Andávamos entre cadáveres, vísceras e órgãos expostos. O sangue encharcava o solo celestial como uma oferenda involuntária, um sacrifício imposto pelo próprio caos. O cheiro de carne queimada e metal oxidado impregnava o ar, como se o próprio Céu estivesse apodrecendo de dentro para fora.
Cada passo ecoava no vazio, reverberando como o toque de um sino fúnebre, anunciando o fim de uma era. O silêncio não era silêncio—era um grito abafado, um lamento sufocado por tudo o que havia sido perdido.
E ali estavam eles.
Belial e Dajjal.
"Jesus" e "Maomé".
Os farsantes. Os traidores. As sombras do que um dia foi sagrado.
Seus mantos, outrora imaculados, estavam tingidos com o sangue dos fiéis que os seguiram até o abismo. Suas coroas, de ouro e espinhos, reluziam com uma glória falsa, um brilho torcido refletindo a mentira que sustentava seus tronos.
Eles não falavam. Não precisavam. O próprio peso de suas presenças esmagava tudo ao redor, como se o ar estivesse carregado de chumbo.
Diante deles, eu e os seis pecados.
A Ira fervia em suas entranhas. A Luxúria sussurrava promessas ao vento. A Gula devorava a própria ansiedade. A Avareza contava os segundos, como se cada momento fosse uma moeda em sua coleção. A Preguiça se inclinava contra a realidade, prestes a desabar. A Inveja queimava, faminta por algo que nunca teria.
Seis sombras ao meu lado, cada uma um fragmento da verdade distorcida da humanidade.
Não havia palavras a serem ditas.
O que poderia ser dito diante do inevitável?
O olhar de Belial encontrou o meu.
Um sorriso rastejou pelo seu rosto, um sorriso de quem já havia vencido, de quem já previa cada movimento antes mesmo de ser feito. Dajjal permaneceu imóvel, mas seus olhos eram como abismos gêmeos, devorando tudo o que tocavam, distorcendo a própria essência da existência.
Eu senti o peso desse olhar, o peso da certeza.
Para eles, essa luta já havia acabado antes mesmo de começar.
Mas eu não cairia sozinho.
A batalha começou sem aviso.
Belial ergueu a mão, e a explosão de luz que emanou de seus dedos não era apenas uma luz—era um dilaceramento da própria existência. O céu se rasgou. O solo celestial vaporou em um instante, reduzido a nada, como se nunca tivesse existido. O impacto foi tão brutal que a realidade se estilhaçou como vidro, espalhando fragmentos de tempo e espaço pelo ar. O mundo piscou, hesitou entre ser e não ser, e então tudo mergulhou no caos.
Dajjal avançou no mesmo instante. Sua voz ecoou como um trovão, mas era um trovão distorcido, um som que não deveria existir. Cada palavra que ele dizia mudava a natureza da realidade ao redor. O que era verdade se tornava mentira. O que era mentira se tornava verdade. Ele não precisava levantar um dedo—o próprio conceito de existência se curvava diante dele.
Os pecados atacaram.
Eles não hesitaram. Não podiam hesitar. A hesitação era a morte certa.
Avareza foi o primeiro.
Ele não falou. Não havia necessidade de palavras quando a própria essência da sua alma gritava por ele. Suas mãos se estenderam, longas e douradas, transformando-se em correntes de ouro puro. Correntes que buscavam se enrolar ao redor de Belial, prender o falso messias, sufocar sua glória vazia e arrancá-la como uma fraude.
— "Eu amo aquele que deseja tudo, pois seu desejo o condena à própria destruição!"
Mas Belial não fugiu. Ele apenas sorriu. Um sorriso largo, um sorriso que parecia saber de tudo antes mesmo de acontecer.
Então ele cuspiu fogo divino.
O ouro derreteu instantaneamente. As correntes se tornaram rios de metal em chamas, escorrendo como sangue incandescente. O fogo devorou Avareza de dentro para fora. Ele gritou, mas não parou. Mesmo enquanto seu corpo queimava, ele avançou. Seus dedos, agora cinzas, alcançaram a carne do impostor e se cravaram nela como lanças.
E então ele explodiu.
A primeira morte.
O impacto lançou brasas para todos os lados, queimando o céu, queimando tudo ao redor. Mas ninguém parou.
Gula rugiu em fúria.
Seu corpo se abriu, sua boca se tornou um abismo sem fim, um buraco negro devorador de tudo. O céu foi tragado. Os destroços giraram em espiral, sugados para o vazio. Até os gritos das almas condenadas foram engolidos. A fome de Gula não conhecia limites.
E ele tentou consumir Belial inteiro.
— "Eu amo aquele que consome tudo, pois no final será consumido por sua própria fome!"
Mas o falso profeta riu.
