Moisés entrou no pequeno quarto e encontrou Vasco da Gama jogado na cama estreita, enrolado em um fino cobertor cinza. O visor do relógio na parede marcava 1:75 horário marciano, aproximadamente 4:12 no horário que estamos acostumados. Estava completamente escuro do lado de fora. Ele sacudiu Vasco pelo ombro com certa força.
— Ei, Vasco, levanta! Tá na hora.
Vasco resmungou alguma coisa ininteligível, virando-se para o outro lado e cobrindo a cabeça com o cobertor.
— Só mais cinco minutos... — murmurou, a voz abafada pelo travesseiro.
Moisés bufou, cruzando os braços.
— Cara, são uma e setenta e cinco da manhã. Se você não levantar agora, vai fazer a gente perder o transporte. E aí quero ver arrumar emprego em Marte! E o pior, eu vou me ferrar! Se eu me ferrar você vai se ferrar, entendeu?
Vasco soltou um gemido longo e arrastado, como se o simples ato de se mexer fosse um sacrifício.
— Tá tão escuro ainda... Parece que nem começou o dia.
— Bem-vindo a Marte. Aqui a gente trabalha antes do sol nascer — respondeu Moisés, puxando o cobertor de uma vez.
— Ei! Tá gelado! — reclamou Vasco, sentando-se lentamente e esfregando os olhos inchados de sono.
Moisés olhou para ele, impaciente, e apontou para o dispositivo em seu pulso.
— Anda logo, o carro autônomo já tá a caminho. Se arruma e vamos.
Vasco bocejou, levantando-se com movimentos lentos. Pegou um dos uniformes de Moisés emprestado e o vestiu sem muita pressa, ainda tropeçando nos próprios pés.
Quando saíram de casa, o céu de Marte estava tão negro quanto o interior de uma caverna. As luzes fracas do domo lançavam reflexos metálicos na poeira vermelha que dançava com o vento frio.
Um carro autônomo silencioso aproximou-se e abriu as portas automaticamente.
Enquanto andava em direção ao carro Vasco respirou fundo, tentando se manter acordado. O ar seco e carregado de poeira do domo central invadiu seus pulmões.
— Cof! Cof! Que porcaria de ar — reclamou, tossindo e tentando se recompor.
Moisés deu uma risada curta.
— Quanto mais você respirar, menos vai reclamar.
— Duvido. Isso aqui parece areia líquida! — retrucou Vasco, ainda engasgado.
— Relaxa, daqui a uns dias você nem percebe mais. Agora anda logo, o carro autônomo tá ali na esquina.
O veículo autônomo já os esperava, com as portas abertas. Eles entraram e seguiram em direção ao ponto de encontro da mineradora. Durante o trajeto, o carro cruzava ruas desertas, com postes de luz piscando e edifícios desgastados pelo tempo. O silêncio só era interrompido pelo zumbido dos motores do carro.
Quando chegaram ao ponto de encontro, um grande espaço aberto com bancos metálicos e placas indicando horários, o lugar já estava cheio de trabalhadores. Muitos possuíam partes do corpo robóticas e usavam exoesqueletos básicos ou roupas de proteção simples, conversando em grupos enquanto esperavam o trem.
Moisés avistou dois conhecidos sentados em um canto.
— Olha lá o Yuri e o John. Vamos lá falar com eles.
— Quem? — perguntou Vasco, ainda meio aéreo.
— Amigos da mina. Você vai gostar deles.
Os dois se aproximaram. Yuri, um homem de pele clara com uma barba espessa, levantou a mão em cumprimento.
— Olha só quem chegou! O famoso Moisés! — brincou ele, com um sorriso largo.
— E trouxe companhia. Quem é o novato? — perguntou John, um homem baixo e musculoso, que tinha um braço mecânico brilhando à luz fraca.
— Esse aqui é Vasco. Começa hoje o treinamento. — Moisés deu um tapinha nas costas de Vasco.
— E ai, pessoal. — Vasco tentou parecer confiante, mas a tosse de antes o fez soar mais fraco do que gostaria.
— Ainda se acostumando com o ar? — provocou Yuri, rindo.
