O treinamento

Vasco caminhava ao lado de Othon, tentando puxar conversa.

"Então, comandante, como funciona esse treinamento?" perguntou Vasco.

Othon continuou andando sem responder, sua postura rígida e olhar fixo à frente. Vasco tentou de novo.

"Já treinou muitos mineradores?"

Silêncio. Apenas o som das botas metálicas de Othon ecoava no chão de aço do corredor. Vasco suspirou, percebendo que não teria resposta. Resolveu apenas seguir em silêncio.

Após alguns minutos de caminhada, chegaram diante de um grande galpão. As portas automáticas se abriram, revelando exoesqueletos enormes alinhados, suas luzes piscando em um tom azul frio. No centro do espaço, já havia 15 outras pessoas aguardando. Algumas delas usavam braços mecânicos, outras tinham olhos cibernéticos brilhando no escuro. Todos pareciam experientes, e Vasco se sentiu deslocado.

Antes de entrar na sala, Othon finalmente parou e virou-se para Vasco. Seu olhar era severo.

"Escute bem, garoto. A vida aqui é pesada e perigosa. Qualquer erro pode significar a morte. Você precisa estar preparado para esse desafio. Ainda mais sendo um ANALÓGICO."

Vasco franziu a testa.

"Analógico?"

Othon bufou e cruzou os braços. 

"Significa que você não tem nenhum implante neural. Você é apenas um humano comum. E humanos comuns não costumam durar muito tempo."

Vasco sentiu um frio na barriga. Ele sabia que o trabalho seria difícil, mas não imaginava que já começaria em desvantagem. Respirou fundo e manteve o olhar firme.

Assim que Othon entrou na sala, uma das pessoas que já estavam no local se levantou e gritou com uma voz firme:

"Atenção! Acaba de adentrar ao local o Comandante Othon!"

O silêncio tomou conta do ambiente. Todos os presentes ficaram imóveis, esperando a próxima ordem. Othon analisou o grupo por um momento antes de falar.

"Fiquem à vontade. Quero cada um de vocês à frente de um exoesqueleto. AGORA."

Os recém-chegados hesitaram por alguns segundos. Alguns olhavam para os exoesqueletos gigantes sem saber se deviam tocá-los. Othon não gostou da demora.

"Flexões! Agora! Quero 20 repetições". 

Othon encarava cada recém chegado até completarem as 20 repetições.

Os braços começaram a tremer antes mesmo de completarem a primeira sequência, mas ninguém ousou parar

Após o último terminar ele gritou:

"Venham até mim."

O grupo obedeceu e correram até onde Othon estava.

"Vamos tentar de novo."

Othon fez uma pausa, olhando no olho de cada novato.

"Cada um para frente de um exoesqueleto. Rápido!"

Eles correram de volta, mas ainda demoravam. Othon suspirou e cruzou os braços.

"Flexões de novo! Depois, venham até mim."

O treino se repetiu. Tentavam, hesitavam, recebiam mais ordens. Foram quase dez tentativas até que, finalmente, todos tomaram suas posições rapidamente, sem precisar de mais comandos.

Othon andou entre eles, observando cada rosto cansado e ofegante. Então, parou no centro da sala e ergueu a voz.

"Agora vocês estão começando a entender. As minas de Marte não são um playground. Esse lugar já custou a vida de muitos. Se quiserem sobreviver, terão que provar que são bons o bastante."

Ele olhou diretamente para cada um, seus olhos severos perfurando a determinação de cada recruta.

"Aqui, fraqueza significa morte. Medo significa fracasso. Vocês estão prontos para isso? Ou devo mandá-los de volta para casa?"

Ninguém respondeu de imediato. Então, um dos recrutas, ainda recuperando o fôlego, gritou:

"Estamos prontos, senhor!"

Os outros repetiram, suas vozes ecoando pelo galpão.

Othon assentiu, satisfeito.

"Então, vamos ver do que são feitos. O treinamento começa agora."

Othon cruzou os braços e olhou para o grupo.

"Antes de começarmos, alguém tem alguma dúvida?"

Um dos novatos, um rapaz magrelo e de aparência frágil, ergueu a mão hesitante.

"Vamos trabalhar nas minas ou estamos treinando para o exército?"

Othon estreitou os olhos, sua expressão endurecendo.

"Estou vendo que querem aprender na dor. Todos para flexão! Agora!"

Os recrutas se jogaram no chão e começaram a contagem.

"Um... Dois... Três..." Othon caminhava entre eles enquanto falava.

"Vocês acham que isso aqui é brincadeira? Acharam que iam pegar uma pá e sair cavando? Estão enganados!"

