A expressão de ódio no rosto de Joaquim não era mais humana.
Era um impulso bruto. Selvagem.
Ele se levantou com um grito mudo, a pele vibrando, os olhos queimando como brasas sob pressão.
As mãos monstruosas do Careta apertavam seu pescoço — mas ele se soltou.
A força vinha de algum lugar antigo. Profundo. Como se algo o tivesse chamado… e agora estivesse dentro dele.
O Careta recuou um passo, os olhos negros se estreitando.
— Quem é o seu guia, garoto...? — a voz falhou. Ele engoliu seco.
Joaquim avançou. Rápido. Com as duas mãos, segurou o rosto do monstro, tampando-lhe a boca com firmeza.
— Sabe… — murmurou ele, ofegante — eu tô cansado dessa merda toda. Não aguento mais esse chorume que vocês espalham.
O tom era de alguém quebrado. E, ao mesmo tempo, invencível.
— A gente veio até aqui pra proteger essa comunidade. A tua. A quem você diz proteger. E toda a porra de Mauricéia.
As veias em seus braços pulsavam. Um calor estranho dominava a sala.
— E mesmo assim você quer nos fuder?
O Careta contorcia o rosto, mas as palavras de Joaquim pareciam atravessá-lo como lanças.
— Viemos atrás de Katarina. Agora, ou você nos ajuda e para com essa palhaçada de querer matar a gente… ou eu faço a tua vilazinha desaparecer do mapa.
O silêncio era cortante.
Então Joaquim disse, encarando os olhos negros:
— Existe algo além de mim e de você querendo acabar com tudo… o Rei das Cinzas.
— E, claramente, você nem sabe disso.
Hermanito, encostado à parede, observava tudo em silêncio. Seus olhos arregalados. A boca semiaberta.
Durante todo esse tempo… ele duvidara de Joaquim. E agora… ele via. Com horror e admiração. Joaquim não era mais o mesmo.
---
Em outro do vilarejo...
Cupim estava com os pés afundados na lama. As mãos sujas. O cheiro de maré morta.
Ao lado dele, o velho — olhos vítreos, barba salgada, mãos enrugadas como casca de árvore — observava o mangue como quem escuta os mortos.
— Você tá preocupado, né, garoto?
Cupim não respondeu de imediato. Olhou para o chão.
— Eu só quero ir pra casa… — sua voz era baixa, trêmula. — Eu nem sei se o que você disse é verdade. Não faz o menor sentido…
O velho se inclinou.
Pegou um punhado de lama.
E, diante dos olhos de Cupim, a lama se torceu, se enrijeceu, se alongou… até virar uma estaca de madeira viva, pulsante.
Cupim prendeu o fôlego.
— Tá tudo conectado, Cupim… tudo. Somos tudo em um. O universo… as estrelas… — o velho falou, os olhos no horizonte — somos filhos de Deus.
Cupim olhou para o céu, as nuvens cinzas se movendo com pressa.
— Será que… Deus vai me perdoar? Por tamanho pecado?
Ele apertou os olhos.
— Eu matei um homem… o pai da menina que eu gosto. E eu… eu tenho medo de voltar pra Jardim.
O velho tocou seu ombro.
— Deus não vai te abandonar.
O silêncio pairou por um instante.
— Agora preciso te treinar pra proteger a todos.
— E como isso vai acontecer?
O velho sorriu, misterioso.
— Já começou, meu jovem. Coma essa fruta.
Ele estendeu um pequeno fruto amarelado, coberto de barro.
— Que isso… cajá?
— Sim. É cajá.
— Tá certo…
Cupim mordeu.
O gosto era ácido. Quente. A língua formigou.
Então o mundo virou vermelho e preto.
As árvores mudaram de forma. O céu pareceu rasgar.
— O que… tá acontecendo?!
Ele se levantou cambaleante.
O velho abriu os braços, o mangue atrás dele parecia dançar com sombras.
— Essa visão… é o que vai te permitir enxergar à noite, minha criança.