— Nem me fala... Como vocês aguentam isso? — respondeu Vasco, balançando a cabeça.
John deu de ombros.
— O truque é não pensar muito. E não respirar fundo.
Todos riram.
— O trem tá demorando hoje? — perguntou Moisés.
— Só uns minutos, mas nada novo — respondeu Yuri. — Ah, ouvi dizer que estão testando umas máquinas novas na seção de treinamento. Vasco vai começar bem.
— Máquinas novas? Isso é bom ou ruim? — perguntou Vasco, desconfiado.
— Vai saber — respondeu John, piscando o olho. — Depende de quanto você gosta de surpresas.
Antes que Vasco pudesse perguntar mais, um som alto anunciou a chegada do trem. A multidão começou a se organizar, caminhando em direção às portas metálicas que se abriram com um chiado.
— Bem, é agora. Vamos nessa — disse Moisés seguindo com o grupo.
Vasco sentiu o coração acelerar ao entrar no trem. Era a primeira vez que iria deixar a colônia onde cresceu. Enquanto seguia Moisés e os outros, seus olhos percorriam o ambiente com curiosidade e um toque de ansiedade.
O trem era imenso, com vagões de metal reforçado, projetados para resistir às intempéries de Marte. As janelas eram altas e estreitas, protegidas por barreiras de segurança que filtravam a radiação solar. O interior tinha assentos de aço com estofado fino, já gasto pelo uso constante, e um sistema de iluminação fria que lançava um brilho azulado. O ar era melhor do que no domo central, graças aos filtros industriais.
Vasco se sentou ao lado de Moisés e olhou pela janela.
— Nunca achei que fosse sair da colônia... — murmurou.
Moisés sorriu, meio orgulhoso, meio irônico.
— Marte é grande, Vasco. Hoje você vai entender o que isso significa.
O trem começou a se mover com um ronco profundo. Ao deixar o domo, Vasco viu o horizonte de Marte pela primeira vez.
Do lado de fora, o terreno era árido e vermelho, marcado por formações rochosas que se estendiam até onde a vista alcançava. Montanhas baixas pareciam sombras contra o céu cor de ferrugem. À medida que o trem avançava, passavam por planícies pontilhadas de pequenas estações automatizadas e torres de energia.
O Sol de Marte, mais fraco que o da Terra, estava baixo no céu, lançando uma luz pálida e fria. A poeira fina flutuava, formando redemoinhos que dançavam ao vento. Era um cenário ao mesmo tempo belo e desolador, e Vasco não conseguia desviar o olhar.
— Parece... infinito — disse ele, quase para si mesmo.
— É. E perigoso também — comentou Moisés. — Esse planeta não perdoa descuidos.
Depois de 15 minutos marcianos de viagem, o trem começou a desacelerar. Vasco notou que o terreno ao redor mudava. A terra parecia mais escura, e enormes torres metálicas surgiam no horizonte, com luzes piscando em ritmos sincronizados. Logo, uma estrutura colossal apareceu: as Minas da Noite Eterna de Marte, as maiores minas do planeta e que reunia trabalhadores de várias colônias marcianas.
Quando o trem parou, Vasco desceu junto aos outros trabalhadores. À sua frente, o chão de Marte parecia abrir-se em um abismo. O buraco era tão vasto que parecia um mundo à parte, com plataformas metálicas suspensas em diversos níveis e guindastes gigantescos operando sem parar. Drones e robôs para todo lado. Era um caos organizado.
— Bem-vindo à Noite Eterna, — disse Yuri, parando ao lado de Vasco. — O lugar onde o Sol nunca toca.
Vasco olhou para o fundo da mina, que desaparecia na escuridão absoluta. As luzes das máquinas e plataformas iluminavam partes do abismo, mas o centro permanecia sombrio, como um poço sem fim. Ele sentiu um calafrio percorrer a espinha.
— É maior do que eu imaginava... — murmurou.
Moisés riu, colocando a mão no ombro de Vasco.
— É só o começo, Vasco. Hoje você vê de cima. Amanhã, quem sabe, já estará lá embaixo.
