Uma hora depois, Alastor e eu jogávamos cartas na Pônei Dourado.
O salão de hóspedes estava quase lotado e um harpista razoável executava uma versão sofrível de "Doce centeio hibernal."
Conversas murmuradas enchiam o aposento, enquanto os fregueses abastados jogavam, bebiam e falavam de seja o que for que falam os ricos. De como surrar adequadamente o cavalariço, imaginei. Ou técnicas para perseguir a criada de quarto pela propriedade.
A Pônei Dourado não era o meu tipo de lugar. A clientela era educada demais, as bebidas caras demais e os músicos mais agradáveis aos olhos que aos ouvidos. Apesar disso tudo, fazia quase duas onzenas que eu a frequentava, dando mostras de estar tentando subir na escala social. Assim, ninguém poderia dizer que era estranho eu estar lá justamente nessa noite.
Alastor bebeu um gole e embaralhou as cartas. Minha bebida parcialmente consumida estava quente. Era uma simples cerveja, mas, dados os preços da Pônei, aquela altura eu estava literalmente sem nenhum lumen.
Alas distribuiu outra mão de bafo-de-cão. Apanhei minhas cartas com cuidado, porque a poção alquímica do Leif deixava meus dedos levemente pegajosos. Era como se estivéssemos jogando com cartas em branco. Eu as comprava e baixava ao acaso, fingindo concentrar-me no jogo, quando, na verdade, estava esperando e ouvindo.
Senti uma leve coceira no canto do olho e ergui a mão para esfregá-lo, mas me detive no último segundo, com a mão levantada. Alastor me fitava do outro lado da mesa, com os olhos assustados, e fez um aceno firme e curto com a cabeça. Fiquei imóvel por um instante, depois baixei lentamente a mão.
Estava tão empenhado em procurar parecer despreocupado que, quando veio o grito do lado de fora, realmente me assustei. Ele atravessou o burburinho das conversas como só uma voz estridente e tomada de pânico poderia fazer.
— Fogo! Fogo!
Todos na Pônei Dourado se imobilizaram por um momento. Isso sempre acontece quando as pessoas ficam assustadas e confusas. Elas levam um segundo para olhar em volta, farejar o ar e pensar coisas do tipo "Será que ele acabou de gritar fogo?" ou "Fogo? Onde? Aqui?"
Não hesitei.
Levantei-me de um salto e simulei que olhava aflitivamente em volta, na tentativa óbvia de localizar o fogo. Quando todas as outras pessoas do salão de hóspedes começaram a se mexer, eu já disparava para a escada.
— Fogo! — continuaram os gritos lá fora. — Ah, meu Deus, fogo!
Sorri ao ouvir o Basil exagerar a encenação de seu pequeno papel. Eu não o conhecia o bastante para lhe revelar o plano todo, mas era vital que alguém notasse logo o incêndio, para que eu pudesse entrar em ação depressa. A última coisa que eu queria era incendiar acidentalmente metade da hospedaria.
Cheguei ao alto da escada e dei uma olhada no andar superior da Pônei Dourado. Já havia passos pisando duro nos degraus atrás de mim. Alguns hóspedes ricos abriram suas portas, espiando o corredor.
Havia tênues anéis de fumaça enroscando-se por baixo da porta dos aposentos de Drazno.
Perfeito.
— Acho que é ali! — gritei, deslizando a mão para um dos bolsos da minha capa ao correr para a porta.
Nos longos dias que passáramos vasculhando o Arquivo, eu tinha achado referências a inúmeras peças interessantes de artificiaria. Uma delas era um elegante objeto chamado pedra de cerco.
Ela funcionava segundo os princípios mais elementares da simpatia. A balestra acumula energia e a utiliza para disparar uma flecha a longa distância, com grande velocidade. A pedra de cerco era um pedaço de chumbo gravado que armazenava energia e a usava para se deslocar por uns 15 centímetros com a força de um aríete.
Chegando ao meio do corredor, preparei-me e investi de ombro contra a porta de Drazno. Também a atingi com a pedra de cerco que levava escondida na palma da mão.
A porta de madeira grossa quebrou feito um barril atingido por um malho de bigorna. Houve arquejos e exclamações assustadas de todos os que estavam no corredor. Precipitei-me para dentro, tentando desesperadamente tirar o sorriso maníaco do rosto.
