CLXXXVIII. PLANO

O sol tinha se posto quando cheguei à floresta. Alastor já estava lá, atiçando o fogo no enorme braseiro. Trabalhamos juntos por 15 minutos, juntando lenha suficiente para manter a fogueira queimando por horas.

Leif chegou pouco depois, arrastando um matacão comprido de galho morto. Nós três o partimos em pedaços e conversamos nervosos sobre banalidades, até Faela sair do arvoredo.

Seus longos cabelos estavam presos, deixando à mostra o pescoço e os ombros elegantes. Os olhos estavam escuros e a boca ligeiramente mais vermelha que de hábito. O longo vestido preto ajustava-se à cintura fina e aos quadris arredondados. Ela também exibia o mais espetacular par de seios que eu já vira em minha jovem vida.

Todos abrimos a boca, mas Leif escancarou a dele.

— Uau! — exclamou. — Quer dizer, você era a mulher mais bonita que eu já tinha visto até agora. Não pensei que pudesse ficar ainda melhor. — Deu sua risada de garoto e apontou para ela com as duas mãos. — Olhe só para você. Está incrível!

Faela enrubesceu e desviou o olhar, obviamente satisfeita.

— Você tem o papel mais difícil de hoje — falei a ela. — Detesto perguntar, mas...

— Mas você é a única mulher irresistivelmente atraente que conhecemos — interpôs Leif. — O nosso plano de apoio era enfiar o Alastor num vestido. Ninguém merece isso.

Alastor assentiu com a cabeça.

— Concordo.

— Só por você — disse Faela, torcendo a boca num sorriso irônico. — Quando eu disse que lhe devia um favor, nunca imaginei que você fosse me pedir que saísse com outro homem. — O sorriso azedou um pouquinho. — Especialmente com o Drazno.

— Você só precisa aturá-lo por uma ou duas horas. Tente levá-lo a Torrente, se puder, mas qualquer lugar a pelo menos 100 metros da Pônei servirá.

Faela deu um suspiro.

— Pelo menos vou ganhar um jantar com isso. — Olhou para Leif. — Gostei das suas botas.

Ele sorriu.

— São novas.

Virei-me ao som dos passos que se aproximavam. Mila era a única de nós que não estava presente, mas ouvi vozes misturadas com os passos e rangi os dentes. Provavelmente era um casal de namorados aproveitando o tempo atipicamente quente.

Nosso grupo não podia ser visto junto, não nessa noite. Isso suscitaria perguntas de mais. Eu estava prestes a sair correndo para interceptar o casal quando reconheci a voz de Mila:

— Só espere aqui enquanto eu explico — disse ela. — Por favor. Espere. Isso facilitará as coisas.

— Ele que tenha um chilique em 12 cores — disse uma voz feminina conhecida, saindo da escuridão. — Ele que cague o fígado, não estou nem aí.

Estanquei.

Eu conhecia aquela voz, mas não consegui identificar a quem pertencia.

Mila emergiu do arvoredo escuro. A seu lado estava uma figura miúda, de cabelo curto, louro-avermelhado.

Devi.

Observei, perplexo, Mila se aproximar, estendendo as mãos num gesto de apaziguamento e falando depressa:

— Vanitas, eu conheço a Devi há muito tempo. Ela me pôs a par das coisas quando eu era novata aqui. Antes de... ir embora.

— De ser expulsa — disse Devi, orgulhosa. — Não me envergonho disso.

Mila apressou-se a continuar:

— Depois do que você contou ontem, pareceu-me que havia um mal-entendido. Passei por lá para fazer a ela umas perguntas sobre isso... — encolheu os ombros — e a história toda meio que veio à tona. Ela quis ajudar.

— Quero um pedaço do Drazno — disse Devi. Houve uma carga gélida de fúria em sua voz ao proferir o nome dele. — Minha ajuda é predominantemente acidental.

Alastor pigarreou.

— Seria correto nós presumirmos...

— Ele bate nas prostitutas — disse Devi, interrompendo-o abruptamente. — E, se eu pudesse matar aquele patife arrogante e sair impune, já o teria feito há anos. — Olhou com ar categórico para Alastor. — Sim, nós temos um passado. E não, não é da sua conta. Isso é motivo suficiente para você?

