CXC. CESURA

Alas, Mila, Devi e eu estávamos sentados em volta do que restava da fogueira quando ouvimos o estalar de passos se aproximando pelo arvoredo. Faela ainda estava vestida com elegância, mas seu cabelo se soltara. Leif caminhava com cuidado a seu lado, afastando distraidamente os galhos do caminho dela. 

— E onde é que vocês dois estavam? — perguntou Devi.

— Tive que voltar a pé de Torrente — explicou Feila. — Leif foi ao meu encontro no meio do caminho. Não se preocupe, mamãe, ele foi um perfeito cavalheiro.

— Espero que não tenha sido muito ruim para você — falei para ela.

— O jantar foi mais ou menos o que era de se esperar — admitiu Faela. — Mas a segunda parte fez tudo valer a pena.

— Segunda parte? — indagou Mila.

— No trajeto de volta, o Leif me levou para ver os estragos na Pônei. Parei e dei uma palavrinha com Drazno. Nunca me diverti tanto — acrescentou, com um sorriso maldoso. — Fui de uma indignação perfeita.

— É mesmo — disse Simmon. — Ela foi brilhante.

Faela virou-se para Leif e colocou as mãos nas cadeiras.

— Quer fugir de mim, é?

Leif contraiu o rosto numa carranca exagerada e gesticulou como um louco.

— Escute aqui, sua tipinha idiota! — disse, numa boa imitação do sotaque mitreziano de Drazno. — Os meus aposentos estavam pegando fogo!

Faela virou-lhe as costas, levantando as mãos.

— Não minta para mim! Você fugiu para ficar com alguma prostituta. Nunca fui tão humilhada em toda a minha vida! Nunca mais quero ver você!

Aplaudimos. Faela e Leif deram o braço e se curvaram.

— A bem da exatidão — disse Faela, num aparte — , Drazno não usou as palavras "tipinha idiota".

Ela não soltou o braço do Leif.

Ele fez um ar meio sem jeito.

— Bem, há certas coisas de que não se chama uma dama, nem de brincadeira.

Soltou o braço de Faela com relutância e foi sentar-se no tronco de árvore caído. Faela acomodou-se a seu lado.

Ela se inclinou para ele e cochichou alguma coisa. Leif riu, meneando a cabeça.

— Por favor — pediu Faela, pondo-lhe a mão no braço. — O Vanitas não está com o alaúde. Alguém tem que nos divertir.

— Está bem, está bem — disse Simmon, obviamente meio alvoroçado. Fechou os olhos por um instante, depois falou com voz sonora:

"Veloz veio nossa Faela, olhos fogosos faiscando.

Com passos firmes cruzou as pedras dos calçamentos.

Aproximou-se de Drazno, todo cercado de cinzas,

de olhar tenebroso e carranca ranzinza.

Mas Faela não teve medo e bravos foram os seus pei... "

Leif parou abruptamente antes de concluir a palavra "peitos" e ficou vermelho feito uma beterraba. Devi soltou um risinho obsceno de onde estava sentada, do outro lado da fogueira. 

Sempre bom amigo, Alastor interveio com uma pergunta:

— Que pausa é essa que você fica fazendo? — perguntou. — É como se não conseguisse recobrar o fôlego.

— Também fiz essa pergunta — disse Faela, risonha.

— É uma coisa que eles usam na poesia em mitreziano antigo — explicou Leif. — É uma pausa no verso, chama-se cesura.

— Você é perigosamente bem informado sobre poesia, Leif — comentei. — Estou prestes a perder o respeito por você.

— Fique quieto — disse Faela. — Eu acho que é um encanto. Você só está com inveja porque ele sabe fazer isso de improviso.

— A poesia é uma canção sem música — retruquei com altivez. — Uma canção sem música é como um corpo sem alma.

Alastor ergueu a mão antes que Leif pudesse responder.

— Antes de nos atolarmos numa conversa filosófica, tenho uma confissão a fazer — disse, em tom sombrio. — Larguei um poema no corredor, do lado de fora dos aposentos do Drazno. Era um acróstico que falava da afeição intensa que ele tem por Mestre Hilme.

Todos rimos, mas Leif pareceu achar isso particularmente engraçado. Levou muito tempo para recobrar o fôlego.

— Não poderia ser mais perfeito se o tivéssemos planejado — disse. — Comprei algumas peças de roupas femininas e as espalhei no meio do que estava na rua. Cetim vermelho. Umas coisinhas rendadas. Um espartilho de ossos de baleia.

Houve mais gargalhadas. Então, os olhares se voltaram para mim.

— E você, o que fez? — instigou Devi.

— Só o que tinha me proposto fazer — respondi, melancólico. — Só o que era necessário para destruir o boneco, para que eu pudesse dormir em segurança à noite.

— Você chutou o urinol no quarto dele — disse Alastor.

— É verdade — admiti. — E achei isto — acrescentei, segurando um pedaço de papel.

— Se for um dos poemas dele — disse Devi —, sugiro que você o queime depressa e lave as mãos.

Desdobrei o papelzinho e li em voz alta:

"Número de registro 4535: Anel. Ouro branco. Quartzo esfumaçado azul. Restaurar engaste e polir."

Tornei a dobrá-lo cuidadosamente e o guardei num bolso. Em seguida, falei:

— Para mim, isto é melhor do que um poema.

Leif empertigou-se no assento.

— É um canhoto de casa de penhores para o anel da sua dama?

— Se não estou enganado, é um canhoto de joalheria. Mas, sim, é do anel dela. Aliás, ela não é minha dama.

— Nessa eu me perdi — disse Devi.

— Foi assim que tudo isto começou — explicou Alastor. — O Vanitas estava tentando recuperar um objeto que pertence a uma garota de quem ele gosta.

— Alguém deveria ter me informado — disse Devi. — Parece que peguei a história no meio do caminho.

Encostei-me num pedaço de rocha bruta, satisfeito em deixar meus amigos contarem a história.

O papelzinho não estivera na cômoda do Drazno. Não estivera na lareira nem na mesinha de cabeceira. Não estivera em sua bandeja de joias nem na escrivaninha.

Na verdade, estava na bolsa dele. Eu a furtara num acesso de ressentimento, meio minuto depois de ele me chamar de ladrão Therion imundo. Fora quase um reflexo, ao esbarrar rudemente nele na saída de seus aposentos na Pônei.

Por uma estranha coincidência, a bolsa também continha dinheiro. Um pouco menos de seis crimos. Não era uma grande quantia, em se tratando do Drazno. O suficiente para uma noitada extravagante com uma dama. Para mim, porém, era muito dinheiro, tanto que eu quase me sentia em culpa por tê-lo roubado.

Quase.