Enquanto o grupo caminhava para o ponto de encontro dos trabalhadores, Vasco não conseguia parar de olhar para a imensidão à sua frente. Era aterrorizante, mas também fascinante. Pela primeira vez, ele sentiu o peso do mundo fora da colônia — e percebeu que sua jornada mal havia começado.
Vasco percebeu que havia um burburinho constante ao seu redor. Os grupos que aguardavam para descer às minas estavam em uma discussão animada. A palavra que mais se destacava entre as conversas eram "alienígenas".
— Você ouviu isso, Moisés? — perguntou Vasco, curioso.
Moisés deu de ombros, mas antes que pudesse responder, Yuri entrou na conversa.
— É só disso que estão falando desde ontem — disse ele, com um tom meio irritado. — A tal Esfera de Dyson. Civilização Tipo II. Parece até história de filme.
John riu com sarcasmo, balançando a cabeça enquanto caminhava.
— E aquilo de que chegamos cedo demais no universo? — disse ele, cruzando os braços. — A humanidade sempre se achou especial, né? Agora descobrem que tem alguém por aí que pode estar tão à frente de nós que nem saberíamos por onde começar a entender.
Yuri assentiu, visivelmente frustrado.
— E sabe o que mais me irrita? A X Company solta uma bomba dessas como se fosse uma novidade, mas você acha que eles realmente descobriram isso agora? Claro que não! Aposto que já sabiam há anos. Só tão falando agora porque não dá mais pra esconder.
— Talvez seja bom não saber o que eles escondem — disse Moisés, com um tom cínico. — Se descobrirmos, vai ser só mais uma coisa pra nos preocuparmos enquanto cavamos buracos.
John bufou, mexendo no braço mecânico como se ajustasse alguma coisa.
— Cavando buracos enquanto tem gente lá fora construindo estrelas. Isso sim é humilhante.
Vasco, que até então ouvia em silêncio, finalmente falou.
— Mas vocês não acham que isso é... incrível? Saber que não estamos sozinhos?
Yuri olhou para ele, erguendo uma sobrancelha.
— Incrível? Talvez. Mas e se não for só uma descoberta? E se eles decidirem que somos um problema?
John completou com uma risada amarga:
— Ou pior, e se eles já acham isso há muito tempo?
A conversa ficou em silêncio por um instante, todos absorvendo a ideia desconfortável. O buraco colossal da Noite Eterna parecia ainda mais sombrio com aquele pensamento.
— É melhor a gente se concentrar em sobreviver aqui, — disse Moisés, quebrando o clima pesado. — Deixar os alienígenas pra quem tem tempo e dinheiro pra se preocupar com isso.
Os outros riram de leve, mas a tensão continuava no ar. Mesmo com o trabalho duro à frente, o pensamento sobre o que poderia estar esperando lá fora nunca saía completamente das mentes dos trabalhadores.
Enquanto Vasco ainda tentava digerir as palavras de John e Yuri sobre a Esfera de Dyson e as civilizações avançadas, um súbito silêncio tomou conta do ponto de encontro. Apenas o som das máquinas ao fundo e passos ritmados se destacavam.
Um homem alto e robusto surgiu entre os grupos de trabalhadores. Vestia um uniforme preto impecável, com insígnias prateadas no peito. Seu rosto marcado por cicatrizes carregava uma expressão severa. O olhar afiado escaneou os presentes, parando diretamente em Vasco.
Moisés sussurrou:
— Ih, Vasco, acho que o velho lobo te encontrou.
— Quem é esse cara? — perguntou Vasco, tentando parecer tranquilo.
— Comandante Othon — respondeu Yuri. — Ex-militar da Frota Marciana, agora instrutor dos novatos. Cara durão. Não faz questão de ser simpático.
Othon parou diante de Vasco e o mediu de cima a baixo.
— Vasco da Gama? — perguntou, sua voz grave.
Vasco assentiu.
— Sim, senhor.
O comandante cruzou os braços e estreitou os olhos.
— Espero que tenha vindo com disposição. Seu treinamento começa agora.
Moisés deu um leve empurrão em Vasco e sussurrou:
— Boa sorte, explorador. Você vai precisar.
Vasco respirou fundo, lançou um último olhar para os amigos e caminhou em direção ao Comandante Othon.