— Se for mesmo um Merovani — disse Alastor —, eu me disponho a correr o risco de ofender um pouco a sensibilidade dos professores.
— Então, está certo — disse Alys, com um largo sorriso. — Você primeiro.
Leif inclinou-se para a frente na cadeira.
— Provavelmente, a simpatia é a coisa mais fácil de dominar — começou, mas fez uma pausa, como se não soubesse ao certo como prosseguir.
Intervim:
— Sabe como uma talha permite que você levante uma coisa pesada demais para ser erguida com a mão?
Alys fez que sim.
— A simpatia nos permite fazer coisas desse tipo. Mas sem toda a atrapalhação da corda e das polias.
Alastor deixou cair um par de ocros de ferro na mesa e murmurou uma conexão. Empurrou o ocro da direita com um dedo e o da esquerda deslizou pela mesa ao mesmo tempo, imitando o movimento.
Os olhos de Alys arregalaram-se um pouco diante disso e, embora ela não perdesse o fôlego, chegou a respirar fundo. Só então me ocorreu que ela, provavelmente, nunca vira nada parecido. Por causa de meus estudos, era fácil esquecer que uma pessoa podia morar a poucos quilômetros da Academia sem jamais ter sido exposta nem mesmo à mais básica das simpatias.
Justiça seja feita, Alys se recuperou da surpresa sem pestanejar. Com um mínimo de hesitação, esticou um dedo para tocar num dos ocros.
— Era assim que funcionava a sineta do meu quarto — refletiu.
Assenti com a cabeça.
Alas deslizou seu ocro pela mesa e Alys o levantou. O outro ocre também se elevou, balançando no ar.
— É pesado — comentou ela, e em seguida meneou a cabeça. — Certo, porque é como uma polia. Estou levantando os dois.
— Calor, luz e movimento, tudo é apenas energia — falei. — Não podemos criar energia nem fazê-la desaparecer. Mas a simpatia nos permite deslocá-la ou transformá-la de um tipo em outro.
Alys repôs o ocro na mesa e o outro foi atrás.
— E qual é a utilidade disso?
Alas deu um grunhido, divertindo-se vagamente:
— A roda-d'água é útil? — perguntou. — Ou o moinho?
Enfiei a mão num bolso da capa.
— Você já viu uma lâmpada de simpatia? — indaguei.
Ela fez que sim.
Empurrei a lâmpada pela mesa na direção dela.
— Elas funcionam segundo o mesmo princípio. Pegam um pouquinho de calor e o transformam em luz. Convertem um tipo de energia em outra.
— Como um corretor de câmbio — disse Alas.
Alys girou a lâmpada nas mãos, curiosa.
— De onde ela tira o calor?
— O próprio metal retém o calor — expliquei. — Se você a deixar acesa, acabará sentindo o metal esfriar. Se ele ficar frio demais, ela não funcionará. Essa fui eu que fiz, portanto é bem eficiente. O simples calor da sua mão deve bastar para mantê-la em funcionamento.
Alys acionou o interruptor e uma luz vermelha e opaca brilhou num arco estreito.
— Entendo como o calor e a luz podem se relacionar — disse ela, pensativa. — O sol é luminoso e quente. O mesmo se dá com a vela — acrescentou, franzindo o cenho. — Mas o movimento não se enquadra nisso. Uma fogueira não pode empurrar uma coisa.
— Pense no atrito — interpôs Leif. — Quando você fricciona alguma coisa, ela se aquece — disse. Fez uma demonstração, esfregando vigorosamente a mão para a frente e para trás sobre o tecido das calças. — Assim.
Continuou a esfregar a coxa com entusiasmo, sem se dar conta de que, como aquilo acontecia abaixo do tampo da mesa, parecia mais que um pouquinho obsceno.
— Tudo é apenas energia — disse ele. — Se você continuar fazendo isso, vai sentir que o lugar esquenta.
De algum modo, Alys se manteve séria. Mas Alastor começou a rir, cobrindo o rosto com uma das mãos, como se sentisse vergonha de estar sentado à mesma mesa que Leif.
Leif parou e corou de vergonha.
Saí em seu auxílio:
— É um bom exemplo. O eixo da roda de uma carruagem dá uma sensação de calor ao ser tocado. Esse calor vem do movimento da roda. O simpatista consegue fazer a energia seguir o caminho inverso, do calor para o movimento. — Apontei para a lâmpada e concluí: — Ou do calor para a luz.
