Os ataques não eram particularmente frequentes, mas chegavam sem nenhum aviso.
No quinto dia depois de iniciarmos a busca do esquema, quando Drazno devia estar se sentindo especialmente obstinado ou entediado, houve oito deles: um quando eu estava acordando no quarto do Alastor, dois durante o almoço, dois quando eu estudava fisionomia na Iátrica e três em rápida sucessão quando eu forjava ferro a frio na Ficiaria.
No dia seguinte, não houve ataque algum. Sob certos aspectos, isso foi pior. Nada além de horas à espera de que se completasse a tarefa.
Por isso, aprendi a manter uma Vileza dura como ferro enquanto comia ou tomava banho, assistia às aulas ou conversava com meus professores e amigos. Mantive-o até ao duelar na cadeira de Simpatia Especializada. No sétimo dia de busca, essa distração e meu esgotamento geral levaram à minha primeira derrota nas mãos de dois colegas de turma, o que pôs fim a minha sequência de duelos invictos.
Eu poderia dizer que estava fatigado demais para me incomodar, mas não seria toda a verdade.
No nono dia de nossa busca, Alastor, Leif e eu estávamos examinando livros na nossa cabine de leitura quando a porta se abriu e Faela entrou furtivamente. Carregava um único livro, em vez da sua braçada usual. E tinha a respiração ofegante.
— Achei! — disse ela, com os olhos brilhantes e a voz tão empolgada que chegava a ser quase feroz. — Encontrei um exemplar.
Jogou-nos o livro, para podermos ler o folheado a ouro na lombada grossa de couro: Facci Moen ve Scrivani.
Tínhamos sabido do Scrivani logo no começo da busca. Tratava-se de uma vasta coleção de esquemas de um artífice chamado Urthur, morto fazia muito tempo. Doze grossos volumes de descrições e diagramas detalhados.
Ao encontrarmos o índice, havíamos pensado que nossa busca estava quase encerrada, pois ele listava "Diagrammas detalhando a cóstruição de um maravilhoso cinco-grammo, o qual se provou de summa efficiencia na prevenção de sympatias maleficentes". Localização: volume 9, página 82.
Localizamos oito versões do Scrivani no Arquivo, mas em momento algum encontramos o conjunto completo. Os volumes 7, 9 e 11 sempre faltavam, sem dúvida escondidos na biblioteca particular do Kelvin.
Havíamos passado dois dias inteiros procurando, até finalmente desistir do Scrivani. Nesse momento, porém, Faela o havia encontrado; não apenas parte do quebra-cabeça, mas o conjunto inteiro.
— Esse é o certo? — perguntou Leif, com uma mistura de empolgação e incredulidade na voz.
Faela retirou a mão devagar da parte inferior da encadernação, revelando o número gravado em ouro luminoso: 9.
Levantei aos tropeços da cadeira e quase a derrubei, na pressa de chegar até Faela. Mas ela sorriu e levantou o livro bem alto, acima da cabeça.
— Primeiro você tem que me prometer um jantar — disse.
Ri e tentei alcançar o livro.
— Quando isto acabar, levarei vocês todos para jantar fora — prometi.
Faela deu um suspiro.
— E tem que me dizer que sou a melhor escriba de todos os tempos.
— Você é a melhor escriba de todos os tempos — afirmei. — É duas vezes melhor do que o Alas jamais conseguiria ser, mesmo que tivesse uma dúzia de mãos e uma centena de olhos extras.
— Eca! — exclamou ela e me entregou o livro. — Aí está.
Corri para a mesa e abri o volume.
— As páginas estarão faltando ou alguma coisa assim — comentou Leif com Alas, em voz baixa. — Não pode ser tão fácil, depois de todo esse tempo. Sei que alguma coisa vai travar a nossa roda.
Parei de virar as páginas e esfreguei os olhos, espremendo-os diante da escrita.
— Eu sabia — disse Leif, que inclinou a cadeira para trás sobre duas pernas e tampou os olhos cansados com as mãos. — Deixe-me adivinhar, ele está com caruncho cinéreo. Ou com traças, ou os dois.
Faela chegou mais perto e olhou por cima do meu ombro.
— Ah, não! — exclamou, pesarosa. — Nem olhei para ele, estava empolgada demais. — Levantou os olhos para nós: — Algum de vocês sabe ler mitreziano antigo?
— Eu leio aquela algaravia pipilante que vocês chamam de aturiano — disse Wilem, com azedume. — Considero-me suficientemente poliglota.
— Só noções superficiais — respondi. — Algumas dezenas de palavras.
— Eu leio — informou Leif.
— Verdade? — perguntei, sentindo meu peito encher-se outra vez de esperança. — Onde você aprendeu?
Leif correu a cadeira pelo chão até poder ver o livro.
— No meu primeiro período como A'lun, li um pouco de poesia em mitreziano antigo. Estudei-o durante três períodos com o Reitor.