A sala de estar de Drazno estava na escuridão, que era ainda mais acentuada por uma nuvem de fumaça no ar. Vi uma luz bruxuleante de fogo lá dentro, mais à esquerda. Por minha visita anterior, eu sabia que se tratava do quarto de dormir.
— Olá! — gritei. — Estão todos bem?
Usei um tom de voz cuidadoso: ousado, mas apreensivo. Nada de pânico, é claro.
Afinal, eu era o herói dessa cena.
A fumaça era espessa no quarto, captando a luz laranja do fogo e fazendo com que meus olhos ardessem. Havia uma enorme cômoda de madeira encostada na parede, grande como uma bancada de trabalho da Ficiaria. As chamas lambiam os contornos das gavetas e bruxuleavam. Aparentemente, Drazno vinha mesmo guardando o boneco na gaveta de meias.
Peguei uma cadeira próxima e a usei para quebrar a janela por onde havia entrado várias noites antes.
— Esvaziem a rua! — gritei lá de cima.
A gaveta inferior esquerda parecia a mais incandescente e, quando a abri com um puxão, as roupas em chamas dentro dela captaram vorazmente o ar e explodiram em labaredas. Senti cheiro de cabelo queimado e torci para não ter perdido minhas sobrancelhas. Não queria passar os meses seguintes com a aparência de quem estava constantemente surpreso.
Depois da explosão inicial, respirei fundo, dei um passo à frente e, com as mãos nuas, tirei a gaveta pesada da cômoda. Ela estava cheia de tecidos fumegantes e enegrecidos, mas, ao correr para a janela, pude ouvir uma coisa dura no fundo, chacoalhando contra a madeira. Ela caiu quando atirei tudo pela janela, com as roupas explodindo em chamas ao serem apanhadas pelo vento.
Em seguida, arranquei a gaveta superior direita. Assim que a soltei, a fumaça e as labaredas brotaram numa massa quase sólida. Retiradas essas duas gavetas, o espaço vazio no interior da cômoda formou uma chaminé tosca, dando ao fogo todo o ar de que ele precisava. Quando icei a segunda gaveta e a joguei pela janela, pude efetivamente ouvir a onda oca de fogo espalhando-se pela madeira envernizada e pelas roupas dentro dela.
Na rua, as pessoas atraídas pela comoção faziam o melhor que podiam para extinguir o fogo dos destroços. No meio da pequena aglomeração, Leif pisoteava tudo com suas novas botas de tachões, destroçando as coisas, como um garoto chapinhando nas poças depois da primeira chuva da primavera. Mesmo que o boneco tivesse resistido à queda, não resistiria aquilo.
Isso era mais do que simples mesquinharia. Vinte minutos antes, Devi me dera um sinal para informar que já havia experimentado o boneco de cera. Como não houvera resultado, isso queria dizer que Drazno tinha usado meu sangue para fazer um boneco de barro que me representasse.
Um simples incêndio não o destruiria.
Uma a uma, peguei as outras gavetas e também as joguei na rua, fazendo uma pausa para arrancar as grossas cortinas de veludo em torno da cama de Drazno para proteger minhas mãos do calor do fogo. Isso também poderia parecer mesquinho, mas não era. Eu estava morrendo de medo de queimar as mãos. Todos os meus talentos dependiam delas.
Mesquinho foi quando chutei o urinol, ao voltar para a cômoda. Era do tipo dispendioso, de fina cerâmica esmaltada. Ele virou e rolou loucamente pelo piso, até bater na parte frontal da lareira e se espatifar. Basta dizer que o que se derramou nos tapetes de Drazno não foi um doce delicioso.
As chamas faiscaram abertamente nos espaços em que tinham estado as gavetas, iluminando o quarto enquanto a janela aberta deixava entrar um pouco de ar puro. Alguém enfim teve coragem suficiente para entrar no quarto.
Usou um dos cobertores da cama de Drazno para proteger as mãos e me ajudou a atirar pela janela as últimas gavetas em chamas que restavam. Foi um trabalho quente, cheio de fuligem e, mesmo com essa ajuda, eu estava tossindo quando a última gaveta despencou na rua.
Tudo terminou em menos de três minutos. Uns poucos fregueses do bar que tinham o raciocínio rápido trouxeram jarros d'água e molharam a armação ainda em chamas da cômoda vazia.
Joguei as cortinas de veludo fumegantes pela janela, gritando "Cuidado aí embaixo!", para que Leif soubesse que devia recuperar minha pedra de cerco da pilha de tecido amarfanhado.