— Ótimo — disse Alys. — Vocês são cambistas de energia. Mas como fazem isso acontecer?
— Existe um modo de pensar especial, chamado Vileza — respondeu Alastor. — Você acredita tão intensamente numa coisa que ela passa a ser assim.
Levantou um dos ocros e o outro o seguiu.
— Eu creio que esses dois ocres estão ligados, por isso eles estão — disse. De repente, o outro ocro caiu com estrépito no tampo da mesa. — Quando eu paro de acreditar, deixa de ser assim.
Alys apanhou o ocro.
— Então, é como a fé? — indagou, em tom cético.
— Está mais para força de vontade — disse Leif.
Ela inclinou a cabeça.
— Então, por que vocês não chamam de força de vontade?
— Vileza soa melhor — respondeu Alastor.
Meneei a cabeça.
— Se não tivéssemos nomes impressionantes para as coisas, ninguém nos levaria a sério.
Alys fez que sim, com ar apreciativo e um sorriso repuxando os cantos de sua boca encantadora.
— Então, é isso? Energia e força de vontade?
— E a ligação simpática — esclareci. — A analogia do Alas com a roda-d'água é boa. A ligação é como um cano que leva à roda-d'água. A ligação ruim é como um cano cheio de furos.
— O que compõe uma boa ligação? — perguntou Alys.
— Quanto mais semelhantes entre si são dois objetos, melhor a ligação. Como isto. — Derramei um pouco do vinho pálido na minha taça e molhei nele a ponta do dedo. — Esta é uma ligação perfeita com o vinho — expliquei. — Uma gota do próprio vinho.
Levantei-me e fui até a lareira próxima. Murmurei uma conexão e deixei uma gota cair do meu dedo no suporte de metal quente que sustentava as toras de lenha incandescentes.
Voltei a me sentar no momento em que o vinho da minha taça começou a soltar vapor e a ferver.
— E é por isso — disse Alastor, com ar sinistro — que nunca devemos deixar um simpatista ficar com uma gota do nosso sangue.
Alys olhou para ele e novamente para a taça, empalidecendo.
— Pelas mãos negras, Alas! — disse Leif, com um olhar horrorizado. — Isso não é coisa que se diga. — Virou-se para Alys e falou, em tom circunspecto: — Nenhum simpatista jamais faria uma coisas dessas. Chama-se Malfeitoria e nós não fazemos isso. Nunca.
Alys conseguiu exibir um sorriso, embora fosse meio forçado.
— Se ninguém nunca o faz, por que isso tem nome?
— Costumavam fazer — respondi. — Mas não fazem mais. Já se vão 100 anos.
Deixei a conexão se desfazer e a fervura do vinho cessou. Alys estendeu a mão e tocou na garrafa ao lado.
— Por que esse vinho não ferveu também? — perguntou, intrigada. — É o mesmo vinho.
Toquei minha têmpora:
— A Vileza. Minha mente fornece o foco e a direção.
— Se essa é uma conexão boa, o que é uma conexão ruim?
— Olhe, deixe eu lhe mostrar — pedi. Peguei minha bolsa, calculando que as moedas pareceriam menos assustadoras depois do comentário do Alastor. — Leif, você tem um lumen sólido?
Ele tinha e dispus duas linhas de moedas na mesa diante de Alys. Apontei para um par de ocros de ferro e murmurei uma conexão.
— Levante-o — pedi.
Ela levantou um dos ocros e o outro o seguiu.
Apontei para o segundo par: um ocro e o único crimo de prata que me restava.
— Agora, esse.
Alys pegou o segundo ocro e o talento subiu atrás dele. Ela movimentou os dois braços para cima e para baixo, como os pratos de uma balança.
— Este segundo é mais pesado.
Assenti com a cabeça.
— Metais diferentes. São menos semelhantes e por isso é preciso pôr mais energia.
Apontei para o ocro e o lumen de prata, murmurando uma terceira conexão.
Alys pôs os dois primeiros ocros na mão esquerda e levantou o terceiro com a direita. O lumen de prata acompanhou o movimento. Ela meneou a cabeça.
— E este é ainda mais pesado, porque tem uma forma diferente e é um metal diferente.
— Exato — concordei. Apontei para o quarto e último par: um ocro e um pedaço de giz.
Alys quase não conseguiu introduzir os dedos por baixo do ocre para levantá-lo.
