Saí da aula de Elohkar de mau humor.
Se bem que, para ser franco, meu humor dos últimos dias não tinha sido outra coisa senão diferentes variações do péssimo. Eu procurava escondê-lo de meus amigos, mas estava começando a desabar sob o peso daquilo tudo.
A gota d'água tinha sido a perda do meu alaúde. Tudo o mais eu havia aceitado, dançando conforme a música: a ardência cáustica no peito, a dor constante nos joelhos, a falta de sono, o medo persistente de deixar minha Vileza escapar na hora errada e, de repente, começar a vomitar sangue.
Eu vinha lidando com aquilo tudo: minha pobreza desesperadora, minha frustração com as aulas de Elohkar. Até com a nova corrente subterrânea de angústia que vinha de saber que a Devi me esperava do outro lado do rio, com o coração cheio de ódio, três gotas do meu sangue e uma Vileza que parecia o oceano na tormenta.
Mas a perda do alaúde fora demais. Não era só que eu precisasse dele para ganhar casa e comida na Grilo. Não era só que meu alaúde fosse a chave da minha capacidade de ganhar a vida, se viesse a ser expulso da Academia.
Não. A verdade simples era que, com minha música, eu conseguia lidar com o resto. Minha música era a cola que me mantinha inteiro. Apenas dois dias sem ela e eu já estava me desfazendo em pedaços.
Depois da aula de Elohkar, não suportei a ideia de passar outras horas debruçado sobre uma bancada de trabalho na Ficiaria. Minhas mãos doeram ao pensar nisso e havia areia nos meus olhos pela falta de sono.
Assim, em vez disso, voltei à taberna do Grilo para almoçar cedo. Devia estar mesmo com uma aparência deplorável, porque ele me trouxe uma fatia dupla de toucinho com a sopa e, de quebra, uma meia cerveja.
— Como foi o seu jantar, se não se importa com a pergunta? — indagou o Grilo, encostado no bar.
Levantei a cabeça para ele.
— Perdão, como disse?
— Com a sua jovem senhorita. Não sou de bisbilhotar, mas o portador apenas largou a mensagem. Tive de lê-la para ver para quem era.
Lancei para Grilo meu olhar mais vazio.
Ele me fitou, intrigado, e franziu o cenho.
— A Laura não lhe deu seu bilhete?
Neguei com a cabeça e Grilo praguejou, irritado:
— Juro que há dias em que a luz deve passar direto pela cabeça dessa moça.
Começou a procurar algo atrás do balcão do bar.
— Um mensageiro deixou um bilhete para você anteontem. Eu disse à Laura que o desse a você na sua chegada. Aqui está ele — falou, enquanto apanhava um pedaço de papel úmido e bastante sujo para me entregar.
O bilhete dizia:
"Vanitas,
Estou de volta à cidade e apreciaria imensamente ter hoje a companhia de um cavalheiro charmoso para jantar. Infelizmente, não há nenhum disponível. Você gostaria de me encontrar na Ferradura Enferrujada?
Com muita expectativa, sua,
A."
Meu estado de espírito melhorou um pouco. Os bilhetes de Alys eram um raro prazer e ela nunca me convidara para jantar. Embora tenha ficado com raiva por haver perdido o encontro, saber que ela voltara à cidade e estava ansiosa por me ver levantou consideravelmente o meu moral.
Engoli o almoço e resolvi faltar à aula de kiaru, em favor de uma ida a Torrente. Fazia mais de uma onzena que eu não via Alys e passar algum tempo com ela era a única coisa em que eu podia pensar que seria capaz de me animar.
Meu entusiasmo arrefeceu um pouco ao me aproximar do rio. Era uma longa caminhada e meus joelhos começaram a doer antes mesmo de eu chegar à Ponte de Pedra. O sol tinha um brilho ofuscante, mas não calor suficiente para combater a friagem do vento do início de inverno. A poeira da estrada era soprada em meus olhos e me fazia engasgar.
Alys não estava em nenhuma das hospedarias em que costumava ficar. Não estava ouvindo música no Barril nem na Cabra na Porta. Nem Droch nem Radagon a tinham visto. Tive medo de que ela pudesse ter deixado a cidade enquanto eu estivera ocupado. Ela poderia ficar fora durante meses. Poderia partir para sempre.