Acenderam-se lâmpadas e a fumaça foi afinando, à medida que o ar frio da noite entrava pela janela quebrada. Várias pessoas se infiltraram aos poucos no quarto, para ajudar, olhar, abobalhadas, ou mexericar. Um grupo de espectadores admirados juntou-se em volta da porta derrubada do Drazno e eu me perguntei, despreocupado, que tipo de boatos surgiria da encenação dessa noite.
Uma vez adequadamente iluminado o quarto, deslumbrei-me ao ver os estragos causados pelo fogo. A cômoda mal passava de uma coleção de pedaços de madeira carbonizados e a parede de gesso atrás dela estava rachada e empolada por causa do calor. O teto branco fora pintado por uma larga faixa de fuligem negra.
Vislumbrei meu reflexo no espelho da penteadeira e fiquei satisfeito ao ver que minhas sobrancelhas estavam mais ou menos intactas. Eu estava em completo desalinho, com o cabelo desgrenhado e o rosto sujo de suor e cinzas escuras. O branco dos olhos parecia muito alvo, em contraste com o pretume do meu rosto.
Alastor foi ao meu encontro e ajudou a enfaixar minha mão esquerda. Ela não estava realmente queimada, mas eu sabia que pareceria estranho eu me retirar completamente ileso.
Afora um punhado de cabelo perdido, minha pior lesão, na verdade, eram os buracos carbonizados nas minhas mangas compridas. Outra camisa destruída. Se continuasse assim, eu estaria nu ao fim do período letivo.
Sentei-me na beira da cama e fiquei vendo as pessoas trazerem mais água para espargir na cômoda. Apontei para uma viga chamuscada no teto e elas também a molharam, fazendo subir um chiado alto e uma nuvem de vapor e fumaça. Todos continuaram a entrar e sair, contemplando os destroços e murmurando coisas entre si, enquanto meneavam a cabeça.
Quando Alas estava terminando meu curativo, o som de cascos galopando nas pedras do calçamento atravessou a janela aberta, superando momentaneamente o barulho dos pisões furiosos de botas de tachão.
Menos de um minuto depois, ouvi Drazno no corredor:
— Em nome de Deus, o que está acontecendo aqui? Saiam! Saiam!
Xingando e empurrando as pessoas, Drazno fez sua entrada. Ao me ver sentado em sua cama, estancou.
— O que está fazendo nos meus aposentos? — indagou.
— O quê? — perguntei, olhando em volta. — São seus aposentos? — admirei- me.
Manter a dose adequada de consternação no meu tom não foi fácil, já que minha voz estava rouca por causa da fumaça:
— Eu acabei de me queimar salvando as suas coisas?
Os olhos de Drazno se estreitaram, depois correram para os destroços carbonizados de sua cômoda. Voltaram céleres para mim e se arregalaram de súbita compreensão. Lutei contra a vontade de rir.
— Saia daqui, seu ladrão Therion imundo! — disse, vomitando as palavras venenosas. — Juro que, se estiver faltando alguma coisa, porei o condestável no seu encalço. Farei com que você seja submetido à Lei Férrea e enforcado.
Respirei fundo para responder, mas comecei a tossir de forma incontrolável e tive que me contentar em fuzilá-lo com os olhos.
— Bom trabalho, Drazno — disse Alastor em tom sarcástico. — Você o apanhou. Ele roubou o seu fogo.
— É, faça-o devolvê-lo! — interveio um dos curiosos.
— Saia! — gritou Drazno, rubro de ódio. — E leve esse traste nojento daqui, senão vou mandar aplicar nos dois a surra que vocês merecem.
Observei os curiosos olharem fixamente para Drazno, estarrecidos com seu comportamento.
Lancei-lhe um olhar demorado e orgulhoso, explorando a cena ao máximo.
— De nada — disse-lhe, com a dignidade ofendida, e passei por ele com um empurrão, afastando-o do caminho com um jeito rude.
Quando eu ia saindo, um homem gordo e corado, que vestia um colete, entrou cambaleando pela porta destruída dos aposentos de Drazno. Reconheci-o como o dono da Pônei Dourado.
— Que diabo aconteceu aqui? — perguntou.
— Vela é uma coisa perigosa — comentei.
Dei uma virada para trás e encontrei o olhar de Drazno:
— Francamente, rapaz — disse-lhe —, não sei onde você estava com a cabeça. Seria de se esperar que um membro do Arcano tivesse mais juízo.