Alastor e Leif acabaram me arrancando do cálido abraço do Arquivo. Eu lutei e xinguei, mas eles foram firmes em suas convicções e nós três enfrentamos o vento frio da estrada para Torrente.
Chegamos à Foles e pedimos uma mesa perto da lareira da direita, de onde podíamos ver o palco e manter as costas aquecidas. Depois de uma ou duas bebidas, senti a saudade dos livros esmaecer numa dor surda. Nós três conversamos e jogamos cartas e acabei por começar a me divertir, apesar de saber que Alys certamente estava em algum lugar dali, pendurada no braço do Drazno.
Após várias horas, fiquei arriado na cadeira, sonolento e aquecido pelo fogo próximo, enquanto Alastor e Leif trocavam farpas a respeito de o rei supremo de Serenia ser um monarca verdadeiramente governante ou uma simples figura simbólica. Eu estava quase dormindo quando uma garrafa pesada bateu com força na mesa, seguida pelo tilintar delicado de taças de vinho.
Alys postara-se ao lado da nossa mesa.
— Deem uma ajuda aqui — disse, entre dentes. — Vocês estavam esperando por mim. Cheguei atrasada e vocês estão aborrecidos.
Zonzo de sono, fiz força para me empertigar na cadeira e tentei acordar, piscando os olhos.
Leif aceitou de pronto o desafio.
— Faz uma hora — disse, fechando a cara com expressão feroz. Bateu firmemente com dois dedos na mesa. — Não pense que me oferecer uma bebida vai resolver. Quero um pedido de desculpas.
— A culpa não foi inteiramente minha — disse Alys, irradiando constrangimento. Virou-se e apontou para o bar.
Olhei, com medo de ver o Drazno lá, me observando, cheio de si, com aquele maldito chapéu. Mas era só um cealdamo meio calvo, que fez uma reverência curta e estranha para nós, a meio caminho entre reconhecer nossa presença e nos pedir desculpas.
Leif lançou-lhe um olhar carrancudo, virou-se de novo para Alys e apontou de má vontade para a cadeira vazia em frente a mim.
— Muito bem. E então, vamos jogar quatro-cantos ou o quê?
Alys afundou na cadeira, sentando-se de costas para o salão. Em seguida, inclinou-se para beijar Leif na testa.
— Perfeito — disse.
— Eu também amarrei a cara — reclamou Alastor.
Alys empurrou a garrafa para ele.
— E por isso você pode servir — retrucou. Dispôs as taças diante de cada um de nós. — Presente do meu pretendente de persistência exagerada — disse, com um suspiro irritado. — Eles sempre têm que dar alguma coisa. — Olhou- me com ar especulativo e comentou: — Você está curiosamente mudo.
Esfreguei o rosto com uma das mãos.
— Eu não esperava vê-la hoje. Você me pegou quase cochilando.
Alastor serviu o vinho rosa-pálido e distribuiu as taças, enquanto Alys examinava a gravação na tampa da garrafa.
— Cerbeor — disse, com ar pensativo. — Nem sei se essa é uma safra decente.
— Na verdade, não é — disse Leif, sem rodeios. — O Cerbeor é aturiano. Só os vinhos de Mitreza têm vintage, tecnicamente — completou e bebeu um gole.
— É mesmo? — perguntei, contemplando minha taça.
Alys tomou um gole e balançou a cabeça, dizendo:
— Mas é um bom vinho. Ele ainda está no bar?
— Está — respondi, sem olhar.
— Bem, nesse caso, parece que vocês vão ter que aguentar minha presença — disse ela, sorrindo.
— Você já jogou quatro-cantos? — perguntou Leif, com ar esperançoso.
— Acho que não — respondeu Alys. — Mas eu aprendo depressa.
Leif explicou-lhe as regras, com a minha ajuda e a de Alas. Alys fez algumas perguntas pertinentes, mostrando haver entendido a essência da coisa. Como estava sentada do outro lado da mesa, em frente a mim, seria minha parceira.
— Pelo que vocês costumam jogar? — perguntou ela.
— Depende — disse Alas. — As vezes jogamos pela mão. Às vezes, pela rodada.