Então, dobrei uma esquina e a vi sentada num jardinzinho público, embaixo de uma árvore. Segurava uma carta numa das mãos e uma pera parcialmente comida na outra. Onde teria achado uma pera, tão no final da estação?
Eu já atravessara metade do jardim quando me dei conta de que ela estava chorando. Parei onde me encontrava, sem saber o que fazer. Eu queria ajudar, mas não ser invasivo. Talvez fosse melhor...
— Vanitas!
Alys jogou fora o resto da pera, levantou-se de um salto e correu para mim pela grama. Estava sorrindo, no entanto tinha os olhos vermelhos. Enxugou as faces com uma das mãos.
— Você está bem? — perguntei.
Seus olhos se encheram de novas lágrimas, porém, antes que elas caíssem, Alys os apertou e balançou a cabeça com força.
— Não — respondeu. — Não totalmente.
— Posso ajudar?
Ela secou os olhos com a manga da blusa.
— Você ajuda só por estar aqui.
Dobrou a carta num quadradinho e a empurrou para dentro do bolso. Depois, tornou a sorrir. Não foi um sorriso forçado, do tipo que se usa feito máscara. Era um sorriso de verdade, encantador, apesar das lágrimas.
Então, inclinou a cabeça de lado e me olhou com mais atenção, enquanto o sorriso se transformava numa expressão apreensiva.
— E você? — perguntou. — Está parecendo meio indisposto.
Dei um sorriso débil. O meu foi forçado e eu sabia.
— Ando enfrentando uns tempos difíceis ultimamente.
— Espero que não esteja num mal-estar tão ruim quanto a sua aparência — disse ela, em tom gentil. — Você tem dormido o suficiente?
— Não — admiti.
Alys respirou fundo para falar, mas parou e mordeu o lábio:
— É alguma coisa sobre a qual você queira conversar? Não sei se posso ser de alguma ajuda, mas... — Encolheu os ombros e deslocou ligeiramente o peso do corpo de um pé para o outro. — Eu mesma não durmo bem. Sei como é.
Sua oferta de ajuda me pegou desprevenido. Fez com que eu me sentisse... Não sei dizer exatamente o que me fez sentir. Não é algo fácil de se exprimir em palavras.
Não foi a oferta de ajuda em si. Fazia dias que meus amigos vinham trabalhando incansavelmente para me ajudar. Mas a disposição para ajudar do Leif era diferente dessa. A ajuda dele era tão confiável quanto o pão. Porém, saber que Alys se importava foi como um gole de vinho quente numa noite de inverno. Senti seu calor doce em meu peito.
Sorri para ela. Um sorriso de verdade. A expressão trouxe uma sensação esquisita a meu rosto e eu me perguntei há quanto tempo vinha amarrando a cara sem saber.
— Você está me ajudando só por estar aqui — falei, em tom sincero. — O simples fato de vê-la faz maravilhas pelo meu humor.
Alys revirou os olhos.
— É claro. A visão do meu rosto todo manchado é uma maravilha.
— Não há muito de que falar — expliquei. — Meu azar se enredou com as minhas decisões ruins e estou pagando por isso.
Alys deu um risinho que beirou um soluço.
— Eu não entenderia nada desse tipo de coisa — disse-me, com uma torção irônica dos lábios. — É pior quando a culpa é da nossa própria estupidez, não é?
Senti minha boca curvar-se, imitando a dela.
— É. A bem da verdade, eu preferiria alguma distração a um ouvido solidário.
— Isso eu posso oferecer — retrucou Alys, segurando meu braço. — Deus sabe que você já fez o mesmo por mim um bom número de vezes.
Acertei o passo com o dela.
— Fiz?
— Infinitas vezes. É fácil esquecer quando você está perto — falou. Parou de andar por um momento e tive que parar também, já que ela pusera seu braço no meu. — Isso não está certo. Eu quis dizer que, quando você está por perto, é fácil esquecer.
— Esquecer o quê?
— Tudo — disse ela, e, por um instante, sua voz não foi tão brincalhona. — Todas as partes ruins da minha vida. Quem eu sou. É bom poder tirar férias de mim mesma de vez em quando. Você ajuda nisso. É meu porto seguro num mar tempestuoso e interminável.