Fez-se um silêncio tenso. Alastor meneou a cabeça, com expressão cuidadosamente neutra.

Devi virou-se para mim.

— Devi — cumprimentei-a, com uma reverência curta. — Sinto muito.

Ela piscou os olhos, surpresa.

— Ora, diabos me levem — disse, com a voz carregada de sarcasmo. — Talvez você tenha mesmo meio cérebro na cabeça.

— Achei que não podia confiar em você. Estava errado e lamento. Não foi o raciocínio mais lúcido que já tive na vida.

Ela passou um bom momento me observando.

— Não somos amigos — disse, secamente, com uma expressão ainda gelada. — Mas, se você ainda estiver vivo ao final disto tudo, conversaremos.

Olhou para adiante de onde eu estava e sua expressão se abrandou.

— Faelinha!

Passou por mim e deu um abraço em Faela.

— Como você está crescida! - exclamou. Deu um passo atrás e segurou Faela com os braços estendidos, olhando-a com ar apreciativo. — Meu Deus, você está parecendo uma prostituta sereniana de 10 listras! Ele vai adorar.

Faela sorriu e deu uma voltinha, fazendo a barra da saia se abrir.

— É bom a gente ter um pretexto para se arrumar de vez em quando — falou.

— Você devia se arrumar para si mesma — disse Devi. — E para homens melhores do que o Drazno.

— Andei ocupada. Estou sem prática para me produzir. Levei uma hora para me lembrar de como prender o cabelo. Alguma recomendação?

Abriu os braços para os lados e girou lentamente.

Devi a olhou de cima a baixo, com expressão calculista.

— Você já está melhor do que ele merece. Mas está tão simples! Por que não usou nenhum brilho?

Faela olhou para as mãos.

— Anel não funciona com luvas — disse. — E eu não tinha nada suficientemente bonito para combinar com o vestido.

— Pois tome — disse Devi, inclinando a cabeça e levando aos mãos ao cabelo, primeiro de um lado, depois do outro. Chegou mais perto de Faela. — Puxa, você é alta, abaixe-se.

Quando Faela tornou a erguer o corpo, usava um par de brincos pingentes que captaram a luz da fogueira.

Devi deu um passo atrás e soltou um suspiro exasperado.

— E eles ficam melhor em você, é claro. — Balançou a cabeça com irritação. — Santo Deus, mulher, se eu tivesse peitos como os seus, já seria dona de meio mundo.

— Eu também — disse Leif, entusiasmado.

Alastor caiu na gargalhada, depois cobriu o rosto e se afastou de Leif, meneando a cabeça e fazendo o possível para fingir que não tinha a menor ideia de quem era o rapaz a seu lado.

Devi olhou para o sorriso desinibido e pueril de Leif, depois se virou outra vez para Faela.

— Quem é esse idiota?

Captei a atenção de Mila e fiz sinal para ela chegar mais perto, para que pudéssemos conversar.

— Não precisava, mas obrigado. É um alívio saber que ela não está lá longe, tramando coisas contra mim.

— Não faça suposições — disse Mila, em tom sombrio. — Nunca a vi com tanta raiva. Mas me pareceu uma pena vocês dois se desentenderem. Vocês são muito parecidos.

Relanceei os olhos por cima da fogueira, para onde Alas e Leif se aproximavam com cautela de Faela e Devi.

— Ouvi muitas coisas a seu respeito — disse Alastor, olhando para Devi. — Pensei que você fosse mais alta.

— E como tem sido isso para você? — retrucou ela, secamente. — Pensar, quero dizer.

Agitei as mãos para chamar a atenção de todos.

— Está tarde. Precisamos entrar em posição.

Faela assentiu com a cabeça.

— Quero chegar lá cedo, por garantia — disse. Endireitou nervosamente as luvas. — Desejem-me sorte.

Mila aproximou-se e lhe deu um abraço rápido.

— Vai correr tudo bem. Fique com ele num lugar público. Ele se portará melhor se houver gente observando.

— Faça perguntas sobre a poesia dele — aconselhou Devi. — Drazno não vai parar de falar.

— Se ele ficar impaciente, elogie o vinho — acrescentou Mila. — Diga coisas como: "Ah, eu adoraria outra taça, mas tenho medo que me suba direto à cabeça." Ele comprará uma garrafa e tentará empurrá-la pela sua goela abaixo.

