achar. Consolei-me caçando o Sombraim pelos cantos escuros do Arquivo. Li até os olhos arderem e a cabeça ficar densa e abarrotada.

Passou-se quase uma onzena e pouco fiz além de frequentar as aulas e saquear o Arquivo. Em troca dos meus esforços, ganhei pulmões cheios de poeira, uma dor de cabeça persistente, graças às horas de leitura à luz da lâmpada de simpatia, e um espasmo entre as omoplatas, de tanto me debruçar sobre uma mesa baixa ao folhear os restos desbotados dos registros de Gilean.

Também encontrei uma única menção ao Sombraim. Estava num manuscrito in-oitavo, intitulado Compêndio Exótico de Crenças Populares. Segundo o meu melhor palpite, o livro tinha 200 anos.

Era uma coletânea de histórias e superstições reunidas por um historiador amador de Mitreza. Ao contrário de Os hábitos de acasalamento do Dracus comum, não fazia nenhuma tentativa de provar ou desmentir essas crenças. O autor havia simplesmente recolhido e organizado as histórias, com breves comentários ocasionais sobre como as crenças pareciam variar de uma região para outra.

Era um volume impressionante, que obviamente abarcava anos de pesquisa. Havia quatro capítulos sobre demônios. Três sobre Encantados, um deles inteiramente dedicado a histórias de Lafleur. Havia páginas sobre secudos, lacerados e duendes. O autor registrara canções sobre damas cinzentas e cavaleiros brancos. Contava com uma longa seção sobre os draugar. Havia seis capítulos sobre magia popular: oito maneiras de curar verrugas, 12 maneiras de falar com os mortos, 22 talismãs do amor...

O verbete inteiro sobre o Sombraim tinha menos de meia página:

"Do Sombraim há pouco a dizer. Todo homem sabe deles. Toda criança entoa sua canção. Mas o povo não conta histórias.

Pelo preço de meia cerveja, um fazendeiro fala por duas horas sobre os gnomos-de-dâmara. Mas basta mencionar o Sombraim e sua boca se aperta como nó de fiandeira e ele toca num pedaço de ferro e empurra a cadeira para trás.

Muitos pensam que dá azar falar dos Encantados, mas as pessoas falam. Não sei o que torna diferente o Sombraim. Um curtumeiro muito embriagado, na cidade de Hillesborrow, disse em tom sussurrante: "Se você fala deles, eles vêm buscá-lo" Esse parece ser o medo não dito dessa gente comum.

Portanto, escrevo aquilo que colhi, tudo comum e inespecífico. O Sombraim é um grupo de números variados. (Provavelmente sete, dado o seu nome.) Eles aparecem e cometem diversas formas de violência, sem qualquer razão clara.

Há sinais que prenunciam sua chegada, mas não há concordância quanto a eles. A chama escura é o mais comum, mas eu também soube de vinho avinagrado, cegueira, lavouras que murcham, tempestades fora da estação, abortos espontâneos e escurecimento do sol no céu.

No cômputo geral, eu os julguei uma área de investigação frustrante e inútil."

Fechei o livro. Frustrante e inútil pareciam familiares.

O pior não era eu já saber tudo o que estava escrito no verbete. O pior era que essa constituía a melhor fonte de informação que eu havia conseguido descobrir em mais de 100 longas horas de busca.