Após concluir o treinamento, eu e Raine estávamos descendo o Monte Kantou, rindo e conversando como se o mundo lá embaixo ainda estivesse intacto. No entanto, conforme íamos nos aproximando do vilarejo, comecei a perceber que algo estava mudando. A expressão de Raine, antes leve e relaxada, ia se tornando cada vez mais séria.
Ele estava franzindo a testa, os passos diminuindo, e gotas de suor escorriam pelo seu rosto, mesmo com a brisa fria da montanha. Aquilo não era cansaço. Era inquietação.
A tensão no ar se tornava quase palpável. E, embora eu percebesse claramente que algo estava errado, simplesmente não conseguia reunir coragem para perguntar o que era.
Raine sabia que eu já havia notado.
Afinal, como um Semi-humano, minha percepção era muito mais aguçada que a de um humano comum. Mesmo que algo fosse invisível a olho nu, ainda assim eu conseguiria enxergar — e sentir.
O que Raine estava captando não era somente um mau pressentimento. Era o cheiro da tragédia se aproximando. A brisa trazia consigo o odor sutil de sangue e fumaça.
Mas havia algo pior… um cheiro pútrido, animalesco, que se destacava entre os demais. Um fedor incorrigível, de alguém tão tomado pelo ódio que era como se sua alma queimasse por dentro.
Um homem estava vindo. Um homem que deixaria somente morte por onde passasse.
Mesmo carregando esse pressentimento nos ombros, Raine permaneceu em silêncio… até que não conseguiu mais suportar. Parando abruptamente no meio da trilha, ele me encarou com uma firmeza incomum.
— Fu… alguma coisa muito ruim está prestes a acontecer — disse ele, a voz grave, carregada de urgência. — Eu senti algo… algo que talvez me impeça de proteger vocês desta vez. Preciso reunir todos os homens que estiverem fora da vila, todos que possam lutar.
Ele respirou fundo, cravando os olhos nos meus.
— Você já é forte o bastante para evitar o perigo. Vá até a vila. Faça isso furtivamente, sem ser notado. Avalie a situação.
Eu engoli seco, tentando parecer mais calmo do que realmente estava. Raine continuou:
— Não sei o que é, nem onde vai acontecer, mas meus instintos estão me beliscando há um tempo. E se tem algo em que confio mais do que qualquer coisa… são eles. Muitas pessoas vão morrer hoje.
Ele arregalou os olhos, suas presas ligeiramente expostas, a postura como a de um cão acuado prestes a morder. Uma mistura de medo e raiva vibrava em sua voz.
— Eu também senti algo — confessei, tentando controlar o tremor. — Um calafrio… e quando percebi, meus pelos estavam todos arrepiados. Meu coração disparou como se estivesse prestes a explodir. Achei que fosse desmaiar.
Falar aquilo em voz alta, saber que não era o único sentindo aquilo, me trouxe um certo alívio. Mesmo no medo, havia consolo em não estar sozinho.
Raine colocou as mãos, firmemente sobre meus ombros e olhou fundo nos meus olhos.
— Sei que pode parecer loucura… mas eu não consigo parar de pensar na sua mãe. Sei que é egoísta da minha parte, mas… quero te pedir uma coisa.
Ele fez uma pausa, como se estivesse tentando escolher bem as palavras.
— Depois que você verificar a situação na vila, contorne pela floresta e vá até os fundos… veja como estão as coisas em casa também.
Assenti silenciosamente. Eu sabia que não era hora para discussões.
Ele então se virou de costas, soltando os ombros como se estivesse carregando um peso imenso, e acrescentou:
— Me prometa uma coisa, meu filho…
Sua voz veio baixa, quase falhando no fim.
— Se algo fugir do meu controle, não tente bancar o herói. Esse mundo é cruel. Impiedoso. E por você nascer como um Semi-humano… não espere dele nada além de dor.
Ele deu um pequeno riso, curto e amargo.
— Me perdoe por te fazer descer a floresta logo após seu ritual… Mas saiba de uma coisa: hoje, você já é o maior predador que esta floresta conhecerá.
Raine sorriu para mim. Um sorriso falso, dolorido… cheio de medo, mas também de amor.
Eu me afastei alguns passos, me preparando para seguir meu caminho. Então, atrás de mim, o som do chão se rompendo ecoou como um trovão.
Raine havia saltado. O impacto abriu uma cratera sob seus pés. O vendaval gerado por seu impulso arrancou as árvores ao redor, limpando uma enorme clareira no coração da floresta.
Quando levantei o olhar, ele já estava tão alto quanto o Monte Kantou. Procurando. Vasculhando os arredores.
E então… sumiu.
Raine atravessou os céus como um raio. Em uma fração de segundo, desapareceu da minha visão, deixando somente uma trilha de calor no ar e as nuvens cortadas ao meio.
