O tilintar de uma pedra runada cortou o silêncio do crepúsculo. Em meio à ventania rarefeita da altitude, Bedivere arremessou o artefato ao chão. Um clarão púrpura se expandiu como uma flor de energia, envolvendo os dois em fragmentos de luz.
Num piscar de olhos, estavam em outro lugar.
A sensação de deslocamento cessou abruptamente. Midoki sentia o coração ainda preso no vácuo da transição. Seus olhos buscaram o entorno, uma torre antiga, cilíndrica, com janelas arqueadas que miravam as nuvens em sua plenitude. O silêncio ali era profundo, quase reverente. Nenhum som além do vento.
Sem dizer palavra, Midoki se aproximou de uma das janelas. O céu estava pálido, a luz do entardecer tingia as montanhas de âmbar e sangue. Ele franziu o cenho, os olhos examinando o terreno abaixo como se esperasse alguma revelação.
- Bedivere: "Venha." - Disse com voz firme, mas sem agressividade. - "Merlin estará no quarto logo à frente."
Midoki o seguiu. Os passos deles ecoavam pelo corredor de pedra, com tapeçarias rotas que sussurravam histórias esquecidas. Quando entraram no aposento, Midoki estacou.
Seu corpo tremeu.
Ali, entre velas quase apagadas, sobre uma maca de prata, estava Merlin.
Ou o que restava dele.
O velho mago espiritualista, outrora símbolo de sabedoria e poder, jazia mutilado. Seus braços e pernas haviam sido arrancados, o tronco estava encurvado, e sua pele carregava as marcas da corrosão arcana. A barba longa ainda cobria parte de seu peito magro. Seu olhar, porém, permanecia vivo... cansado, mas penetrante.
- Midoki: "Mas... o que aconteceu...?" - Murmurou Midoki, incapaz de conter o espanto. Ele se aproximou instintivamente, como se o toque pudesse confirmar a realidade.
- Bedivere: "Morgana..." - Respondeu Bedivere, sem rodeios. - "Ela encontrou a Fonte da Ordem, após decifrar algumas escrituras antigas deixadas pela raça primordial. E com isso... com isso foi capaz de fazer isso com Merlin."
Midoki recuou meio passo, o sangue fugindo de seu rosto. Abriu a boca para falar, mas hesitou. Depois, forçou uma pergunta:
- Midoki: "Mas... eu pensei que... ela estivesse do nosso lado."
Bedivere suspirou. O peso de anos amargos transbordava em sua voz:
- Bedivere: "O poder... tomou conta da sanidade dela. Um informante nos revelou que agora ela realiza experimentos... envolvendo o Abismo e a própria Fonte. Ela se corrompeu, Midoki."
Midoki franziu a testa. Um calafrio atravessou-lhe a espinha. A missão confiada por Spencer, recuperar a Fonte, assumia agora uma camada trágica. A fonte que deveria restaurar a Ordem estava sendo pervertida.
Foi então que Merlin, com a voz rouca como o vento arranhando pedras, ergueu a cabeça lentamente.
- Merlin: "Não adianta mais... jovem cavaleiro..." - Disse, como se a fala lhe custasse a alma. - "Não se preocupe comigo... mesmo que eu tentasse... recuperar meu corpo... meu tempo de vida está chegando ao fim."
Aquela sentença atingiu Midoki como um trovão. Sua garganta secou. Ele tentou falar, mas Bedivere foi direto ao ponto.
- Bedivere: "Perdão pela franqueza, mestre." - Disse, encarando Merlin com respeito, mas urgência. - "Eu e Midoki pretendemos partir para Vhastorg o quanto antes. Por acaso saberia como chegar lá?"
Merlin desviou os olhos para Bedivere, e por um momento, pareceu não responder. Mas então murmurou:
- Merlin: "Pois bem, há apenas dois métodos possíveis... para chegar até Vhastorg. Um é empunhando a Excalibur. O outro... é canalizando a energia amaldiçoada do Necronomicon. Vocês deveriam procurar Tristão... afinal, Morgana se livrou do grimório há dez anos."
Midoki arregalou os olhos, já que ela o entregou da última vez que se encontraram.
- Merlin: "Sim." - Disse Merlin, com voz grave. - "Ela sabe... ela sempre soube... o quão valioso ele era. Ela o quer de volta, Midoki. E irá até o fim do mundo para isso."
Bedivere desviou o olhar, mordendo o lábio inferior. Esperava um caminho mais simples.
Midoki, cada vez mais confuso, explodiu:
- Midoki: "Mas o que é Vhastorg afinal? Onde fica?!"
Bedivere respondeu com paciência contida:
- Bedivere: "Vhastorg era um continente, ligado ao Solvaris. Era o lar de Camelot. Até cinco anos atrás. Quando Arthur conseguiu o Caos... tudo mudou. Ele travou uma guerra contra Satan e... engoliu todo Vhastorg. Agora, só o que resta é uma ruína amaldiçoada em uma ilha.
Midoki ainda tentava processar, quando perguntou, num tom mais agudo:
- Midoki: "Tudo bem, eu entendi... mas... e o Merlin?! Você e ele são companheiros há anos, não são? Você não se importa com o estado em que ele está?!"
A raiva inflou o semblante de Bedivere. Os olhos faiscaram.
- Bedivere: "Você..."
Mas Merlin o cortou, num tom cínico:
- Merlin: "Aaah... que droga... não posso partir em paz assim." - Disse, erguendo o pescoço e soltando um gemido irônico. - "Eu não queria estar aqui pra ver todo mundo morrer... mas desse jeito... só me resta ajudar vocês a recuperar o Necronomicon..."
Um brilho prateado começou a emanar de seu corpo. Lentamente, os membros perdidos começaram a se regenerar. Músculo por músculo. Os ossos se reconstituíam como raízes retornando ao solo.
Midoki sorriu. Um sorriso cheio de dor, mas também de esperança.
Bedivere ficou em silêncio, os olhos fixos em Merlin, surpreso. Talvez... apenas talvez... ainda restasse uma centelha de milagre.
A cena então se corta abruptamente.
Um estrondo ecoa pelas terras negras de Xytherra. Uma aura púrpura pulsa em ondas pelo horizonte. A terra chora. Fendas negras emergem da superfície rachada como feridas abertas.
Diante de uma colossal barreira arcana, com runas ancestrais flutuando em espiral, está Morgana.
O olhar dela é febril.
Os olhos, duas luas púrpuras corrompidas.
A risada dela ecoa pelo continente morto.
- Morgana: "Ahahahahah... finalmente... o véu começa a ceder... e pra isso... preciso do grimório." - Ela sussurra, os dedos erguidos, canalizando um poder que nenhuma alma deveria jamais tocar.