O céu nunca deveria arder. Nunca deveria haver ruínas, nem o cheiro de algo queimando, muito menos gritos que se arrastavam como ecos sem origem. Mas ali estava eu, caminhando entre os destroços do Reino que um dia foi chamado de eterno.
Eu sou Siddhartha. O Iluminado. Aquele que rompeu o ciclo da morte e renascimento, que abandonou tudo para encontrar a verdade. Mas a verdade que eu buscava nunca me preparou para isso.
O Céu não era mais o que prometiam.
Eu caminhava entre torres desmoronadas e nuvens manchadas de cinza, sentindo o peso do divino despedaçado sob meus pés. Os coros celestiais haviam se calado; em seu lugar, gritos distorcidos e lamentos sem fim ecoavam pelo firmamento. As ruas de ouro pareciam estilhaços de um mundo que se partiu. Os anjos, outrora majestosos, agora vagavam como espectros, perdidos, desorientados, olhando para cima como se buscassem um Deus que já não os via.
Algo estava errado. Algo terrível havia acontecido.
Eu sabia que o Céu não era um paraíso absoluto, mas o que se via agora era um apocalipse. Havia corpos caídos nas avenidas de luz, mas eles não estavam mortos—porque a morte os recusava. Homens que haviam sido condenados, pecadores, criminosos, almas indignas… todos estavam aqui. Não porque foram perdoados, mas porque não havia mais para onde ir. O Inferno havia sido destruído.
Anjos vagavam sem rumo. Suas asas estavam manchadas de cinzas e suas expressões não carregavam mais a glória da divindade, apenas um cansaço desesperado. Eles murmuravam preces sem destinatário, como se os próprios céus não mais respondessem às suas súplicas.
Isso não era mais o Paraíso.
E então, no meio desse caos, vi um homem.
Ele estava de pé sobre os destroços de uma basílica destruída. Seu manto era pesado, escuro como a sombra do tempo. A coroa de louros que um dia enfeitara sua cabeça estava suja, quebrada. Seus olhos, dois abismos cheios de conhecimento e dor, se voltaram para mim.
Ele não precisou dizer seu nome.
Eu já o conhecia.
— Dante.
Ele ergueu os olhos, e no cansaço de sua expressão, vi algo que poucos conhecem: a consciência do verdadeiro desespero.
— Siddhartha. Você chegou tarde.
O vento carregou consigo as cinzas de um mundo que não deveria ruir. Trovões ressoavam sem nuvens para justificá-los. O próprio tecido da criação estava desmoronando.
— O que aconteceu aqui? — perguntei.
Dante virou-se, sua expressão era a de quem já sabia a resposta, mas não queria dizê-la em voz alta. Então, ele apontou para o horizonte.
E eu vi.
O campo de batalha.
Era uma paisagem impossível. O Céu, este reino eterno e divino, carregava as marcas de uma guerra que ninguém deveria ter sido capaz de travar. O chão estava rachado, como se algo houvesse perfurado a própria realidade. Havia sinais de confronto, cicatrizes no firmamento, pedaços de asas arrancadas. O próprio tempo parecia hesitar ali, como se o passado e o presente se misturassem em ecos de gritos e golpes que nunca terminavam.
E, no centro de tudo, um vazio.
Uma ausência absoluta, uma marca deixada por algo—ou alguém—capaz de destruir até mesmo o castigo eterno.
O Inferno não fora apagado por misericórdia. Ele fora aniquilado.
— Como? — insisti.
— Nós não sabemos — ele admitiu. — Só sabemos que algo... ou alguém... o destruiu antes que pudesse deixar de existir por completo. O Inferno foi apagado, mas as almas que deveriam desaparecer foram recusadas.
Franzi a testa.
— A morte não os aceitou?
Dante riu, mas não havia humor em sua risada.
— Não. Eles não podem morrer. Eles não podem desaparecer. E sem Inferno, sem Purgatório... só restava um lugar para eles irem.
O céu.
Mas eles não pertenciam ao céu.
— "Quem fez isso?" perguntei, incapaz de tirar os olhos da cicatriz deixada no Céu.
Dante não respondeu de imediato. Ele andou, seu olhar fixo naquilo que ninguém mais parecia perceber: uma prisão.
Era uma construção que não deveria existir ali. Alta, imponente, feita não de pedra, mas de luz cristalizada e véus dourados. Correntes de fogo divino envolviam a estrutura, como se o próprio Céu temesse o que estava dentro.
Dante olhou para mim, e em sua voz havia algo além de entendimento. Havia medo.
— "Eles estão aqui."
O silêncio pesou entre nós. Eu sabia o que ele queria dizer. Os Pecados Capitais.
Eles estavam ali. Não mortos, não julgados, mas purificados. Não havia mais Inferno para prendê-los, então o Céu os manteve selados, escondidos no mesmo lugar onde aprisionaram Naka—aquela que estivera ao lado do destruidor do Inferno.