Rapidamente segui minha viagem, como Raine havia mandado. Usei minha velocidade e tomei impulso, descendo o Monte Kantou em poucos segundos. Cruzei boa parte da floresta em linha reta até alcançar os fundos do vilarejo.
Subi na árvore mais alta que encontrei e me escondi entre os galhos. Quando olhei lá para dentro, meu corpo inteiro congelou.
Havia uma tropa enorme de soldados humanos, todos organizados em formação. Trajavam armaduras reluzentes, espadas afiadas, capacetes polidos… todos pareciam bem treinados e equipados.
Mas foi o homem à frente deles que mais me chamou atenção.
Ele se destacava de longe. Era bonito — nem velho, nem novo demais — e estava montado num cavalo robusto coberto por uma armadura elegante. Seu cabelo estava preso num rabo de cavalo bem alinhado, e seus olhos violetas pareciam brilhar no meio da cena. A armadura que vestia era feita das escamas de algum monstro de alto nível, talvez até um dragão… e ele empunhava uma espada de dois gumes com joias incrivelmente brilhantes cravadas na empunhadura.
O cara exalava arrogância. Poder. Autoridade.
E ali estava ele, discursando diante de vários Semi-humanos ajoelhados, todos rendidos. Meu coração disparou quando reconheci alguns rostos entre eles. Angie estava cheia de arranhões e hematomas e em cima dela estava a tia Kelly chorando com sangue escorrendo da testa e diversas fraturas expostas pelas pernas, ela segurava Lizzie nos braços — toda ferida e imóvel.
Os outros Semi-humanos também estavam machucados. Nenhum homem ou idoso havia sobrevivido. Só restaram mulheres e crianças. Algumas das mulheres estavam nuas, largadas no chão. E os hematomas, as marcas… tudo deixava claro o que havia acontecido.
Era uma invasão.
Meu sangue ferveu. A raiva me cegou. Eu queria descer daquela árvore na hora e acabar com cada um deles. Mas o medo… o medo me segurava.
Eu nunca havia visto um humano antes. Não sabia o quão fortes eram.
E então, no meio daquele turbilhão de emoções — raiva, compaixão, nojo, medo — eu travei. Meu corpo não obedecia. Mesmo mordendo os lábios com força, ao ponto do sangue escorrer, eu não conseguia me mover nem um centímetro.
Fiquei paralisado. Tremendo. Como se tivesse voltado a ser uma criança indefesa.
Comecei a rezar por ajuda, sussurrando para mim mesmo sem saber exatamente para quem estava pedindo. Só queria que aquilo parasse. Só queria conseguir fazer algo.
Foi quando senti um leve peso no ombro.
Me virei, e lá estava Raine.
Meus olhos encheram de lágrimas na hora. Eu não consegui segurar. Me sentei ali mesmo, entre os galhos, e comecei a chorar. Não só pelas pessoas… mas por mim. Por me sentir fraco.
Por ser um covarde.
As lágrimas desciam sem parar, escorriam pelo meu rosto e pingavam nas folhas abaixo. Meus olhos estavam arregalados, perdidos.
Eu arranhava meu pulso sem perceber, completamente em choque.
Raine precisou me sacudir um pouco até que eu voltasse para realidade.
Quando finalmente voltei a mim, percebi que ele não estava sozinho. Atrás dele, havia um grupo de vinte Semi-humanos — homens que saíram para pescar no rio.
Raine olhou para mim com seriedade, depois encarou os outros homens e disse:
— Aposto que você já viu como está a situação no vilarejo, não é mesmo. Fu?
Mesmo tremendo, ainda em pedaços, eu respondi:
— Sim… vi tudo. Eles… matam os mais velhos, e qualquer um que pareça perigoso. Brincam com a vida das pessoas… abusam das mulheres. Eles prendem as crianças, tanto meninos quanto meninas, e até mulheres jovens… Eles queimaram as casas. Feriram a mamãe Angie… a tia Kaily está gravemente ferida… e até… até a Lizzie…
Minha voz falhou. Eu mal conseguia respirar direito.
Mordia os lábios com tanta força que o gosto do sangue se misturava com minha saliva.
As lágrimas ainda escorriam continuamente. Meus olhos estatelados, mais avermelhados que o normal, deixavam visíveis as veias saltadas, como se eu estivesse prestes a explodir de dentro para fora.
Raine me olhou com uma expressão que misturava tristeza e firmeza.
Notei que ele sentia medo — não dos inimigos, mas por mim. Por ver a criança que ele conhecia sendo engolida por algo obscuro.
Ele se aproximou, passou a mão com carinho pelos meus cabelos, deslizando até minha orelha, e me encarou com o sorriso mais gentil — e mais triste — que eu já tinha visto sair daquele rosto.