Sua voz ecoava pelo galpão. O silêncio dos novatos era interrompido apenas pela respiração pesada e os grunhidos de esforço.

"É no fogo forte que se forja o aço bom! Se vocês acham que isso aqui é exagero, saibam que todo dia alguém morre nas minas. Um desabamento, um vazamento de oxigênio, um erro na manipulação dos equipamentos... qualquer deslize pode custar sua vida!"

Othon fez uma breve pausa, observando os rostos suados dos recrutas.

"Treinamento difícil, guerra fácil! Se vocês sofrerem aqui, vão sobreviver lá. E eu não quero ver nenhum de vocês sendo levado para fora em um saco de corpo. Se estão aqui, vão aprender a sobreviver!"

Ele esperou mais alguns segundos antes de dar a próxima ordem.

"Todos de pé!"

Os recrutas se levantaram, ainda tentando recuperar o fôlego. Othon os observou por um momento e então cruzou os braços novamente.

"Agora vamos ver se vocês finalmente entenderam."

Othon caminhou pelo galpão, olhando cada um dos novatos nos olhos antes de falar.

"Se alguém quiser ir embora, as portas estão abertas. Eu quero apenas os bons."

Ele fez uma pausa, esperando alguma reação. O silêncio tomou conta da sala. Ninguém se mexeu. Ninguém ousou falar nada.

Othon assentiu lentamente.

"Muito bem. Agora, alguém tem mais alguma dúvida?"

Novamente, silêncio absoluto.

Ele então parou em frente a um dos novatos, um garoto de aparência insegura.

"Você! O que vai aprender nesse treinamento?"

O novato abriu a boca, mas não conseguiu formular uma resposta. Gaguejou, hesitou, e finalmente abaixou a cabeça.

Othon suspirou e se virou para Vasco da Gama.

"E você? Que precisou que eu fosse sua babá hoje e te trouxesse aqui. Qual seu nome?"

"Vasco da Gama, senhor."

Othon ergueu uma sobrancelha.

"Nome diferente... Agora me diga, Vasco da Gama, o que você vai aprender nesse treinamento?"

Vasco hesitou. Ele queria responder algo inteligente, mas a verdade era que não sabia a resposta.

"Não sei, senhor."

Othon fechou os olhos por um momento, inspirou fundo e balançou a cabeça antes de gritar:

"Flexões! Todos! Agora! Se ninguém sabe o que vai aprender, é porque ainda possuem dúvidas! Então vamos resolver isso na dor!"

O grupo inteiro caiu no chão novamente, os braços já tremendo de exaustão. Othon começou a contar.

"Um... Dois... Três..."

O treinamento estava longe de acabar.

Othon observou os novatos exaustos no chão e cruzou os braços.

"Já que ninguém sabe, vamos começar com a parte física então."

Ele continuou comandando os exercícios. Flexões, corridas, polichinelos e todo tipo de treino físico. Por quase uma hora, os novatos foram empurrados ao limite, suando e ofegando sem poder reclamar. Othon não mostrava sinais de cansaço, apenas caminhava entre eles, corrigindo posturas e gritando ordens.

Quando finalmente encerrou os exercícios, os recrutas mal conseguiam se manter de pé.

"Agora que vocês entenderam o que é esforço, vamos ao que importa," disse Othon, olhando para cada um. "Nas minas, há várias áreas de atuação. No início, vocês passarão por um treinamento básico em cada uma delas para descobrirem onde têm mais aptidão."

Os novatos trocavam olhares entre si, alguns tentando recuperar o fôlego, outros apenas absorvendo as palavras do comandante.

Othon apontou para os enormes exoesqueletos alinhados no galpão.

"A primeira coisa que vocês vão aprender é como usar um Exoesqueleto. Quem aqui já usou um?"

A maioria permaneceu em silêncio. Apenas dois levantaram a mão.

Othon assentiu lentamente.

"Certo. Antes de usarmos essas máquinas gigantescas, vamos começar com os modelos menores. Se não conseguirem controlar um básico, não têm chance com um desses."

Ele apontou para uma fileira de exoesqueletos mais compactos ao fundo da sala.

"Vamos ver se vocês conseguem aprender rápido ou se vão acabar no chão de novo."

Othon caminhou até os exoesqueletos menores e bateu na estrutura metálica de um deles.

"Todos, vistam esses exoesqueletos agora! Quero ver quem sabe obedecer rápido."

