O majestoso palácio real de Dagura erguia-se como um cadáver dourado sob o céu plúmbeo, seus vitrais góticos filtrando uma luz âmbar que mais parecia líquido derramado de feridas abertas. A assembleia reunida no Salão das Lamentações — o rei Jawin Damak, seus paladinos degenerados e a nata podre da nobreza draguriana — respirava o ar viciado de um reino em agonia. Cada suspiro carregava o ranço da traição iminente, cada olhar trocado entre os lordes era um cálculo venenoso. E no epicentro desse turbilhão de decadência, quase invisível em seu canto sombrio, Baraki observava tudo com olhos que não brilhavam — olhos que sugavam a luz como buracos negros numa realidade despedaçada.
Seu rosto pálido, esculpido em ângulos afiados que lembravam uma caveira revestida de pele, não traía emoção alguma. Mas por trás daquela máscara de placidez, sua mente doentia dançava entre infinitas possibilidades, antevendo cada movimento como um enxadrista que já prevê o xeque-mate vinte jogadas à frente. Os dedos longos e ossudos, terminados em unhas negras e levemente recurvadas, percorriam o braço do trono onde se apoiava num ritmo irregular — tique-taque, tique-taque — como se contassem os segundos restantes antes da explosão de violência que ele mesmo orquestrara.
O assunto que ecoava pelos corredores de mármore negro, agora riscados por marcas de garras que ninguém ousava mencionar, não era mera crise política. Era o anúncio solene de um genocídio iminente. Dagura definhava num ciclo perverso de miséria e fome, estrangulada pelos naufrágios que surgiam como pragas bíblicas no Mar de Ossos. Cada navio perdido era um golpe no coração do comércio, cada carga afundada deixava os celeiros mais vazios e os pobres mais famintos. E enquanto a plebe comia ratos nas vielas fétidas da capital, as Nações das Bestas — aquelas aberrações de semi-humanos além das Montanhas da Perdição — expandia suas fronteiras com a fome insaciável de um câncer.
Jawin Damak, outrora chamado de “O Justiceiro” por suas campanhas impiedosas, agora se assemelhava mais a um velho acabado diante do pelotão de fuzilamento. Seus olhos, antes frios como aço temperado, agora piscavam demasiado rápido, revelando a fadiga de um homem que sabia estar jogando um jogo já perdido. As veias saltadas em suas mãos trêmulas contavam a história de noites sem sono, de copos de vinho envenenado bebidos até a última gota. Ele sabia — com a certeza clara e terrível de quem vê a lâmina brilhar antes de cortar — que, se não agisse, Dagura seria apagada dos mapas como um nome riscado com ódio num pergaminho.
E foi nessa fraqueza real, nessa fissura na armadura do poder, que Baraki enfiou suas garras como um parasita inteligente.
A audiência que Baraki tanto almejara ocorrera exatamente como previra — cada gesto, cada grito, cada olhar de pânico estava escrito no roteiro que sua mente doentia compusera. O Salão do Pesadelo Dourado, com suas paredes adornadas por afrescos de batalhas antigas (agora manchados de umidade e mofo), abrigava os últimos suspiros da razão. Os nobres se aglomeravam em torno de mapas desgastados, seus dedos gordos marcando rotas de fuga imaginárias, enquanto o fedor de medo e suor azedo impregnavam os ricos tecidos de suas vestes.
“INVOCAR AS HOSTES AGORA SERIA SUICÍDIO!” O duque Vorian, cujo pescoço inchado lembrava um peru prestes a ser sacrificado, esmurrou a mesa com força suficiente para rachar o ébano envernizado. “NOSSOS COFRES ESTÃO SECOS! E ESSES… ESSES MONSTROS POSSUEM UMA FORÇA BRUTA QUE NOS REDUZIRÁ A PÓ!”
Baraki observou a cena como um cientista observa cobaias em um experimento. Viu a saliva escorrendo pelo queixo do duque, as veias temporais pulsando na testa do velho marquês de Baltos, o modo como o barão mais jovem — aquele idiota útil chamado Rykker — brincava nervosamente com o punho de sua adaga. Tão previsíveis. Tão patéticos.
Ele se levantou então, não com a urgência de um homem comum, mas com a calma deliberada de um predador que sabe que a presa já está morta — só ainda não caiu. Seus passos não ecoaram — eles sugavam o som ao redor, criando bolhas de silêncio que fizeram até os mais distraídos se voltarem para ele. Quando se postou ao lado do trono real (um movimento calculado para provocar), o barão Rykker engasgou com seu vinho, o líquido rubro escorrendo pelo queixo como sangue de uma garganta cortada.
“SEU PLEBEU NOJENTO!” O marquês de Baltos ergueu-se, sua face empurpurada de ódio. “VOCÊ OUSA SE COLOCAR AO LADO DO REI? SUA CARCAÇA SERÁ ESPALHADA PELAS PORTAS DA CIDADE!"