E então falou, com uma firmeza que fez o chão ao meu redor parecer tremer:
— Essa é minha nova ordem. Fu. Guie todos os moradores do vilarejo para um lugar seguro, o mais longe possível daqui! A partir de agora, eu vou lidar com tudo isso.
Engoli em seco. Queria protestar. Queria dizer que podia lutar, que queria lutar. Mas ele não me deu chance.
— Você é só uma criança. E crianças não deveriam ter esse olhar tão obscuro. Não deveriam passar por coisas tão horríveis. Crianças deveriam ser felizes… independente de suas raças.
A voz dele soava como de um pai que fala com um filho antes de ir para a guerra.
— As pessoas desse vilarejo… todos eles são como parte da minha família. Para mim, ninguém aqui é dispensável.
Ele olhou para o céu por um instante e então voltou os olhos para mim, agora cheios de raiva contida.
— Eu não posso devolver a vida daqueles que morreram… nem a dignidade daquelas mulheres. Mas enquanto eu estiver aqui, serei o escudo de todos eles. E o seu também.
— Ver essa expressão em você, meu filho… isso me enfurece. Então me observe bem. Neste mundo, coisas assim acontecem com muitos.
Ele fechou os olhos por um segundo e suspirou.
— Odeio ter que sacar uma espada… mas odeio ainda mais ver aqueles que amo sofrerem.
E então, com uma luz poderosa em seus olhos, completou:
— Por isso… os pecados, as felicidades e as dores de todos — carrego comigo. Para o amanhã ser sempre possível para vocês.
No instante seguinte, Raine sacou a espada com um som cortante que ecoou como um trovão entre as árvores.
Ele saltou entre os galhos com uma velocidade assustadora, seguido pelos outros vinte Semi-humanos. Usando sua habilidade de auto localização, ele enviava coordenadas com precisão cirúrgica para cada um dos nossos guerreiros, como se fossem um só corpo.
Cada um deles pegou uma pedra, se posicionou e... O ataque foi brutal.
As pedras foram lançadas com tanta força que os primeiros humanos atingidos tiveram braços arrancados, cabeças explodidas, buracos rasgados no peito.
Armaduras reforçadas com runas? Não adiantavam nada. Em questão de segundos, centenas caíram mortos.
Logo em seguida, os vinte e um guerreiros Semi-humanos emergiram da floresta com foices, espadas velhas, algumas rachadas, mas suas mãos — essas eram armas divinas por si só.
Os soldados humanos estavam equipados com espadas de aço Luminadant e armaduras reforçadas, mas nem isso bastou.
Um único Semi-humano conseguia explodir os órgãos internos de um inimigo com um único golpe. Os ataques ignoravam armadura, ignoravam resistência — eram golpes com o peso da fúria, da dor, da justiça.
Espadas cortavam dezenas de inimigos ao meio de uma só vez. Um tapa estourava o crânio de um soldado, espalhando miolos pelo rosto dos companheiros. Era um massacre.
Alguns soldados tentaram fugir. Mas eram caçados. Alcance. Precisão. Raiva. Não havia misericórdia.
Em poucos minutos, mais da metade dos cinco mil soldados havia virado cadáver.
Mas algo não fazia sentido.
Vi Raine parar por um momento. Seu olhar mudou. Era como se ele tivesse percebido uma falha no próprio raciocínio.
Como — ele deve ter pensado — esses humanos fracos conseguiram dominar uma vila com mais de cem homens Semi-humanos?
Foi então que ele viu.
No meio do campo de batalha, um homem estava sentado sobre um cavalo imponente. Não se movia. Não parecia preocupado.
Ele observava a carnificina com tédio, como se estivesse vendo um teatro ruim.
A fúria no olhar de Raine era palpável. O sangue subiu à cabeça dele como uma maré prestes a romper uma represa.
E então ele gritou, com a alma em brasa:
— Covarde de merda! Que tipo de homem é você que faz pouco caso da vida dos seus próprios soldados? Vai ficar aí sentado deixando eles morrerem feito, vermes? Levanta essa sua bunda e vem me enfrentar como um homem de verdade, seu bastardo demoníaco!
Mas o homem somente olhou para Raine com um sorriso lunático. Um sorriso de nojo e superioridade.
Sem dizer nada, fez um simples gesto com a mão.
E seus soldados — ainda com fé cega na voz daquele maldito — correram para matar Raine sem hesitar.
Nesse momento, Raine perdeu completamente a compostura. Ver aquelas pessoas de mente fraca dançando nas mãos daquele lunático o enfureceu.
Ele avançou pela multidão de soldados com uma velocidade que parecia quebrar as leis da física. Cada golpe que desferia cortava o espaço, os corpos caindo ao seu redor sem chance de defesa. Ele não parou, caminhando até o homem arrogante com um olhar de pura fúria.