Os exoesqueletos menores eram equipamentos compactos, cobrindo apenas partes essenciais do corpo. Possuíam suportes hidráulicos nas pernas e braços, aumentando força e resistência. No peito, uma carcaça metálica protegia o tronco, e os motores embutidos facilitavam os movimentos. Diferente dos modelos gigantes, esses eram mais ágeis e serviam para treinamento inicial.

Os novatos, ainda exaustos, começaram a vestir os equipamentos. O processo não era simples, alguns demoravam para se ajustar corretamente e outros nem conseguiam prender as travas de segurança. Othon observava tudo, sem paciência para erros.

"Ajustem os cintos, regulem a pressão nos membros e ativem os motores. Não quero ninguém travado no meio do treinamento."

Após alguns minutos, todos estavam devidamente equipados. Othon analisou o grupo e deu a próxima ordem:

"Primeira etapa: andar. Parece fácil? Vamos ver se realmente é."

Os novatos deram os primeiros passos com hesitação. Os exoesqueletos amplificavam seus movimentos, tornando cada passo mais brusco do que o esperado. Alguns cambalearam como bêbados, tentando compensar a força do traje. Outros, menos afortunados, foram direto ao chão com um estrondo metálico.

Vasco sentiu o peso do equipamento, mas em vez de lutar contra ele, tentou seguir seu fluxo. Seus passos foram cuidadosos, sentindo o tempo de resposta do traje, adaptando-se à pressão que ele exercia sobre suas pernas.

Othon observava tudo com olhos frios. Seu tom carregava desprezo.

"Vergonhoso! Se não conseguem andar, imaginem sobreviver dentro de uma mina! Levantem-se e continuem!"

Os novatos gemeram, se levantando com dificuldade. O impacto das quedas ainda reverberava em seus corpos. Mas não havia alternativa. A cada tentativa, foram se adaptando melhor, até que os passos desajeitados começaram a se tornar mais firmes.

Vasco avançava com confiança. Seus movimentos eram fluidos, como se já tivesse treinado antes. Seu corpo assimilava rapidamente os ajustes necessários para controlar o exoesqueleto. Em pouco tempo, já caminhava sem esforço aparente.

Othon percebeu.

"Agora o teste de equilíbrio! Quero todos passando por aquela plataforma estreita. Se caírem, recomeçam do zero."

O olhar dos novatos se voltou para a plataforma suspensa. Estreita e elevada, qualquer erro significaria um tombo feio. O medo transparecia no rosto de muitos.

Um a um, começaram a tentar atravessar. Alguns tremiam, hesitavam, e perdiam o equilíbrio antes mesmo da metade. O som dos impactos no chão ecoava pelo galpão. Othon não poupava palavras.

"Equilibrem o peso! Não adianta ter força se não conseguem nem andar reto!"

Vasco respirou fundo. Seu coração martelava, mas ele focou no desafio. Subiu na plataforma e deu o primeiro passo. O exoesqueleto respondeu de imediato, ajustando sua postura. Ele manteve o olhar fixo à frente, os músculos relaxados. Passo após passo, avançava sem hesitação.

Os outros pararam para observar. O garoto que vinha do orfanato, sem experiência alguma, deslizava pelo trajeto como se fosse natural. A adrenalina tomava conta de seu corpo, mas ele não titubeou.

Ao pisar no outro lado, sem jamais ter perdido o equilíbrio, ergueu o olhar para Othon.

O comandante cruzou os braços e assentiu.

"Muito bom! Finalmente alguém que sabe usar as pernas."

O comentário trouxe um peso extra aos ombros dos outros recrutas. Agora, mais pressionados, eles insistiram até conseguirem atravessar. Um a um, foram se ajustando, tropeçando menos, até que, enfim, todos completaram o percurso.

Mas o treinamento estava longe de terminar.

"Agora, corrida! Esses exoesqueletos podem alcançar 100 km/h. Quero ver quem realmente domina a máquina!"

Os novatos se entreolharam, inseguros. Para muitos, só a ideia de correr a essa velocidade já era aterrorizante. Mas hesitar não era uma opção.

Othon levantou o braço. "Preparem-se!"

O ar ficou pesado. Os motores dos exoesqueletos ronronavam, prontos para disparar. Os novatos se posicionaram.

"Vão!"

Os trajes impulsionaram os corpos para frente. Nos primeiros segundos, a sensação era de puro caos. Aceleração brutal. O chão passava como um borrão. O vento rugia nos ouvidos.

Alguns não conseguiram controlar o impulso. Um deles tropeçou, tombando desajeitado no chão metálico. Outro perdeu o equilíbrio e foi parar contra uma pilastra. O choque ecoou pelo galpão. Gritos de frustração misturavam-se ao barulho dos motores.