— É mais pesado que todos os outros juntos — comentou. — Deve ter mais de um quilo!
— Ferro e giz formam uma péssima conexão — disse Alas. — Má transferência.
— Mas vocês disseram que a energia não podia ser criada nem destruída — disse Alys. — Se eu tenho que fazer força para levantar esse pedacinho de giz, para onde vai a energia extra?
— Inteligente — disse Alastor, com um risinho gutural. — Muito inteligente. Levei um ano para pensar em fazer essa pergunta. — Fitou-a com admiração e explicou: — Parte da energia se perde no ar. — Abanou uma das mãos: — Parte vai para os próprios objetos e parte vai para o corpo do simpatista que controla a conexão. — Ele franziu o cenho: — Isso pode se tornar perigado.
— Perigoso — corrigiu Leif, com delicadeza.
Alys olhou para mim.
— Quer dizer que, neste momento, você acredita que cada ocro desses está ligado a cada uma dessas outras coisas?
Fiz que sim.
Ela movimentou as mãos. As moedas e o giz balançaram no ar.
— Isso não é... difícil?
— É — respondeu Alastor. — Mas o nosso Vanitas é meio exibido.
— Foi por isso que eu fiquei tão quieto — disse Leif. — Eu não sabia que era possível sustentar quatro conexões de uma vez. É impressionante pra diabo.
— Posso sustentar cinco, se for preciso — esclareci. — Mas esse é basicamente o meu limite.
Leif sorriu para Alys.
— Mais uma coisa. Veja isto! — E apontou para o pedaço flutuante de giz.
Não aconteceu nada.
— Ora, vamos — disse Leif em tom queixoso. — Estou tentando mostrar uma coisa a ela.
— Então, mostre — retruquei, com ar convencido, reclinando-me na cadeira.
Ele respirou fundo e olhou fixamente para o pedaço de giz, que tremeu.
Alastor inclinou-se para Alys e explicou:
— Um simpatista pode se opor à Vileza de outro. É só uma questão de acreditar firmemente que o ocro não é nada parecido com o lumen de prata.
Alas apontou-o e o lumen caiu com estardalhaço no tampo da mesa.
— Sujeira — protestei, rindo. — Dois contra um não é justo.
— Neste caso, é — disse Leif e o giz tornou a tremer.
— Ótimo — falei, respirando fundo. — Dê o que você tem de pior.
O giz caiu prontamente na mesa, seguido pelo ocro. Mas o crimo de prata permaneceu onde estava.
Leif reclinou-se na cadeira.
— Você é assustador — disse, balançando a cabeça. — Perfeito, você venceu.
Alastor acenou com a cabeça e também relaxou.
Alys olhou para mim.
— Quer dizer que a sua Vileza é mais forte que os deles dois juntos?
— É provável que não — respondi, sendo gentil. — Se eles tivessem prática em trabalhar juntos, provavelmente poderiam me derrubar.
Os olhos dela correram pelas moedas espalhadas.
— Então, é só isso? — perguntou, soando ligeiramente decepcionada. — É tudo só uma troca de energia, como o câmbio de dinheiro?
— Existem outras artes — falei. — O Leif faz alquimia, por exemplo.
— Enquanto eu me concentro em ser bonito — disse Alastor.
Alys olhou-nos mais uma vez, com uma expressão séria.
— Existe algum tipo de magia que só... — moveu vagamente os dedos. — Que só... meio que escreve coisas?
— Existe a siglística — respondi. — Como naquela sineta do seu quarto. É como uma simpatia permanente.
— Mas continua a ser uma forma de câmbio, certo? Apenas energia?
Fiz que sim.
Alys pareceu sem jeito ao perguntar:
— E se alguém lhe dissesse conhecer um tipo de mágica que faz mais do que isso? Uma magia em que a pessoa meio que escreve coisas e tudo que ela escreve se torna verdade?
Baixou os olhos, nervosa, com os dedos fazendo desenhos no tampo da mesa.
— E aí, se alguém visse o escrito, mesmo que não soubesse lê-lo, aquilo se tornaria verdade para ele. A pessoa pensaria uma certa coisa ou agiria de certa maneira, dependendo do que dissesse o escrito.
Alys tornou a erguer os olhos para nós, com uma expressão que era uma estranha mescla de curiosidade, esperança e insegurança.
Nós três nos entreolhamos. Alastor deu de ombros.