Eles não eram como os conhecíamos em lendas ou religiões. Eles não eram meras ideias ou conceitos. Eles eram seres. Entidades vivas que representavam tudo o que há de impuro na natureza humana.
Mas algo estava estranho.
Eles não tinham correntes nos corpos.
Eles não pareciam bestas descontroladas, nem estavam consumidos pelo peso do pecado.
Eles estavam... puros.
Seus olhos, que um dia poderiam ter sido cheios de propósito, agora carregavam um silêncio que eu não conseguia compreender.
— O que... aconteceu com vocês? — perguntei.
Foi um dos Pecados que respondeu.
— Nós fomos purificados.
A palavra se cravou em minha mente como uma lâmina.
Purificados? Os próprios Sete Pecados Capitais... purificados?
Isso não fazia sentido.
Dante estreitou os olhos.
— Como?
Naka desviou o olhar, como se as palavras fossem proibidas de serem ditas em voz alta.
Mas foi outro dos Pecados que respondeu.
— Ele nos purificou.
O vento silenciou.
Dante franziu a testa.
— Ele? Quem?
Nenhum deles respondeu imediatamente.
Então, um deles quebrou o silêncio.
— O homem que destruiu o Inferno.
Meu coração pesou.
— Quem era ele?
Naka ergueu os olhos para mim.
E, então, ela disse um nome.
Aquele cujo nome ninguém ousava dizer.
Mas eles sabiam. Os Pecados sabiam.
O ser que caminhou pelo Inferno e o desfez. Aquele que não pertencia a nada. Aquele que não deixou um legado, mas sim uma ausência.
Void.
Aquele que não estava mais ali… e, ainda assim, sua presença era uma sombra impossível de ignorar.
O Céu, quebrado e em ruínas, ainda tremia com o que ele havia deixado para trás.
— Void.
O nome se espalhou pelo vento como uma maldição esquecida.
Eu senti algo se mexer no fundo da minha alma.
Void.
Aquele que ninguém conhecia.
Aquele que destruiu o Inferno.
Aquele que libertou os pecadores, mas os tornou algo novo.
E agora, sem Inferno, sem Purgatório... sem um lugar para onde as almas poderiam ir...
O céu, outrora símbolo de paz e divindade, foi consumido pelo caos, tornando-se um reflexo distorcido do próprio inferno. Das sombras ergueu-se um Messias profano, um arauto da destruição, cuja presença manchava a pureza celestial com a corrupção do abismo. O local antes conhecido como o reino dos justos e bem-aventurados agora se transformava no campo de batalha definitivo, onde forças opostas travariam o embate derradeiro, selando o destino da criação.
O céu estava morto.
Não no sentido de ausência, mas de contradição. Não era um lugar de glória, tampouco de redenção. Era um túmulo de verdades absolutas, uma prova de que a eternidade não é um presente, mas uma sentença.
Eu caminhava sobre um paraíso que se despedaçava sob o próprio peso. Os palácios celestiais, antes imortais, estavam rachados. As vozes dos anjos haviam se calado. No horizonte, uma multidão — não de bem-aventurados, mas de condenados.
117 bilhões.
Cada alma que já viveu, cada assassino, cada santo, cada perdido. Todos os que deveriam estar no inferno agora estavam aqui, e não encontraram um céu, mas um campo de batalha.
Eles gritavam, lutavam, arrancavam pedaços uns dos outros, como se pudessem devorar a eternidade e transformá-la em algo que pudessem entender. Mas era inútil. Eles estavam aprisionados em sua própria natureza. Mesmo aqui, com todas as portas abertas, continuavam buscando o castigo que acreditavam merecer.
E eu? Eu era apenas um homem.
Mas eles não me viam como tal.
O momento em que me viram foi o momento em que se tornaram uma maré. O céu tremeu quando eles avançaram — uma tempestade de almas corrompidas pela culpa, pelo desespero, pela raiva de um destino que não podiam compreender.
E então, eles pararam.
Não por mim.
Por ela.
Naka permaneceu imóvel à nossa frente, sua presença tão absoluta quanto a morte. Ao seu lado, os Pecados. Não como inimigos. Não como forças a serem subjugadas. Eles estavam ali como protetores.
Os pecadores hesitaram. Por quê?
Medo? Não. Eles já haviam desafiado deuses, reis e a própria ordem do universo.
Respeito? Impossível. Eles haviam cuspido na face do divino.
Então… por que?
Eu olhei para Naka, para a serena ferocidade em seus olhos. Ela não era uma guerreira. Não era uma divindade. Mas algo nela os mantinha à distância.
E pela primeira vez desde que tudo começou, um pensamento tomou conta de mim.
Até quando Deus vai interferir no livre arbítrio?
Se o inferno foi destruído, se não há mais punição, se todos estão livres… por que ainda estão presos em si mesmos?
Talvez Void tenha entendido algo que nós ainda não compreendemos.
E eu temia a resposta.