CLXIX. PÔNEI

A noite seguinte me encontrou na Pônei Dourado, possivelmente a melhor hospedaria da margem do rio em que ficava a Academia. Gabava-se de cozinhas sofisticadas, uma bela estrebaria e funcionários qualificados e obsequiosos. Era o tipo de estabelecimento de alta classe que só os estudantes mais ricos podiam bancar.

Eu não estava do lado de dentro, é claro. Agachava-me nas sombras profundas do telhado, tentando não pensar no fato de estar planejando algo que ia muito além dos limites da Conduta Imprópria. Se eu fosse apanhado invadindo os aposentos do Drazno, sem dúvida seria expulso.

Era uma noite clara de outono, com um vento forte. O que era uma bênção duvidosa. O som das folhas farfalhando encobriria qualquer pequeno ruído que eu fizesse, mas eu temia que as pontas esvoaçantes da minha capa pudessem chamar atenção.

Nosso plano era simples. Eu tinha jogado um bilhete lacrado por baixo da porta de Drazno. Era um convite coquete e sem assinatura para um encontro em Torrente. Alas o escrevera, pois Leif e eu havíamos julgado que ele tinha a letra mais feminina.

Era uma tentativa impossível, mas calculei que Drazno fisgaria a isca. Eu preferiria que alguém o distraísse pessoalmente, porém, quanto menos gente envolvida, melhor. Poderia ter pedido a ajuda de Alys, mas queria que a devolução do anel fosse uma surpresa.

Alas e Leif eram minhas sentinelas, Alas no salão de hóspedes, Leif no beco junto à porta dos fundos. A tarefa deles era me avisar quando o Drazno saísse do prédio. E, o que era mais importante, os dois me avisariam caso ele voltasse antes de eu terminar de vasculhar seus aposentos.

Senti um puxão firme no bolso direito, quando o graveto de carvalho chacoalhou nitidamente, duas vezes. Passado um momento, o sinal se repetiu. Alastor estava me informando que Drazno havia saído da hospedaria.

No meu bolso esquerdo havia um raminho de bétula. Leif tinha outro parecido. Era um sistema simples e eficaz de sinalização para quem soubesse simpatia suficiente para fazê-lo funcionar.

Rastejei pela inclinação do telhado, movendo-me com cuidado sobre as telhas pesadas de argila. Dos meus dias de garoto em Notrean, eu sabia que elas tendiam a rachar e escorregar, e eram capazes de fazer o sujeito perder o pé de apoio.

Cheguei à borda do telhado, 4,5 metros acima do chão. Estava longe de ser uma altura estonteante, porém era mais do que suficiente para se quebrar uma perna ou o pescoço. Um pedaço estreito de telhado corria abaixo da longa fileira de janelas do segundo andar. Eram 10 ao todo e as quatro do meio pertenciam ao Drazno.

Flexionei os dedos algumas vezes para soltá-los e comecei a me esgueirar pela faixa estreita de telhado.

O segredo é o sujeito se concentrar no que está fazendo. Não olhar para o chão. Não olhar para trás. Ignorar o mundo e confiar em que ele retribuirá o favor. Era essa a verdadeira razão de eu estar usando minha capa. Se fosse avistado, não seria nada além de uma forma escura na noite, impossível de identificar. Assim eu esperava.

A primeira janela estava apagada e a segunda, com as cortinas cerradas. Mas a terceira tinha uma iluminação tênue. Hesitei. Quando se tem a pele alva como a minha, nunca se deve espiar por uma janela à noite. O rosto se destaca contra a escuridão como a lua cheia.

Em vez de me arriscar a olhar para dentro, vasculhei os bolsos da capa até achar um pedaço de sucata de metal da Ficiaria que eu tinha polido até transformá-lo num espelho improvisado. Cuidadosamente, usei-o para espiar o canto e o interior da janela.

Lá dentro, havia algumas lamparinas tênues e uma cama de dossel do tamanho de todo o meu quarto na Grilo. A cama estava ocupada. Ativamente ocupada. Ainda por cima, parecia haver mais membros nus do que duas pessoas poderiam justificar. Infelizmente, meu pedaço de latão era pequeno e não pude ver a cena em toda a sua complexidade, caso contrário, poderia ter aprendido coisas muito interessantes.

Considerei brevemente a ideia de voltar e chegar aos cômodos de Drazno pelo outro lado, mas veio uma súbita lufada de vento que fez as folhas saltarem pelas pedras do calçamento e que tentou me arrancar em suas garras do meu apoio estreito. Com o coração disparado, resolvi correr o risco de passar por essa janela. Calculei que as pessoas lá dentro tinham coisas melhores a fazer do que contemplar estrelas.

Baixei o capuz da capa e segurei as bordas com os dentes, cobrindo o rosto e deixando as mãos livres. Assim, meio às cegas, avancei aos poucos, ouvindo atentamente qualquer sinal de ter sido avistado. Houve alguns ruídos surpresos, mas não pareceram ter nada a ver comigo.