Dei um risinho.
— Sou?
— É — confirmou ela, com naturalidade. — Você é meu salgueiro umbroso num dia ensolarado.
— Você é música suave num cômodo distante — retruquei.
— Essa é boa — constatou Alys. — Você é um bolo inesperado numa tarde chuvosa.
— Você é o antídoto que retira o veneno do meu coração.
— Hum — murmurou Alys, com ar inseguro. — Essa eu não sei. Um coração cheio de veneno não é uma ideia atraente.
— É — admiti. — A frase soava melhor antes de eu pronunciá-la.
— É o que acontece quando a gente mistura metáforas. — Ela fez uma pausa e indagou: — Você recebeu meu bilhete?
— Recebi-o hoje — respondi, deixando todo o meu pesar derramar-se na voz. — Há apenas umas duas horas.
— Ah. Que pena, foi um bom jantar. Comi o seu também.
Tentei pensar em algo para dizer, mas Alys simplesmente sorriu e balançou a cabeça.
— Estou brincando. O jantar foi só um pretexto, na verdade. Tenho uma coisa para lhe mostrar. Você é um homem difícil de achar. Pensei que teria de esperar até amanhã, quando você canta na taberna do Grilo.
Senti uma pontada aguda no peito, tão intensa que nem mesmo a presença de Alys foi capaz de superá-la por completo.
— Foi sorte você ter me encontrado hoje. Não sei ao certo se vou tocar amanhã.
Ela inclinou a cabeça para mim.
— Você sempre canta nas noites do dia-da-sega. Não modifique isso. Já tenho dificuldade suficiente para encontrá-lo.
— Veja só quem fala. Nunca a encontro duas vezes no mesmo lugar.
— Ah, sim, tenho certeza de que você vive à minha procura — disse ela, fazendo pouco caso, e então abriu um sorriso empolgado. — Mas isso não importa. Vamos. Tenho certeza de que isto vai distraí-lo. — Começou a andar mais depressa, puxando meu braço.
Seu entusiasmo era contagioso e me vi sorrindo ao segui-la pelas ruas tortuosas de Torrente.
Acabamos chegando a uma lojinha. Alys entrou na minha frente, quase saltitando de animação. Todos os sinais de choro haviam sumido e seus olhos brilhavam. Ela pôs as mãos frescas sobre meu rosto.
— Feche os olhos — disse. — É uma surpresa!
Fechei-os e ela me conduziu pela mão por alguns passos. O interior da loja era pouco iluminado e recendia a couro. Ouvi uma voz masculina dizer "Então, esse é ele?" seguida pelo som oco de coisas sendo remexidas.
— Está pronto? — Alys disse em meu ouvido. Escutei o sorriso em sua voz. Sua respiração fez cócegas nos pelos da minha nuca.
— Não faço a menor ideia — respondi, com sinceridade.
Senti o sopro do seu riso abafado em minha orelha.
— Está bem. Abra os olhos.
Abri-os e vi um senhor esguio parado atrás de um longo balcão de madeira. À sua frente, um estojo vazio de alaúde, aberto como um livro. Alys me comprara um presente. Um estojo para meu alaúde. Um estojo para meu alaúde roubado.
Dei um passo para me aproximar. O estojo vazio era comprido e fino, revestido de couro preto liso. Não havia dobradiças. Sete presilhas luminosas de aço circundavam a borda da tampa, que se levantava como a de uma caixa.
O interior era de um veludo suave. Estendi a mão para tocá-lo e vi que o acolchoamento era macio, porém resiliente como uma esponja. O veludo tinha quase um centímetro de espessura e era de um tom escuro de vinho.
O homem atrás do balcão deu um sorriso tênue.
— A sua senhora tem bom gosto. E séria determinação sobre o que quer.
Segurou a tampa e acrescentou:
— O couro foi hidratado e encerado. São duas camadas, com arcos de bordo por baixo — disse. Deslizou o dedo pela parte inferior do estojo e apontou para o sulco correspondente na tampa. — Ela tem um encaixe suficientemente justo para que nenhum ar possa entrar ou sair. Portanto, não precisa se preocupar ao passar de uma sala quente e úmida para uma noite gelada.
Começou a fechar as presilhas ao redor do estojo.