— Então, por uma rodada de mãos — disse Alys. — Quanto?
— Podemos jogar primeiro uma rodada para praticar — interpôs Leif, afastando o cabelo dos olhos. — Já que você só está aprendendo.
Alys estreitou os olhos.
— Não preciso de tratamento especial — disse. Enfiou a mão num bolso e tirou uma moeda, pondo-a na mesa. — Um iyane é demais pra vocês?
Era demais para mim, especialmente com uma parceira que havia acabado de aprender o jogo.
— Tome cuidado com esses dois — recomendei. — Eles jogam para tirar sangue.
— Na verdade — disse Alastor —, sangue não tem serventia para mim. Eu jogo mesmo é por dinheiro.
Ele vasculhou a bolsa até achar um iyane, que grudou firmemente na mesa.
— Estou disposto a jogar uma partida para praticar, mas, se ela acha essa ideia um insulto, vou dar-lhe uma surra e tirar tudo que ela se dispuser a pôr na mesa.
Alys riu ao ouvir isso.
— Você é dos meus, Alas.
A primeira rodada correu razoavelmente bem. Alys perdeu uma vaza, mas não poderíamos mesmo ganhar, porque as cartas estavam contra nós. Na segunda mão, no entanto, ela cometeu um erro na hora do lance. E aí, quando Leif a corrigiu, ficou agitada e danou a fazer lances malucos.
Depois, saiu por engano fora da sua vez, o que não era um erro gigantesco, mas com isso mostrou o valete de copas, o que permitiu a todos saberem exatamente que tipo da mão tinha. Alys também percebeu isso e eu a ouvi resmungar entre dentes uma coisa nitidamente imprópria para uma dama.
Fiéis à sua palavra, Alas e Leif jogaram de forma implacável, para tirar proveito da situação. Dadas as cartas fracas que eu tinha na mão, não pude fazer muita coisa além de ficar sentado e vê-los ganhar as duas vazas seguintes e começarem a imprensar Alys como lobos famintos.
Só que não conseguiram. Ela forçou uma carta com inteligência, depois baixou o rei de copas, o que não fazia o menor sentido, já que antes havia tentado sair com o valete. E então também mostrou o ás.
Pouco antes de Alas e Leif, percebi que o erro atrapalhado de Alys tinha sido uma encenação. Consegui não deixar isso transparecer, até ver a vaga percepção insinuar-se na expressão do rosto deles. Aí comecei a rir.
— Não seja convencido — disse-me Alys. — Eu também o enganei. Você parecia que ia vomitar quando mostrei o valete.
Ela cobriu a boca com a mão e arregalou os olhos, com ar inocente.
— Puxa vida, eu nunca joguei quatro-cantos! Vocês podem me ensinar? É verdade que, às vezes, as pessoas jogam por dinheiro?
Alys baixou outra carta na mesa e recolheu a vaza.
— Ora, façam-me o favor! Vocês deviam ficar contentes por eu só lhes dar um tapinha na mão, em vez da profunda surra de uma noite inteira que vocês mereciam.
Ela terminou o resto da mão sem a menor piedade, o que nos deu uma dianteira tão sólida que o resto do jogo foi uma conclusão inevitável. Alys não perdeu mais uma vaza depois disso e jogou com suficiente desenvoltura e astúcia para deixar Monet parecendo um cavalo de tiro, se comparado a ela.
— Foi instrutivo — disse Alas, empurrando seu iyane em direção a Alys. — Talvez eu precise lamber um pouco as minhas feridas.
Alys ergueu sua taça num brinde:
— À credulidade dos bem-educados.
Encostamos nossas taças na dela e bebemos.
— Vocês andaram estranhamente ausentes — comentou ela. — Faz quase duas onzenas que ando de olho para ver se vocês aparecem.
— Por quê? — perguntou Leif.
Alys lançou um olhar cauteloso para ele e Alas.
— Vocês dois também são alunos da Academia, não é? Daquela especial, que ensina magia?
— Está falando conosco — respondeu Leif, amavelmente. — Estamos abarrotados de segredos enigmáticos.
— Brincamos com forças obscuras que melhor seria deixar em paz — acrescentou Alas, descontraído.