A primeira janela do Drazno era um vitral requintado. Bonita, mas imprópria para ser aberta. A seguinte era perfeita: uma janela dupla larga. Tirei um pedaço fino de cobre de um dos bolsos da capa e o usei para soltar o trinco simples que a mantinha fechada.

Quando a janela não abriu, percebi que Drazno também lhe acrescentara uma tranca móvel. Essa exigiu longos minutos de trabalho complicado, só com uma das mãos e na escuridão quase completa. Felizmente, o vento tinha amainado, pelo menos naquele momento.

Então, depois de vencer a tranca, vi que a janela ainda não se mexia. Comecei a maldizer a paranoia do Drazno, enquanto buscava a terceira tranca. Procurei por quase 10 minutos até me dar conta de que a janela estava simplesmente emperrada.

Puxei-a umas duas vezes, o que não é tão fácil quanto parece. Você sabe, ninguém põe puxadores do lado de fora. Acabei me entusiasmando demais e puxei com muita força. A janela se abriu e meu peso se deslocou para trás. Inclinei-me por cima da borda do telhado, lutando contra todos os reflexos que me instigavam a dar um passo atrás e recuperar o equilíbrio, por saber que, atrás de mim, não havia nada além de 4,5 metros de vazio.

Sabe aquela sensação de quando a gente inclina demasiadamente a cadeira e começa a cair para trás? Foi meio parecido com isso, misturado com autorrecriminação e medo da morte. Agitei os braços, sabendo que isso não ajudaria, com a cabeça repentinamente oca, por causa do pânico.

O vento me salvou. Soprou forte quando eu oscilava na borda do telhado, dando-me um empurrão que foi a conta certa para eu recobrar o equilíbrio. Um de meus braços agitados agarrou a janela, agora aberta, e entrei aos trambolhões, desesperado, sem me importar com o barulho que fazia.

Uma vez atravessada a janela, agachei-me no chão, com a respiração ofegante. Meu coração mal começava a se aquietar quando o vento pegou a janela e a bateu com força acima da minha cabeça, dando-me outro susto enorme.

Peguei minha lâmpada de simpatia, ajustei o interruptor numa regulagem tênue e corri o arco estreito de luz pelo quarto. Kelvin tivera razão ao chamá-la de lâmpada de ladrão. Era perfeita para esse tipo de movimentação furtiva.

Eram quilômetros para ir e voltar de Torrente e eu confiava em que a curiosidade do Drazno o manteria esperando sua admiradora secreta por pelo menos meia hora. Normalmente, procurar uma coisa tão pequena quanto um anel seria trabalho para um dia inteiro. Mas imaginei que Drazno nem pensaria em escondê-lo. Na sua cabeça, não se tratava de algo que ele houvesse roubado. Ele o consideraria uma bugiganga ou um troféu.

Tratei de vasculhar metodicamente seus aposentos. O anel não estava na cômoda nem na mesinha de cabeceira. Não estava em nenhuma gaveta da escrivaninha, nem tampouco na bandeja de suas joias no quarto de vestir. Ele nem sequer tinha uma caixa de joias trancada, apenas uma bandeja com toda sorte de alfinetes, anéis e correntes, espalhados sem o menor cuidado.

Deixei tudo em seus lugares, o que não quer dizer que não tenha pensado em depenar completamente o canalha. Meia dúzia de suas joias pagaria minhas taxas escolares por um ano. Mas isso contrariava meu plano: entrar, achar o anel e sair.

Desde que eu não deixasse nenhum indício da minha visita, imaginava que o Drazno simplesmente presumiria ter perdido o anel, se é que notaria seu desaparecimento. Era o tipo de crime perfeito: sem suspeitas, sem perseguições, sem consequências.

Além disso, é sabidamente difícil passar adiante joias roubadas numa cidade tão pequena quanto Torrente. Seria fácil demais alguém ligá-las a mim.

Dito isto, nunca afirmei ser santo e havia muitas oportunidades para diabruras nos aposentos de Drazno. Assim, fiz minhas vontades. Enquanto verificava os bolsos dele, soltei algumas costuras, para haver uma boa chance de ele rasgar os fundilhos da próxima vez que se sentasse ou montasse seu cavalo. Afrouxei a alça da tampa da chaminé, para que ela acabasse caindo e seu quarto se enchesse de fumaça, enquanto ele se atrapalhava para prendê-la de novo.

Estava tentando pensar em algo para fazer com seu maldito e irritante chapéu de plumas quando o graveto de carvalho no meu bolso deu uma sacudida violenta, o que me causou um sobressalto. Em seguida, ele tornou a se mexer e partiu-se ao meio. Soltei impropérios terríveis entre dentes. Não podia fazer mais de 20 minutos que Drazno saíra. O que o teria trazido de volta tão depressa?

Desliguei a lâmpada de simpatia e a enfiei na capa. Depois, corri para o quarto ao lado, a fim de fugir pela janela. Era irritante ter tido todo aquele trabalho para entrar só para sair de novo, mas, desde que Drazno não soubesse que alguém tinha invadido seus aposentos, eu poderia simplesmente voltar outra noite.