— A senhora objetou ao latão. Portanto, estas são de aço fino. E, uma vez fechadas, a tampa é vedada por uma gaxeta. O senhor pode mergulhá-la num rio que o veludo permanecerá seco no interior — disse. Encolheu os ombros e completou: — A água acabaria permeando o couro, é claro. Mas há um limite para o que se pode fazer.
Virando o estojo ao contrário, ele bateu com força com os nós dos dedos no fundo arredondado.
— Usei lâminas finas de bordo, portanto ele não é volumoso nem pesado, e reforcei-as com tiras de aço de Glant. — Fez um gesto para onde estava Alys, risonha. — A senhora queria aço de Orion, mas expliquei que, embora ele seja forte, é também bastante quebradiço. O aço de Glant é mais leve e conserva sua forma.
Olhou-me de cima a baixo e acrescentou:
— Se o jovem cavalheiro quiser, pode subir no estojo sem quebrá-lo. — Franziu de leve a boca e olhou para meus pés: — Embora eu prefira que não o faça.
Desvirou o estojo.
— Tenho que dizer que este talvez seja o melhor estojo que fiz em 20 anos — declarou, deslizando-o para mim sobre o balcão. — Espero que seja do seu agrado.
Fiquei sem palavras. Era uma raridade. Estendi o braço e deslizei a mão pelo couro. Era quente e liso. Toquei a argola de aço em que se prenderia a alça. Olhei para Alys, que praticamente dançava de prazer.
Ela deu um passo à frente, ansiosa.
— Esta é a melhor parte — disse, abrindo as presilhas com tal familiaridade que percebi que já o fizera antes. Tirou a tampa e cutucou o interior com um dedo. — A forração foi feita para ser retirada e recolocada. Por isso, seja qual for o seu alaúde no futuro, ele continuará a se encaixar. E olhe...
Pressionou o veludo no lugar onde ficaria o braço, girou os dedos e uma tampa saltou, revelando um espaço oculto por baixo. Tornou a sorrir:
— Isso também foi ideia minha. É como um bolso secreto.
— Pelo corpo de Deus, Alys! Isso deve ter-lhe custado uma fortuna.
— Bem, você sabe — disse ela, com um ar de modéstia afetada —, eu tinha uma pequena reserva.
Deslizei a mão pelo interior, tocando o veludo.
— Alys, estou falando sério. Este estojo deve valer tanto quanto o meu alaúde...
Minha voz morreu e meu estômago deu uma volta nauseante. O alaúde que eu já nem possuía.
— Se não se importa que eu o diga, senhor — disse o homem atrás do balcão —, a menos que o seu alaúde seja de prata maciça, calculo que este estojo valha bem mais do que ele.
Tornei a correr as mãos pela tampa, sentindo o estômago cada vez mais embrulhado. Não conseguia pensar numa só palavra para dizer. Como poderia contar a Alys que alguém havia roubado meu alaúde depois de ela ter se dado todo o trabalho de mandar fazer aquele lindo presente para mim?
Alys sorriu, empolgada.
— Vamos ver como o seu alaúde se encaixa!
Fez um gesto e o homem atrás do balcão pegou meu alaúde e o encaixou no estojo. Encaixou como uma luva.
Desatei a chorar.
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— Por Deus, estou envergonhado — falei, assoando o nariz.
Alys tocou de leve o meu braço.
— Eu sinto muito mesmo! — repetiu pela terceira vez.
Estávamos os dois sentados no meio-fio, fora da lojinha. Já era ruim o bastante irromper em pranto na frente de Alys. Eu quisera me recompor sem que o lojista também ficasse me encarando.
— Eu só queria que ele encaixasse direito — disse Alys, com a expressão abalada. — Deixei um bilhete. Era para você ter vindo jantar, para que eu pudesse lhe fazer a surpresa. Não era nem para você saber que ele tinha sumido.
— Está tudo bem — falei.
— É óbvio que não está — retrucou Alys, com os olhos começando a marejar. — Quando você não apareceu, fiquei sem saber o que fazer. Procurei-o em toda parte ontem à noite. Bati na sua porta, mas você não atendeu. — Olhou para os pés e acrescentou: — Nunca consigo encontrá-lo quando o procuro.
— Alys, está tudo bem.
