O sol tinha se posto quando cheguei à floresta. Alastor já estava lá, atiçando o fogo no enorme braseiro. Trabalhamos juntos por 15 minutos, juntando lenha suficiente para manter a fogueira queimando por horas.
Leif chegou pouco depois, arrastando um matacão comprido de galho morto. Nós três o partimos em pedaços e conversamos nervosos sobre banalidades, até Faela sair do arvoredo.
Seus longos cabelos estavam presos, deixando à mostra o pescoço e os ombros elegantes. Os olhos estavam escuros e a boca ligeiramente mais vermelha que de hábito. O longo vestido preto ajustava-se à cintura fina e aos quadris arredondados. Ela também exibia o mais espetacular par de seios que eu já vira em minha jovem vida.
Todos abrimos a boca, mas Leif escancarou a dele.
— Uau! — exclamou. — Quer dizer, você era a mulher mais bonita que eu já tinha visto até agora. Não pensei que pudesse ficar ainda melhor. — Deu sua risada de garoto e apontou para ela com as duas mãos. — Olhe só para você. Está incrível!
Faela enrubesceu e desviou o olhar, obviamente satisfeita.
— Você tem o papel mais difícil de hoje — falei a ela. — Detesto perguntar, mas...
— Mas você é a única mulher irresistivelmente atraente que conhecemos — interpôs Leif. — O nosso plano de apoio era enfiar o Alastor num vestido. Ninguém merece isso.
Alastor assentiu com a cabeça.
— Concordo.
— Só por você — disse Faela, torcendo a boca num sorriso irônico. — Quando eu disse que lhe devia um favor, nunca imaginei que você fosse me pedir que saísse com outro homem. — O sorriso azedou um pouquinho. — Especialmente com o Drazno.
— Você só precisa aturá-lo por uma ou duas horas. Tente levá-lo a Torrente, se puder, mas qualquer lugar a pelo menos 100 metros da Pônei servirá.
Faela deu um suspiro.
— Pelo menos vou ganhar um jantar com isso. — Olhou para Leif. — Gostei das suas botas.
Ele sorriu.
— São novas.
Virei-me ao som dos passos que se aproximavam. Mila era a única de nós que não estava presente, mas ouvi vozes misturadas com os passos e rangi os dentes. Provavelmente era um casal de namorados aproveitando o tempo atipicamente quente.
Nosso grupo não podia ser visto junto, não nessa noite. Isso suscitaria perguntas de mais. Eu estava prestes a sair correndo para interceptar o casal quando reconheci a voz de Mila:
— Só espere aqui enquanto eu explico — disse ela. — Por favor. Espere. Isso facilitará as coisas.
— Ele que tenha um chilique em 12 cores — disse uma voz feminina conhecida, saindo da escuridão. — Ele que cague o fígado, não estou nem aí.
Estanquei.
Eu conhecia aquela voz, mas não consegui identificar a quem pertencia.
Mila emergiu do arvoredo escuro. A seu lado estava uma figura miúda, de cabelo curto, louro-avermelhado.
Devi.
Observei, perplexo, Mila se aproximar, estendendo as mãos num gesto de apaziguamento e falando depressa:
— Vanitas, eu conheço a Devi há muito tempo. Ela me pôs a par das coisas quando eu era novata aqui. Antes de... ir embora.
— De ser expulsa — disse Devi, orgulhosa. — Não me envergonho disso.
Mila apressou-se a continuar:
— Depois do que você contou ontem, pareceu-me que havia um mal-entendido. Passei por lá para fazer a ela umas perguntas sobre isso... — encolheu os ombros — e a história toda meio que veio à tona. Ela quis ajudar.
— Quero um pedaço do Drazno — disse Devi. Houve uma carga gélida de fúria em sua voz ao proferir o nome dele. — Minha ajuda é predominantemente acidental.
Alastor pigarreou.
— Seria correto nós presumirmos...
— Ele bate nas prostitutas — disse Devi, interrompendo-o abruptamente. — E, se eu pudesse matar aquele patife arrogante e sair impune, já o teria feito há anos. — Olhou com ar categórico para Alastor. — Sim, nós temos um passado. E não, não é da sua conta. Isso é motivo suficiente para você?
Fez-se um silêncio tenso. Alastor meneou a cabeça, com expressão cuidadosamente neutra.