Mas a janela não se abriu. Empurrei com mais força, perguntando-me se ela teria emperrado ao fechar, batida pelo vento.

Então vislumbrei uma tira fina de latão que corria pela parte interna do parapeito. Não consegui ler os símbolos siglísticos àquela luz tênue, mas reconheço sistemas de proteção quando os vejo. Isso explicava por que Drazno tinha voltado tão cedo.

Ele sabia que alguém tinha invadido seus aposentos. E mais: os melhores tipos de proteção não apenas avisavam sobre a presença de um intruso, como também eram capazes de vedar portas ou janelas para trancar o ladrão do lado de dentro.

Disparei para a porta, com as mãos rebuscando nervosamente os bolsos da capa, à procura de algo comprido e fino que eu pudesse usar para estragar a fechadura. Não encontrando nada que servisse, peguei uma pena na escrivaninha dele, enfiei-a no buraco da fechadura e dei um puxão com força para o lado, quebrando a ponteira de metal dentro do trinco. Um minuto depois, ouvi um áspero ruído metálico, quando Drazno tentou abrir a porta pelo lado de fora, atrapalhando-se e xingando por não conseguir enfiar a chave.

A essa altura, eu já estava de novo na janela, passando a lâmpada para lá e para cá na tira de latão e murmurando runas baixinho. Era bastante simples. Eu poderia inutilizá-la, raspando um punhado de runas de conexão, abrir a janela e fugir.

Voltei correndo à sala de estar e peguei o abridor de cartas na escrivaninha, derrubando o tinteiro tampado, na pressa. Já ia começando a apagar as runas quando me dei conta da estupidez que seria isso. Qualquer ladrão ordinário poderia invadir os aposentos de Drazno, mas o número de pessoas que sabiam o suficiente de siglística para estragar um sistema de proteção era muito menor. Seria o mesmo que assinar meu nome na moldura da janela.

Levei um momento para reordenar as ideias, devolvi o abridor de cartas à escrivaninha e repus o tinteiro no lugar. Voltei e examinei melhor a tira comprida de latão. Quebrar uma coisa é simples, compreendê-la é mais difícil.

Isso é duplamente verdadeiro quando você se confronta com xingamentos resmungados atrás de uma porta, acompanhados pelo estalar e chacoalhar de alguém tentando desobstruir uma fechadura.

Então fez-se silêncio no corredor, o que foi ainda mais inquietante. Consegui enfim decifrar a sequência de defesas, enquanto ouvia diversos conjuntos de passos do lado de fora. Dividi a mente em três partes e concentrei minha Vileza, empurrando a janela. Minhas mãos e pés esfriaram quando retirei calor do corpo para neutralizar o sistema de defesa, tentando não entrar em pânico ao ouvir a forte pancada de algo pesado batendo na porta.

A janela se abriu e passei num atropelo para o telhado, por cima do caixilho, ao mesmo tempo que a coisa batia de novo na porta e a madeira estalava, se quebrando. Eu ainda poderia ter fugido em segurança, mas, ao apoiar o pé direito no telhado, senti uma telha partir-se sob o meu peso. Enquanto meu pé escorregava, agarrei-me ao parapeito com as duas mãos para me firmar.

Então o vento soprou, pegando a janela aberta e jogando-a contra minha cabeça. Levantei um braço para proteger o rosto e ela atingiu meu cotovelo, quebrando uma das pequenas vidraças. O impacto me empurrou de lado sobre o pé direito, que acabou de escorregar o que faltava até eu perder o apoio.

Assim, já que todas as minhas outras opções pareciam ter-se esgotado, resolvi que seria melhor cair do telhado.

Agindo por puro instinto, minhas mãos tatearam loucamente. Desloquei mais algumas telhas e me agarrei à borda do telhado. Não era um bom apoio, mas reduziu minha velocidade e girou meu corpo, para que eu não caísse de cabeça ou de costas. Em vez disso, aterrissei feito um gato, de cara.

Só que as pernas do gato são todas do mesmo comprimento. Eu caí sobre as mãos e os joelhos. As mãos apenas arderam, mas os joelhos, ao baterem nas pedras do calçamento, doeram mais do que qualquer coisa que eu já havia sentido em minha jovem vida. A dor foi lancinante e eu me ouvi ganir feito um cachorro que recebeu um pontapé.

Um segundo depois, uma saraiva de pesadas telhas vermelhas caiu em toda a minha volta. A maioria se espatifou nas pedras, porém uma delas me atingiu na parte posterior da cabeça, enquanto outra me acertou bem no cotovelo, deixando todo o meu antebraço dormente.

Não perdi um instante sequer pensando nisso. Um braço quebrado se curaria, mas a expulsão da Academia duraria a vida inteira. Levantei o capuz e me forcei a ficar de pé. Usando uma das mãos para garantir que o capuz ficasse no lugar, dei alguns passos cambaleantes até me colocar sob o beiral da Pônei Dourado, longe da visão da janela do segundo andar.

Depois disso, saí correndo, correndo, correndo...