— A propósito, ela se chama Arcano — assinalei.
Alys meneou a cabeça com ar sério e se inclinou para a frente, com uma expressão atenta.
— Imagino que, somando o conhecimento dos três, vocês saibam como a maior parte dela funciona — disse, encarando-nos. — Então, me contem: como ela funciona?
— Ela? — repeti.
— A magia. Magia de verdade.
Alas, Leif e eu nos entreolhamos.
— É complicado — respondi.
Alys encolheu os ombros e se reclinou na cadeira.
— Tenho todo o tempo do mundo — disse. — E preciso saber como isso funciona. Mostrem-me. Façam uma mágica.
Nós três nos remexemos nas cadeiras, incomodados. Alys riu.
— Não podemos fazer isso — expliquei.
— Como assim? — perguntou ela. — Isso perturba algum equilíbrio cósmico?
— Perturba os policiais — respondi. — Eles não são muito gentis com esse tipo de coisa por aqui.
— Os professores também não ficam muito satisfeitos — acrescentou Alas. — Eles tomam muito cuidado com a reputação da Academia.
— Ora, vamos! — exclamou Alys. — Eu soube de uma história de como o nosso Vanitas invocou uma espécie de vento demoníaco — disse, balançando o polegar em direção à porta às suas costas. — Bem na praça, ali fora.
Teria Drazno contado a ela?
— Foi só um vento. Não houve nenhum demônio envolvido — esclareci.
— E ele também foi açoitado por isso — disse Alastor.
Alys o olhou como se não soubesse dizer se ele estava brincando, depois deu de ombros.
— Bem, eu não gostaria de criar problemas para ninguém — disse, com flagrante insinceridade. — Mas tenho uma curiosidade enorme. E tenho segredos que me disponho a oferecer em troca.
Ao ouvir isso, Leif mostrou-se interessado.
— Que tipo de segredos?
— Todos os vastos e variados segredos do universo feminino — respondeu Alys, com um sorriso. — Acontece que sei várias coisas que podem ajudar a melhorar as suas relações frustrantes com o belo sexo.
Leif chegou mais perto de Alas e perguntou, num cochicho teatral:
— Ela disse frustrantes ou flagelantes?
Alas apontou para o próprio peito, depois para o de Leif.
— Para mim, frustrantes. Para você, flagelantes.
Alys levantou uma sobrancelha e inclinou a cabeça de lado, olhando para nós três com ar expectante.
Pigarreei, sem jeito:
— Nós somos desestimulados a compartilhar os segredos do Arcano. Não é estritamente contra as leis da Academia...
— Na verdade, é, sim — interrompeu Leif, olhando-me como quem pede desculpas. — Contra várias leis.
Alys deu um suspiro dramático, olhando para o teto alto.
— É como eu pensei — disse. — Vocês são mesmo pura conversa. Admitam, vocês não sabem sequer transformar leite em manteiga.
— Eu tenho certeza de que o Leif é capaz de transformar leite em manteiga — comentei. — Só não gosta de fazê-lo porque é preguiçoso.
— Não estou pedindo para vocês me ensinarem magia. Só preciso saber como ela funciona — disse Alys.
Leif olhou para Alas.
— Isso não se enquadraria em Divulgação Não-Autorizada, não é?
— Revelação Ilícita — disse Alas, em tom severo.
Alys inclinou-se para a frente, com ar de conspiração, os cotovelos apoiados sobre a mesa.
— Nesse caso, também estou disposta a financiar uma noite de bebedeira extravagante, muito acima e além desta simples garrafa que vocês têm diante de si. — Voltou os olhos para Wil. — Recentemente, um dos empregados do bar daqui descobriu uma garrafa de pedra toda empoeirada no porão. Não só é um excelente smutten antigo, a bebida dos reis de todos os cealdamos, como também um Merovani.
A expressão de Alastor não se alterou, mas seus olhos negros reluziram.
Corri a vista pelo salão quase todo vazio.
— Orden é uma noite fraca. Não deveremos ter nenhum problema se formos discretos — falei e olhei para os outros dois.
Leif estampava o seu sorriso de garoto.
— Parece razoável. Um segredo por outro.