Devi virou-se para mim.
— Devi — cumprimentei-a, com uma reverência curta. — Sinto muito.
Ela piscou os olhos, surpresa.
— Ora, diabos me levem — disse, com a voz carregada de sarcasmo. — Talvez você tenha mesmo meio cérebro na cabeça.
— Achei que não podia confiar em você. Estava errado e lamento. Não foi o raciocínio mais lúcido que já tive na vida.
Ela passou um bom momento me observando.
— Não somos amigos — disse, secamente, com uma expressão ainda gelada. — Mas, se você ainda estiver vivo ao final disto tudo, conversaremos.
Olhou para adiante de onde eu estava e sua expressão se abrandou.
— Faelinha!
Passou por mim e deu um abraço em Faela.
— Como você está crescida! - exclamou. Deu um passo atrás e segurou Faela com os braços estendidos, olhando-a com ar apreciativo. — Meu Deus, você está parecendo uma prostituta sereniana de 10 listras! Ele vai adorar.
Faela sorriu e deu uma voltinha, fazendo a barra da saia se abrir.
— É bom a gente ter um pretexto para se arrumar de vez em quando — falou.
— Você devia se arrumar para si mesma — disse Devi. — E para homens melhores do que o Drazno.
— Andei ocupada. Estou sem prática para me produzir. Levei uma hora para me lembrar de como prender o cabelo. Alguma recomendação?
Abriu os braços para os lados e girou lentamente.
Devi a olhou de cima a baixo, com expressão calculista.
— Você já está melhor do que ele merece. Mas está tão simples! Por que não usou nenhum brilho?
Faela olhou para as mãos.
— Anel não funciona com luvas — disse. — E eu não tinha nada suficientemente bonito para combinar com o vestido.
— Pois tome — disse Devi, inclinando a cabeça e levando aos mãos ao cabelo, primeiro de um lado, depois do outro. Chegou mais perto de Faela. — Puxa, você é alta, abaixe-se.
Quando Faela tornou a erguer o corpo, usava um par de brincos pingentes que captaram a luz da fogueira.
Devi deu um passo atrás e soltou um suspiro exasperado.
— E eles ficam melhor em você, é claro. — Balançou a cabeça com irritação. — Santo Deus, mulher, se eu tivesse peitos como os seus, já seria dona de meio mundo.
— Eu também — disse Leif, entusiasmado.
Alastor caiu na gargalhada, depois cobriu o rosto e se afastou de Leif, meneando a cabeça e fazendo o possível para fingir que não tinha a menor ideia de quem era o rapaz a seu lado.
Devi olhou para o sorriso desinibido e pueril de Leif, depois se virou outra vez para Faela.
— Quem é esse idiota?
Captei a atenção de Mila e fiz sinal para ela chegar mais perto, para que pudéssemos conversar.
— Não precisava, mas obrigado. É um alívio saber que ela não está lá longe, tramando coisas contra mim.
— Não faça suposições — disse Mila, em tom sombrio. — Nunca a vi com tanta raiva. Mas me pareceu uma pena vocês dois se desentenderem. Vocês são muito parecidos.
Relanceei os olhos por cima da fogueira, para onde Alas e Leif se aproximavam com cautela de Faela e Devi.
— Ouvi muitas coisas a seu respeito — disse Alastor, olhando para Devi. — Pensei que você fosse mais alta.
— E como tem sido isso para você? — retrucou ela, secamente. — Pensar, quero dizer.
Agitei as mãos para chamar a atenção de todos.
— Está tarde. Precisamos entrar em posição.
Faela assentiu com a cabeça.
— Quero chegar lá cedo, por garantia — disse. Endireitou nervosamente as luvas. — Desejem-me sorte.
Mila aproximou-se e lhe deu um abraço rápido.
— Vai correr tudo bem. Fique com ele num lugar público. Ele se portará melhor se houver gente observando.
— Faça perguntas sobre a poesia dele — aconselhou Devi. — Drazno não vai parar de falar.
— Se ele ficar impaciente, elogie o vinho — acrescentou Mila. — Diga coisas como: "Ah, eu adoraria outra taça, mas tenho medo que me suba direto à cabeça." Ele comprará uma garrafa e tentará empurrá-la pela sua goela abaixo.