— Nunca me interessei por poesia — comentei.
— O prejuízo é seu — disse Leif, com ar distraído, folheando algumas páginas. — A poesia em mitreziano antigo é atroadora. Esmurra a gente.
— Como é a métrica? — perguntei.
— Não entendo nada de métrica — declarou Leif, ainda distraído, deslizando o dedo pela página à sua frente. — É assim:
"Buscamos o Scrivani, obra verbal de Urthur,
Há muito no registro perdida, por toda a esperança esquecida.
Mas logo por amizade encontrada e bela a sua portadora.
Inflamada veio a caçadora, Faela, no alvoroço do achado,
Arfante o seu peito, o sangue subindo alto
Para madurar a floração da rubra face da beleza."
— É esse tipo de coisa — disse Leif, displicente, ainda examinando a página à sua frente.
Vi Faela virar a cabeça para fitá-lo, quase como se estivesse surpresa por vê-lo sentado ali.
Não. Foi quase como se, até aquele ponto, ele houvesse apenas ocupado espaço ao redor dela, como uma peça do mobiliário. Mas dessa vez, ao fitá-lo, ela o absorveu por inteiro. O cabelo cor de areia, a linha do queixo, a largura dos ombros sob a camisa. Dessa vez, ao olhar, ela realmente o viu.
Deixe-me dizer uma coisa: testemunhar esse momento valeu todo o tempo terrível e irritante que fora gasto na pesquisa do Arquivo. Valeu o sangue e o medo da morte vê-la apaixonar-se por ele. Só um pouquinho. Só o primeiro tênue suspiro de amor, tão leve que, provavelmente, nem ela mesma o notou.
Não foi dramático como um relâmpago seguido pelo estrondo do trovão. Foi mais parecido com a pedra riscando o aço e a centelha esmaecendo, quase depressa demais para ser vista. Mas, ainda assim, a gente sabe que ela está ali, nos recônditos, onde não é possível avistá-la, como um atiçar de gravetos.
— Quem leu poesia em mitreziano antigo para você? — perguntou Alas.
Faela piscou os olhos e se virou outra vez para o livro.
— O Ventriloquista — respondeu Leif. — Na primeira vez que o encontrei.
— O Ventriloquista! — exclamou Alas, com ar de quem queria arrancar os cabelos. — Que Deus me esmurre, por que não o procuramos para falar disto? Se existe uma tradução desse livro em aturiano, ele deve saber onde está!
— Pensei na mesma coisa umas 100 vezes, nesses últimos dias — disse Leif. — Mas ele não tem passado bem ultimamente. Não seria de grande ajuda.
— E o Ventriloquista sabe o que está incluído na lista de restrições — interpôs Faela. — Duvido que simplesmente entregasse uma coisa dessas.
— Todos conhecem esse tal de Ventriloquista, menos eu? — indaguei.
— Os escribas o conhecem — disse Alastor.
— Acho que sei montar a maior parte desse quebra-cabeça — disse Leif, voltando-se para mim. — Esse diagrama faz algum sentido para você? Para mim, é um perfeito disparate.
— Essas são as runas — assinalei. — Claras como o dia. E aqueles são símbolos metalúrgicos. — Examinei mais de perto. — O resto... não sei. Talvez sejam abreviaturas. É provável que possamos decifrá-las à medida que formos avançando.
Sorri e me virei para Faela.
— Parabéns, você continua a ser a melhor escriba de todos os tempos.
Com a ajuda do Leif, levei dois dias para decifrar os diagramas do Scrivani. Melhor dizendo, levei um dia para decifrá-los e mais outro para conferir e revisar nosso trabalho.
Uma vez sabendo construir meu gramo, comecei a jogar um estranho tipo de esconde-esconde com Drazno. Eu precisava liberar toda a minha concentração ao trabalhar na siglística. Isso significava baixar a guarda. Assim, eu só podia me dedicar ao gramo quando tinha certeza de que Drazno estava ocupado com outra coisa.
O gramo era um trabalho delicado, uma gravação miúda e sem margem de erro. E o fato de eu ser obrigado a roubar tempo aos bocadinhos não ajudava. Meia hora enquanto Drazno tomava um café com uma jovem numa cafeteria pública. Quarenta minutos enquanto ele assistia a uma aula de lógica simbólica. Uma hora e meia enquanto ele trabalhava na recepção do Arquivo.
Quando não podia me dedicar ao gramo, eu me empenhava em meu projeto favorito. De certo modo, foi uma sorte o Kelvin ter-me encarregado de fazer algo digno de um A'scor. Isso me deu a desculpa perfeita para todo o tempo que eu passava na Ficiaria.
O resto do tempo eu gastava relaxando no salão de hóspedes da Pônei Dourado. Precisava me estabelecer como um freguês habitual do lugar. Desse modo, as coisas pareceriam menos suspeitas.