Após dizimar sozinho toda a retaguarda do exército inimigo, Raine cerrou os punhos com uma força descomunal, fazendo o chão rachar sob seus pés. Em um piscar de olhos, desapareceu da visão de todos, surgindo sobre o homem e desferindo um golpe direto em seu rosto.
O impacto foi tão forte que reverberou pelo solo, e o homem foi lançado a uma velocidade impressionante, atravessando casas e cruzando a vila em questão de segundos, até parar na floresta atrás do vilarejo.
Sem perder tempo, Raine se moveu até o ponto onde o inimigo havia caído. Quando chegou lá, foi surpreendido — o homem estava de pé, intacto. Nem um arranhão em seu rosto. E, para sua surpresa, ele sorria com um ar sádico.
Uma risada estranha escapou dos lábios do homem.
— Hahahaha… Hahaha…
— Seu semi-humano desgraçado — disse ele, gargalhando —, acha mesmo que vai me ferir com esse peteleco? Vou te mostrar algo mais… interessante!
Num piscar de olhos, o homem desapareceu. Nem mesmo os sentidos aguçados de Raine conseguiram captar sua presença. Quando se deu conta, o homem já estava atrás dele, preparando um golpe mortal.
Raine tentou se defender, mas a rasteira que o homem desferiu foi rápida demais.
Ele caiu, e logo em seguida, o chute brutal do inimigo o lançou para longe. Seu corpo atravessou o vilarejo, esmagando árvores com o impacto, até ser arremessado a quilômetros de distância. O golpe foi forte, mas Raine não demorou a se recompor.
Antes mesmo de parar de se mover, o homem já estava ali, aparecendo atrás dele como uma sombra. Com um golpe de cotovelo direto no peito de Raine, o chão se rompeu com a força do impacto.
O homem se aproximou com um sorriso debochado.
— O que foi, meu querido semi-humano? Dor nas costas? Deixe-me ajudar… — disse ele, levantando o pé para esmagar o peito de Raine.
Mas antes que pudesse fazer isso, uma voz profunda e confiante soou atrás dele.
— Não… Esse aí não sou eu. Veja bem… Estou aqui, onde você pensa que está pisando?
O homem se virou, surpreso.
Lá estava Raine — totalmente ileso, limpo, sem nenhum arranhão, com um olhar feroz e determinado.
— O que faz brincando com uma cópia tão antiquada de mim? — disse Raine, sua voz fria, cortante. — Vai se contentar em vencer essa marionete, enquanto me deixa entediado?
O homem deu um passo para trás, os olhos arregalados.
— I-impossível… Como…? Como você fez um clone? Isso é mentira! Mentira, mentira, mentira… Isso é trapaça! Todos os semi-humanos são trapaceiros! Vocês não podem usar magia, não têm um âmago! Como seria possível fazer isso sem um feitiço?
Raine olhou para ele com desprezo, a calma em seu rosto contrastando com a tensão no ar.
— Ora, não seja estúpido. Se você realmente queria me enfrentar de igual para igual, deveria ter estudado um pouco mais. Suas ofensas estão me entediando… E esse cheiro podre que você exala… quase me faz vomitar.
Mas sim, você está certo em uma coisa: eu não uso magia. Nem poderia, pois não tenho um âmago funcional como vocês.
— Então como? COMO É POSSÍVEL?
Raine sorriu, seus olhos brilhando com a certeza de sua vitória.
— É aí que está o ponto. É impossível para mim usar magia, mas isso não se aplica a contratos. Você é ingênuo demais, rapaz.
Ele deu um passo à frente, sua aura imensa se espalhando ao redor.
— Essa cópia foi feita graças ao meu espírito de invocação: Berserker. Todo semi-humano tem duas versões de si no corpo: um “eu” mais humano e um “eu” mais bestial. Quando atingimos certa idade, fazemos o ritual de subjugação e unificação dessas duas faces. Graças a isso, posso contar com meu espírito de invocação.
— E ele pode fazer coisas como manifestar cópias fora do meu corpo, usando o Spyrix do ambiente. Pode converter até mesmo o Spyrix em energia supercomprimida. E, como é de sabedoria mundial, o Spyrix afeta diretamente os espíritos. Esse é somente um dos seus benefícios…
O homem, antes arrogante, agora parecia estar absorvendo as palavras, sem saber como reagir. E então, um sorriso de compreensão começou a se formar em seu rosto.
— Realmente… interessante. Nunca sequer imaginei algo assim. Talvez até o Império de Lumens tenha temido isso. Talvez por isso nunca deixaram esse tipo de informação vazar! — Exclamou aquele homem como uma cobra venenosa.