— Parece bem mais fácil do que a alquimia — disse Leif. — Eu preferiria fazer isso a passar o dia inteiro desvinculando princípios.
— Parece magia de contos de fadas — comentei. — Coisa de livros de histórias, que não existe de verdade. Eu, com certeza, nunca ouvi falar de nada semelhante na Academia.
Alys olhou para o tampo da mesa, onde seus dedos continuavam a fazer desenhos na madeira. Estava com a boca levemente franzida, o olhar distante.
Eu não saberia dizer se estava decepcionada ou simplesmente pensativa.
— Por que você pergunta?
Ela me olhou e sua expressão resvalou prontamente para um sorriso irônico. A pergunta foi afastada com um dar de ombros.
— Foi só uma coisa que eu ouvi — disse, com ar indiferente. — Achei que parecia bom demais para ser verdade.
Deu uma olhadela para trás e comentou:
— Parece que sobrevivi ao meu pretendente superentusiasmado.
Alas levantou a palma da mão, dizendo:
— Nós tínhamos um acordo. Envolvia uma bebida e havia um segredo de mulher.
— Vou dar uma palavrinha com o empregado do bar antes de sair — disse Alys, os olhos dançando com ar divertido. — Quanto ao segredo, há duas damas sentadas atrás de você. Passaram a maior parte da noite lançando olhares para vocês. A de verde gosta do Leif, enquanto a de cabelo louro curto parece ter uma queda por cealdamos que se concentram em ser bonitos.
— Já as tínhamos notado — disse Alastor, sem se virar para olhar. — Infelizmente, elas já estão na companhia de um jovem cavalheiro sereniano.
— O cavalheiro não está com elas num sentido romântico — disse Alys. — Enquanto as senhoras lançavam olhares para vocês, o cavalheiro andou deixando bastante claro que prefere os grisalhos — e ela pôs a mão no meu braço, com ar possessivo. — Infelizmente para ele, eu já declarei meus direitos de posse.
Lutei contra a ânsia de olhar para a mesa.
— Está falando sério? - perguntei.
— Não se preocupe — disse ela a Alas e Leif. — Vou mandar o Droch distrair o sereniano. Isso deixará a porta aberta para vocês dois.
— O que o Droch vai fazer? — perguntou Leif, dando uma risada. — Malabarismo?
Alys dirigiu-lhe um olhar franco.
— O que foi? — disse Leif. — O q-... O Droch não é dissimulado.
Alys o fitou, piscando os olhos, e disse:
— Ele e o Radagon são proprietários da Foles, juntos. Você não sabia?
— Eles são donos do lugar — disse Leif. — Não estão... juntos, você sabe.
Alys riu.
— É claro que estão.
— Mas o Droch é cheio de mulheres até o pescoço — protestou Leif. — Ele... ele não pode...
Alys o olhou como se ele fosse um simplório, depois virou-se para Alas e para mim:
— Vocês dois sabiam, não é?
Alastor encolheu os ombros.
— Eu não tinha nenhum conhecimento disso. Mas não é de admirar que ele seja basha. É bem atraente para isso — comentou. Hesitou, franzindo o cenho. — Basha. Qual é a palavra para isso por aqui? Para o homem que é íntimo de mulheres e homens.
— Sortudo? — sugeriu Alys. — Cansado? Ambidestro?
— Ambissextro — corrigi.
— Não serve — repreendeu-me Alys. — Se não tivermos nomes impressionantes para as coisas, ninguém nos levará a sério.
Leif piscou os olhos para ela, obviamente incapaz aceitar a situação.
— Veja — disse Alys, devagar, como se desse a explicação a uma criança —, tudo é apenas energia. E podemos direcioná-la de maneiras diferentes. — Abriu num sorriso brilhante, como se houvesse descoberto a maneira perfeita de explicar a situação a ele: — É como quando você faz isso — e começou a esfregar vigorosamente as mãos nas coxas, para cima e para baixo, imitando o movimento anterior de Leif. — Tudo é só energia.
A essa altura, Alastor escondia o rosto nas mãos, balançando os ombros numa risada silenciosa. A expressão de Leif continuou incrédula e confusa, mas, nesse momento, assumiu também um rubor vermelho furioso.
Levantei-me e peguei o cotovelo de Alys.
— Deixe o pobre menino em paz — disse-lhe, conduzindo-a gentilmente para a porta. — Ele é de Aturia. Lá eles são meio travados nessas partes.