Os Analógicos

Para a sorte deles, o trem ainda estava aguardando. Vasco, ainda tentando recuperar o fôlego, avistou Moisés de longe, já acomodado e observando a movimentação com um sorriso debochado.

Durante a viagem, Moisés e seus amigos não perderam a oportunidade de tirar sarro de Vasco.

"Que cara de acabado é essa, navegador?" brincou Moisés.

"Será que o treinamento foi tão fácil assim?" provocou Yuri.

"Aposto que ele teve que fazer flexões o dia inteiro!" acrescentou John, rindo.

Vasco suspirou e se jogou no assento, sem forças para retrucar.

"Vocês nem imaginam..." murmurou, fechando os olhos por um momento.

Ao chegarem em casa, Vasco ainda estava pensativo. Ele se jogou no sofá enquanto Moisés pegava algo para beber.

"Moisés, preciso te perguntar uma coisa," disse Vasco.

Moisés olhou para ele com curiosidade.

"Diga."

"Othon me chamou de Analógico. O que exatamente isso significa?"

Moisés deu um gole na bebida antes de responder.

"Analógicos são pessoas que escolheram não usar implantes cerebrais. Sem eles, o processamento de informações é mais lento. Eles controlam as máquinas com atraso, aprendem mais devagar e, para muitos, são considerados ultrapassados."

Vasco franziu a testa.

"Então eu sou um deles?"

Moisés deu de ombros.

"Se não tem nenhum chip no cérebro, sim. Eu escolhi ser analógico e estou ciente das consequências..."

Vasco ficou em silêncio por um momento, refletindo sobre tudo o que tinha ouvido. Então, olhou para Moisés e perguntou:

"E você? Por que escolheu ser Analógico?"

Moisés suspirou, apoiando-se no balcão da pequena cozinha antes de responder.

"Esses dispositivos podem controlar a mente das pessoas, Vasco. Há cerca de 40 anos, isso já aconteceu. Um grupo inteiro foi manipulado sem perceber. As empresas alegaram que foi um bug, um erro de sistema, mas isso gerou uma revolta popular gigantesca. Por um tempo, muita gente parou de usar os implantes."

Vasco arregalou os olhos.

"E o que aconteceu depois?"

Moisés riu, mas sem humor.

"Poucos meses depois, quase todos já estavam usando de novo. As empresas vieram com novas versões, promessas de segurança e benefícios incríveis. E o povo? Aceitou sem pensar duas vezes. Hoje, a maioria recebe o implante ainda criança. Mas no orfanato, nós fomos 'protegidos'."

Vasco franziu a testa.

"Protegidos?"

"É um lugar mais conservador. Eles preferem deixar os órfãos decidirem quando adultos. Para muitos, isso é um atraso. Mas eu vi como as pessoas mudam depois de colocar os implantes. Eu não quero correr esse risco. Não quero ser controlado. Só que tem um preço."

Moisés fez uma pausa e olhou diretamente para o Vasco.

"Restam os piores empregos para os Analógicos. Trabalhos perigosos, manuais, que ninguém quer. A sociedade vê a gente como inferiores, mais lentos, menos eficientes. Por isso você precisa decidir logo. Vai continuar assim ou vai aceitar o implante?"

Vasco sentiu um peso no peito. Ele nunca tinha pensado nisso. Desde que saiu do orfanato, sua vida parecia uma sucessão de desafios inesperados. Agora, tinha mais um para resolver.

Moisés deu um tapinha em seu ombro e finalizou:

"Essa escolha é só sua..."

Vasco queria fazer mais perguntas.

Sua cabeça estava cheia de dúvidas sobre os implantes, os analógicos e as escolhas que teria que fazer. Mas o cansaço era mais forte. 

Seus músculos doíam, e seus olhos estavam pesados. Ele piscava lentamente, tentando se concentrar na conversa, mas cada vez que piscava, era mais difícil manter os olhos abertos.

Moisés percebeu o esforço do amigo para não dormir e sorriu.

"Vamos dormir, Vasco. Amanhã vai ser difícil. Depois do trabalho, a gente conversa mais."

Vasco queria insistir, queria dizer que precisava entender mais, mas estava exausto. Apenas balançou a cabeça e se jogou na cama improvisada. 

Antes de fechar os olhos, pensou em tudo o que tinha acontecido. Acordou naquela manhã ansioso com o primeiro dia de trabalho, sem saber o que esperar. Agora, sentia como se tivesse envelhecido anos em um só dia. Descobriu o quanto a vida fora do orfanato era difícil, conheceu Othon, enfrentou o treinamento pesado e agora teria que tomar uma decisão que poderia mudar sua vida para sempre.

De repente, sentiu alguém puxando seu cobertor.

"Acorda, Vasco! Estamos atrasados!"

Moisés gritava, sacudindo-o.

Vasco abriu os olhos rapidamente, confuso. Piscou algumas vezes, sem entender o que estava acontecendo.

Não tinha percebido que havia dormido. Para ele, parecia que tinha fechado os olhos por um segundo e já era outro dia. O tempo desaparecerá.

"O quê...?"

Murmurou, ainda grogue.

"Anda logo! Se perdermos o trem, Othon vai te matar!"

Vasco se levantou rapidamente, com o coração disparado. Seu corpo ainda estava pesado, os músculos doíam, mas não tinha escolha. O segundo dia de trabalho começava do mesmo jeito que o primeiro: correndo contra o tempo.