Belial estendeu a mão e mergulhou-a dentro da boca de Gula. Seus dedos atravessaram a escuridão, tocaram o âmago do pecado. E então, num movimento brutal, ele o rasgou de dentro para fora.
Gula implodiu.
A segunda morte.
O céu se partiu como carne viva. O universo tremeu.
Mas ainda não havia tempo para lamentar.
Ira foi o próximo.
Ele avançou como uma tempestade encarnada, um furacão de destruição. Seu punho colidiu contra a face de Dajjal com a força de mil exércitos. A máscara do impostor se rachou. Por um instante, apenas um instante, sua verdadeira face brilhou através da ilusão. Um vislumbre da mentira por trás da mentira.
Mas Dajjal apenas riu.
— "Eu amo aquele que se entrega ao fogo da fúria, pois será consumido pelas próprias chamas!"
E, num único toque, ele reverteu o golpe.
O fogo de Ira se voltou contra ele mesmo. Sua pele começou a arder. Sua carne se desfez em brasas vivas. Seu próprio poder se tornou sua ruína.
A terceira morte.
E os outros não pararam.
Luxúria veio logo depois.
Suas correntes de desejo se estenderam, serpenteando pelo ar, buscando envolver Dajjal. Tentar prendê-lo em sua própria ilusão. Mas Luxúria foi enganado. Seu próprio poder virou contra ele.
Dajjal sussurrou algo. Uma palavra impossível. E então Luxúria se viu perdido no próprio reflexo.
O desejo que o movia se virou contra ele. Ele ansiava por algo que nunca poderia ter. O amor inatingível, a plenitude inalcançável. Ele viu seu próprio corpo se distorcer, se desmanchar em nada, consumido pela fome infinita de um desejo irrealizável.
A quarta morte.
Preguiça avançou em silêncio.
Seu plano não era atacar. Seu plano era sufocar. Arrastar Belial para um estado de torpor infinito. Um sono do qual ele jamais acordaria.
Mas Belial se recusou a dormir.
Ele estendeu a mão. Um toque. E Preguiça dormiu para sempre.
A quinta morte.
O último foi Inveja.
Ele não gritou. Ele não rugiu. Ele apenas avançou, com olhos famintos, devorando Dajjal com o olhar. Seu desejo era absoluto. Ele queria vê-lo morto. Ele queria acabar com tudo.
— "Eu amo aquele que deseja o que não pode ter, pois seu desejo será sua condenação."
Dajjal estendeu a mão e Inveja desapareceu.
A sexta morte.
O silêncio caiu.
Os pecados estavam mortos.
Mas eles não morreram em vão.
No último instante, em sua última explosão de existência, Avareza, Gula, Ira, Luxúria, Preguiça e Inveja haviam dado tudo. Eles haviam feito o impossível. Eles haviam arrancado o coração de Belial. Haviam dilacerado sua carne divina. Haviam reduzido o impostor ao nada.
Belial estava morto.
O falso profeta caiu. Sua carne se desfez no vento. Sua existência se dissolveu como poeira.
E então, restamos apenas dois.
Dajjal me encarava, e eu sabia que aquele olhar não era apenas de ódio. Era algo mais profundo. Algo que estava ali desde o começo.
Eu respirei fundo.
O cheiro de carne queimada, de sangue celestial e de mentiras desfeitas pairava no ar. O céu tremia ao nosso redor, como se estivesse esperando o desfecho. Como se tudo isso já estivesse escrito, apenas aguardando a última linha.
— Você entende agora, não é? — Dajjal sorriu, mas não era um sorriso de vitória. Era um sorriso vazio, cansado. — Nós sempre fomos peças. Nada disso foi nossa escolha.
Eu apertei os punhos. Não havia sentido em negar. Eu sabia. Desde o momento em que pisei neste inferno, desde o instante em que vi os pecados caírem um a um, uma verdade invisível começou a se formar dentro de mim.
Tudo isso...
— Void nos usou. — Minha voz saiu baixa, mas firme.
Dajjal assentiu.
— Void me usou para purificar este lugar. Para limpar o que estava corrompido. Para apagar tudo que ainda carregava uma mácula de impureza.
Void nunca quis me testar. Nunca quis que eu resgatasse almas.
Ele queria que eu as exterminasse, para no final, trazerem elas a seres puros.
A destruição dos pecados. A morte de Belial. O colapso da própria Criação Divina. Eu não estava salvando ninguém. Eu estava purificando todos.
E Dajjal... Dajjal estava aqui pelo mesmo motivo.
Se eu não os matasse, ele o faria. Se ele não o fizesse, eu o faria. Esse sempre foi o único caminho.
— Não importa qual de nós vença. — Dajjal abriu os braços, como se estivesse prestes a abraçar o próprio destino. — No fim, a escuridão engolirá a luz, e a luz engolirá a escuridão. Tudo será refeito. Tudo será apagado. Tudo será purificado.