Devi balançou a cabeça.
— Isso o deixará com as mãos longe de você por mais meia hora, no mínimo — disse. Estendeu a mão e puxou um pouco para cima o decote do vestido de Feila. — Comece conservadora, depois, perto do fim do jantar, vá deixando os seios um pouco mais à mostra. Incline-se. Use os ombros. Se ele continuar vendo mais e mais, vai pensar que está chegando lá. Isso impedirá que fique tentando agarrá-la.
— Essa é a coisa mais apavorante que já vi — disse Alastor, baixinho.
— Será que todas as mulheres do mundo se conhecem secretamente? — perguntou Leif. — Porque isso explicaria muita coisa.
— Nós mal chegamos a 100 no Arcano — disse Devi, mordaz. — Eles nos confinam numa única ala do Magnólio, queiramos ou não morar lá. Como é possível não nos conhecermos?
Aproximei-me de Faela e lhe entreguei um graveto fino de carvalho.
— Eu lhe darei um sinal quando tivermos terminado. Você me avisa se ele a largar sozinha.
Faela arqueou uma sobrancelha.
— Uma mulher poderia tomar isso como uma desfeita — disse, depois sorriu e guardou o graveto dentro de uma das longas luvas pretas. Seus brincos balançaram e tornaram a captar a luz. Eram esmeraldas. Esmeraldas lisas, em forma de lágrimas.
— Que brincos lindos — comentei com Devi. — Onde você os arranjou?
Os olhos dela se estreitaram, como se ela tentasse decidir se devia ou não se ofender.
— Um rapazinho bonito usou-os para quitar sua dívida. Não que isso seja da sua conta.
— Foi só curiosidade — falei, dando de ombros.
Faela acenou e saiu andando, mas, antes que avançasse 3 metros, Leif a alcançou. Deu um sorriso sem jeito, falando e fazendo alguns gestos enfáticos, e lhe entregou alguma coisa. Ela sorriu e a guardou na longa luva preta.
Virei-me para Devi.
— Suponho que você conheça o plano, não é?
Ela fez que sim.
— Qual é a distância daqui até o quarto dele?
— Pouco mais de 800 metros — respondi, em tom de quem se desculpa. — O escape...
Devi me interrompeu com um gesto.
— Eu faço meus próprios cálculos — disse, com rispidez.
— Certo.
Apontei para onde estava minha sacola de viagem, junto à borda do braseiro.
— Ali tem cera e barro — informei. Entreguei-lhe um graveto fino de bétula. — Eu lhe darei o sinal quando estivermos em posição. Comece pela cera. Dê meia hora exata, depois faça um sinal para nós e passe para o barro. Dê ao barro pelo menos meia hora.
— Com uma fogueira atrás de mim? — Devi bufou. — Levarei 15 minutos, no máximo.
— Pode ser que ele não esteja guardado na gaveta das meias dele, entende? Talvez esteja trancado sem muito ar.
Devi me despachou com um aceno.
— Conheço o meu ofício.
Fiz uma meia mesura.
— Deixo o assunto nas suas mãos competentes.
— É só isso? — perguntou Mila, indignada. — Você me deu um sermão de uma hora! Você me fez um questionário!
— Não há tempo — respondi, com simplicidade. — E você estará aqui para instruí-la se for preciso. Além do mais, Devi está entre o punhado de pessoas que desconfio que possam ser simpatistas melhores do que eu.
Devi lançou-me um olhar sinistro.
— Desconfia? Eu lhe dei uma surra como se você fosse um cão abatido! Você foi meu fantochinho de simpatia.
— Isso foi há duas onzenas — retruquei. — Aprendi muito de lá para cá.
— Fantoche? — Leif perguntou ao Alastor. Alas fez um gesto explicativo e os dois caíram na gargalhada.
Fiz sinal para Alastor.
— Vamos.
Antes que pudéssemos sair, Leif me entregou um potinho.
Olhei-o com estranheza. Eu já havia guardado na capa a poção alquímica feita por ele.
— O que é isso?
— É só uma pomada, para o caso de você se queimar — explicou ele. — Mas, se você a misturar com xixi, ela vira um doce — acrescentou, com a cara mais cínica do mundo. — Um doce delicioso.
Meneei a cabeça com ar sério.
— Sim, senhor.