Ela balançou vigorosamente a cabeça, recusando-se a me olhar, enquanto as lágrimas começavam a rolar por sua face.
— Não está tudo bem. Eu devia saber. Você o segura como se fosse seu bebê. Se algum dia na vida alguém me olhasse do jeito que você olha para esse alaúde, eu...
Sua voz entrecortou-se e ela engoliu em seco, antes que as palavras recomeçassem a brotar de seus lábios:
— Eu sabia que ele era a coisa mais importante da sua vida. Foi por isso que quis arranjar um lugar seguro para que você guardasse. Só não imaginei que fosse tão...
Tornou a engolir em seco, cerrando os punhos. Tinha o corpo tão tenso que estava quase tremendo.
— Deus, eu sou tão idiota! Nunca penso. Sempre faço isso. Eu estrago tudo.
O cabelo havia caído em volta do seu rosto e eu não podia ver sua expressão.
— O que há de errado comigo? — perguntou, num tom baixo e raivoso. — Por que sou tão idiota? Por que não posso fazer uma só coisa direito em toda a minha vida?
— Alys — tive de interrompê-la, já que ela mal parava para respirar. Coloquei a mão em seu braço e ela ficou rígida e imóvel. — Alys, você não tinha como saber. Há quanto tempo está tocando? Um mês? Algum dia teve um instrumento?
Ela meneou a cabeça, o rosto ainda escondido pelo cabelo.
— Eu tive aquela lira — disse, baixinho. — Mas foi só por uns dias, antes do incêndio.
Levantou finalmente o rosto, com uma expressão de puro sofrimento. Disse, com os olhos e o nariz vermelhos:
— Isso vive acontecendo. Tento fazer uma coisa boa, mas fica tudo enrolado. — Fitou-me com um olhar arrasado. — Você não sabe o que é isso.
Dei uma risada. Era incrivelmente bom rir de novo. O riso brotou das profundezas de minhas entranhas e jorrou da minha garganta feito as notas de uma trompa dourada. Por si só, essa gargalhada valeu por três refeições quentes e 20 horas de sono.
— Sei exatamente como é — repliquei, sentindo os machucados nos joelhos e o repuxar das feridas parcialmente cicatrizadas nas costas.
Pensei em lhe contar a confusão que eu arrumara tentando recuperar seu anel, mas concluí que, provavelmente, não melhoraria seu humor se explicasse que o Drazno vinha tentando me matar.
— Alys, eu sou o rei das boas ideias que dão completamente errado.
Ela sorriu ao ouvir isso, fungando e enxugando os olhos com uma das mangas.
— Nós somos um casal encantador de idiotas chorões, não é?
— Somos.
— Desculpe — disse ela mais uma vez, deixando morrer o sorriso. — Eu só queria lhe fazer uma gentileza. Mas sou péssima nessas coisas.
Segurei sua mão entre as minhas e a beijei.
— Alys — disse-lhe, com toda a sinceridade —, essa foi a coisa mais gentil que alguém já fez por mim.
Ela deu uma bufadela indelicada.
— É a pura verdade. Você é o meu lumen brilhante à beira da estrada. Você é mais valiosa que o sal, a Lua ou uma longa noite de caminhada. Você é vinho doce na minha boca, uma canção na minha garganta e riso no meu coração.
As bochechas de Alys enrubesceram, mas segui adiante, despreocupado:
— Você é boa demais para mim. É um luxo que não posso me proporcionar. Mesmo assim, quero que venha comigo hoje. Vou lhe oferecer o jantar e passar horas desmanchando-me em elogios sobre a vasta paisagem de deslumbramento que você é.
Levantei-me e a puxei, pondo-a de pé.
— Vou tocar para você. Vou cantar-lhe cantigas. Pelo resto da tarde, o resto do mundo não poderá nos atingir.
Inclinei a cabeça, transformando minha fala numa pergunta.
A boca de Alys curvou-se.
— Parece bom. Eu gostaria de fugir do mundo por uma tarde.
Horas depois, voltei para a Academia com o andar saltitante. Assobiei. Cantei. Meu alaúde, pendurado no ombro, era leve como um beijo. O sol estava cálido e reconfortante. A brisa estava fresca.
Minha sorte começava a mudar.