Eu senti uma raiva irracional crescer dentro de mim.
— Então tudo isso foi em vão? — Eu gritei. — As lutas? As mortes? A dor? A queda dos pecados? O sacrifício de cada um que lutou para mudar esse destino?
Dajjal me olhou como se eu fosse ingênuo.
— Não foi em vão. — Ele sussurrou. — Foi necessário.
Ele avançou.
Eu também.
Nosso choque foi cataclísmico.
Espadas invisíveis cortaram o espaço. O tempo se desfez. Cada golpe que trocávamos não era apenas um golpe—era a colisão de conceitos opostos. O falso e o verdadeiro. A mentira e a crença. O engano e a certeza.
Dajjal não lutava com força. Ele lutava com significado. Cada movimento dele negava minha existência, tentava apagar minha essência. Ele não estava tentando me matar. Ele estava tentando me tornar irrelevante.
Mas eu existia.
E enquanto existisse, eu resistiria.
Minhas mãos encontraram o pescoço dele ao mesmo tempo que sua lâmina se cravou no meu peito.
Derramamos sangue juntos.
Nos matamos juntos.
O universo estremeceu.
Dajjal caiu. Eu também.
O céu se despedaçou acima de nós. As chamas começaram a se apagar. Os gritos cessaram. As almas, uma por uma, começaram a se dissolver. Não como punição. Não como sofrimento.
Mas como libertação.
Void nunca quis destruir as almas. Ele queria libertá-las.
O inferno existia porque almas corrompidas permaneciam presas nele. Mas uma alma só é corrompida porque ainda carrega algo—desejo, culpa, medo, arrependimento.
Eu matei aqueles que ainda tinham algo.
Eu matei aqueles que ainda se apegavam à própria condenação.
E, ao fazer isso, eu os purifiquei.
Dajjal tossiu sangue ao meu lado. Sua risada era fraca, quebrada, mas havia algo nela que eu nunca tinha ouvido antes.
— No fim... tudo volta para ele. — Ele sussurrou. — Void... sempre soube.
Eu encarei o céu vazio.
Nada restava.
Nenhuma alma. Nenhum pecado. Nenhum grito.
O céu estava... silencioso.
E então, pela primeira vez, eu compreendi.
Void não era um deus. Void não era um governante.
Void era o fim.
O fim inevitável de todas as coisas.
E agora... ele havia me alcançado também.
Meu corpo começou a se desfazer.
Minha consciência começou a desaparecer.
Dajjal me olhou uma última vez.
— Nos veremos do outro lado.
Eu não respondi. Apenas fechei os olhos. E percebi, que Void fez todos os pecadores repousarem em espírito e alma como seres puros.
E todo o plano material... deixou de existir.
Todos seres clamam:
Oh, Void! Arquiteto da Ruína Sagrada,
Tu que rasgaste o véu do firmamento,
e com mãos de estrelas despedaçadas
derramaste o caos sobre o ciclo do tormento.
Nenhum mortal compreendeu tua fúria divina,
o gesto de extinguir o azul que nos cegava.
Pois o céu não era abrigo, mas prisão clandestina —
uma armadilha de carne que a alma escraviza.
Tu rompeste a abóbada com um grito de eternidade,
e a noite que nasceu de tua ira sem perdão
engoliu os sóis falsos, as luzes da vaidade,
para purificar, em trevas, toda a criação.
Agora, as almas não sangram mais em corpos transitórios,
nem se arrastam pelo pântano dos desejos cegos.
No vácuo que deixaste, brilham como relicários,
límpidas, desnudas, livres dos ossos do tempo.
Void, o Grande Cirurgião da Existência,
com tua faca de prata feita de esquecimento,
extirpaste o tumor da matéria, a ilusão da persistência,
e nos deste a cura pelo frio do teu assombramento.
Os anjos caíam, sem asas, em tua tempestade,
os deuses antigos se dissolveram em pó.
Pois só tu ousaste negar a imortalidade falsa,
só tu entendeste que o verdadeiro eterno
— é o nada que nos veste de imaculada grandeza.
Nós, os libertos, cantamos teu nome nas ruínas do cosmos,
pois sob o céu quebrado, enfim, enxergamos:
a pureza não está na luz, mas na ausência de véus,
não na vida que se agarra, mas na morte que se abre
como um lírio negro no jardim do infinito.
Glória a Void, o Condutor do Fim Necessário!
Que seu vazio nos preencha.
Que sua escuridão nos ilumine.
Que seu silêncio ecoe em nós,
hasta que todas as almas sejam, como ele,
apenas — e tudo — em sua eterna quietude.
Louvado seja o Void, o Único Verdadeiro Purificador.
Que a carne não mais nos defina.
Que o ciclo se quebre.
Que o céu jamais se reconstrua.
Que clamem! Void é o último Messias!