Vasco, por outro lado, sentiu algo diferente.

O traje não era um inimigo. Era uma extensão do seu corpo.

Ele ajustou a postura, inclinou o tronco e deixou a máquina guiar seus movimentos. O vento cortava seu rosto, mas ele não piscava. Seus olhos estavam fixos no horizonte.

Cada passada era precisa. Seus pés tocavam o chão no ritmo perfeito. Ele não lutava contra a máquina, fluía com ela.

Logo, percebeu que estava deixando os outros para trás.

A adrenalina explodiu. Um sorriso surgiu em seu rosto. Ele apertou o passo e acelerou ainda mais. O chão desaparecia sob seus pés, e a linha de chegada se aproximava.

Os gritos de incentivo ecoavam ao fundo, mas ele mal os ouvia.

Com um último impulso, Vasco cruzou a linha de chegada em primeiro lugar. Os motores chiaram ao desacelerar. Seu peito subia e descia, mas o cansaço não veio. Apenas a excitação da vitória.

Othon observava de braços cruzados. Por um breve momento, um sorriso de canto surgiu.

"Parece que temos um corredor aqui. Muito bom!"

Os outros novatos chegaram logo depois, alguns ofegantes, outros frustrados com os próprios erros.

Othon deu um passo à frente, a voz voltando ao tom frio e exigente.

"Mas não se ache só porque foi o mais rápido. Ainda há mais testes."

A próxima etapa era força bruta.

Blocos metálicos foram trazidos para o centro do galpão. Alguns pesavam 100 kg. Outros, monstruosos 200 kg. O chão vibrou quando os últimos foram colocados.

Othon se virou para os novatos, o olhar afiado como lâmina.

"Agora quero ver força! Sem técnica, sem controle, esses trajes são inúteis. Levantem os pesos!"

Os recrutas hesitaram. Alguns olharam para os blocos com desconfiança. Para qualquer humano comum, levantar aquilo era impossível.

Mas eles não eram mais apenas humanos.

O primeiro novato se aproximou, flexionou os joelhos e segurou um bloco de 100 kg. Fez força, esperando um peso esmagador.

O bloco saiu do chão com facilidade.

Os olhos dele se arregalaram. Aquilo não era natural.

Os outros viram e seguiram o exemplo. Pegaram os blocos e os ergueram sem esforço. Seus corpos, ampliados pelos exoesqueletos, faziam parecer que estavam levantando simples sacos de areia.

A empolgação cresceu. Alguns começaram a desafiar a si mesmos, levantando 200 kg, depois tentando erguer dois blocos ao mesmo tempo.

Vasco sentiu a adrenalina pulsar. Aproximou-se do maior bloco disponível. 200 kg. Seus dedos metálicos se fecharam ao redor da peça fria.

Respirou fundo e puxou.

O bloco subiu como se fosse feito de plástico. Ele o ergueu acima da cabeça e olhou para Othon.

O comandante manteve sua expressão séria, mas havia um brilho de aprovação em seus olhos.

"Nada mal. Mas não se esqueçam: não é a máquina que faz o guerreiro. É o guerreiro que domina a máquina."

Os novatos mal acreditavam no que estavam fazendo. Pela primeira vez, sentiram-se verdadeiramente fortes.

Mas Othon não ia deixá-los relaxar.

"Rodada extra de exercícios! Flexões, polichinelos, corrida! Quero ver vocês suando!"

Dessa vez, porém, ninguém demonstrou cansaço. Os exoesqueletos faziam todo o trabalho pesado, aliviando a carga sobre os músculos.

Othon então cruzou os braços e deu sua lição de moral:

"Agora entenderam. As máquinas estão aqui para auxiliá-los. Com elas, vocês são mais fortes, mais rápidos e mais eficientes. Mas não dependam só delas. Se não aprenderem a controlá-las, serão apenas cascas vazias dentro de um monte de metal."

Ele olhou para cada um dos novatos, certificando-se de que estavam ouvindo.

"Isso foi só o começo. Amanhã, vocês vão descobrir o que realmente significa trabalhar nas minas de Marte."

Othon observou os novatos exaustos e então falou em um tom firme:

"Estão dispensados. Isso é tudo por hoje."

Vasco olhou para o relógio e ficou surpreso ao notar que o horário de trabalho já havia sido cumprido. Na verdade, estavam quase perdendo o trem de volta! Sem perder tempo, ele e os outros novatos saíram correndo em desespero, enquanto corriam um dos novatos gritou.

"Vamos perder o trem! Falta apenas 3 minutos para a saída!"