Devi balançou a cabeça.

— Isso o deixará com as mãos longe de você por mais meia hora, no mínimo — disse. Estendeu a mão e puxou um pouco para cima o decote do vestido de Feila. — Comece conservadora, depois, perto do fim do jantar, vá deixando os seios um pouco mais à mostra. Incline-se. Use os ombros. Se ele continuar vendo mais e mais, vai pensar que está chegando lá. Isso impedirá que fique tentando agarrá-la.

— Essa é a coisa mais apavorante que já vi — disse Alastor, baixinho.

— Será que todas as mulheres do mundo se conhecem secretamente? — perguntou Leif. — Porque isso explicaria muita coisa.

— Nós mal chegamos a 100 no Arcano — disse Devi, mordaz. — Eles nos confinam numa única ala do Magnólio, queiramos ou não morar lá. Como é possível não nos conhecermos?

Aproximei-me de Faela e lhe entreguei um graveto fino de carvalho.

— Eu lhe darei um sinal quando tivermos terminado. Você me avisa se ele a largar sozinha.

Faela arqueou uma sobrancelha.

— Uma mulher poderia tomar isso como uma desfeita — disse, depois sorriu e guardou o graveto dentro de uma das longas luvas pretas. Seus brincos balançaram e tornaram a captar a luz. Eram esmeraldas. Esmeraldas lisas, em forma de lágrimas.

— Que brincos lindos — comentei com Devi. — Onde você os arranjou?

Os olhos dela se estreitaram, como se ela tentasse decidir se devia ou não se ofender.

— Um rapazinho bonito usou-os para quitar sua dívida. Não que isso seja da sua conta.

— Foi só curiosidade — falei, dando de ombros.

Faela acenou e saiu andando, mas, antes que avançasse 3 metros, Leif a alcançou. Deu um sorriso sem jeito, falando e fazendo alguns gestos enfáticos, e lhe entregou alguma coisa. Ela sorriu e a guardou na longa luva preta.

Virei-me para Devi.

— Suponho que você conheça o plano, não é?

Ela fez que sim.

— Qual é a distância daqui até o quarto dele?

— Pouco mais de 800 metros — respondi, em tom de quem se desculpa. — O escape...

Devi me interrompeu com um gesto.

— Eu faço meus próprios cálculos — disse, com rispidez.

— Certo.

Apontei para onde estava minha sacola de viagem, junto à borda do braseiro.

— Ali tem cera e barro — informei. Entreguei-lhe um graveto fino de bétula. — Eu lhe darei o sinal quando estivermos em posição. Comece pela cera. Dê meia hora exata, depois faça um sinal para nós e passe para o barro. Dê ao barro pelo menos meia hora.

— Com uma fogueira atrás de mim? — Devi bufou. — Levarei 15 minutos, no máximo.

— Pode ser que ele não esteja guardado na gaveta das meias dele, entende? Talvez esteja trancado sem muito ar.

Devi me despachou com um aceno.

— Conheço o meu ofício.

Fiz uma meia mesura.

— Deixo o assunto nas suas mãos competentes.

— É só isso? — perguntou Mila, indignada. — Você me deu um sermão de uma hora! Você me fez um questionário!

— Não há tempo — respondi, com simplicidade. — E você estará aqui para instruí-la se for preciso. Além do mais, Devi está entre o punhado de pessoas que desconfio que possam ser simpatistas melhores do que eu.

Devi lançou-me um olhar sinistro.

— Desconfia? Eu lhe dei uma surra como se você fosse um cão abatido! Você foi meu fantochinho de simpatia.

— Isso foi há duas onzenas — retruquei. — Aprendi muito de lá para cá.

— Fantoche? — Leif perguntou ao Alastor. Alas fez um gesto explicativo e os dois caíram na gargalhada.

Fiz sinal para Alastor.

— Vamos.

Antes que pudéssemos sair, Leif me entregou um potinho.

Olhei-o com estranheza. Eu já havia guardado na capa a poção alquímica feita por ele.

— O que é isso?

— É só uma pomada, para o caso de você se queimar — explicou ele. — Mas, se você a misturar com xixi, ela vira um doce — acrescentou, com a cara mais cínica do mundo. — Um doce delicioso.

Meneei a cabeça com ar sério.

— Sim, senhor.