Baraki permitiu que o silêncio se instalasse. Deixou que o ódio do velho nobre fermentasse, que os olhares de reprovação se acumulassem como nuvens antes da tempestade. Então, sorriu. Não um sorriso humano, mas o arreganhar de um lobo diante de um cordeiro perdido.
E riu.
A gargalhada cortou o salão como uma serra em carne viva — estridente, desequilibrada, carregada de uma alegria que beirava a insanidade. Até o rei Jawin, endurecido por décadas de guerra, sentiu um calafrio percorrer sua espinha.
"Você me diverte, velho caduco…" Baraki sussurrou, inclinando-se para frente como um professor prestes a dar uma lição cruel a um aluno lento. "Mas logo entenderá por que estou aqui."
O marquês recuou. Seus dedos, adornados com anéis de família que valiam mais que vidas humanas, agarravam o brasão no peito como um amuleto. Por um instante fugaz, ele viu — realmente viu — o que havia por trás daqueles olhos mortos. Não era humanidade. Não era loucura. Era algo pior: a absoluta certeza de que tudo aquilo já estava perdido, e que Baraki era apenas o mensageiro do fim.
Baraki ergueu os braços num gesto teatral, seu manto negro abrindo-se como asas de morcego. "NOBRES DE DAGURA!" Sua voz era melíflua e cortante ao mesmo tempo, como mel misturado com vidro moído. "Vocês debatem como ratos numa armadilha, quando o predador já está à porta."
Caminhou entre eles, então, seus passos silenciosos, contrastando com o rangido de botas e o tilintar de espadas nervosas. Sentia o medo emanando de seus poros, o cheiro adocicado do desespero. Era intoxicante.
"Os naufrágios não são acidentes." Deixou as palavras pairando como um verdugo, preparando o laço. "E a ascensão das Bestas? Uma coincidência?" Seus lábios se curvaram num sorriso que mostrava demasiados dentes. "Oh, não… Isso tudo, na verdade, foi uma sabotagem contra nós. E eu tenho as provas."
Com um gesto fluido que falava de anos de prática, sacou um pergaminho selado com cera negra. O símbolo nele estampado fez até os mais corajosos recuarem: a Marca de Galdryz, o Dungeon Lorde — uma figura tão lendária quanto temida. . . Se por muitos um lorde Demônio representa perigo a múltiplas nações, Galdryz um dos mais antigos Dugeon Lorde, era um perigo de escala comparável a Lorde Demônio Serafina, que por si só trazia medo a todo o continente de Thelya… E que poderia comer até Dragões no Café da Manhã e vaporizar nações do mapa com um balançar de sua mão.
O silêncio que se seguiu foi tão denso que se podia ouvir o suor escorrer pelas têmporas do conselheiro real.
"Sim…" Baraki acariciou o pergaminho como se fosse a pele amada de Kalmia. "Galdryz, em sua infinita generosidade, compartilhou conosco a verdade. Da nobreza da nação das Bestas, foram eles que ordenaram os ataques. Aqui" desenrolou o pergaminho com cuidado e obscenidade, "É aqui onde estão suas assinaturas. Seus selos. SUA TRAIÇÃO."
O salão explodiu em caos. Nobres gritavam acusações, mulheres desmaiavam, velhos generais puxavam espadas com olhos injetados. Baraki observou tudo com um deleite quase sexual. Era lindo — Como um incêndio consumindo uma vida, como um rio transbordando sobre uma vila adormecida.
"ACALMEM-SE!" Seu comando cortou o pandemônio como uma lâmina. "A fúria cega não trará vitória. Mas eu… Ergueu as mãos como um profeta, "JÁ PLANEJEI TUDO."
E então, entre suspiros e olhares de desespero, ele desfiou seu plano de destruição:
Cem mil homens atacariam as fronteiras, criando distração.
Ele próprio, com um esquadrão de assassinos e mais cinco mil homens, iriam se infiltrar na capital, seguindo pelas áreas de florestas.
Quando seu cetro (um artefato negro que ninguém ousava questionar) fosse erguido...
A cidade inteira desceria aos infernos.
E quanto aos sobreviventes?" perguntou um capitão com voz rouca.
Baraki sorriu, mostrando cada dente. " Prendam as crianças primeiro. Elas irão gritar mais alto quando verem seus pais sendo decapitados. "
A aprovação foi imediata — Não por concordância, mas por terror puro. Ao sair do salão, Baraki deixou escapar um suspiro de satisfação. Tão previsíveis. Tão fáceis.
Mas sua mente já saltava para o próximo ato: Kalmia. Sua querida, sua vítima favorita. A elfa que resistira tanto, que lutara com unhas e dentes... até não restar nada além de uma casca vazia. Ele a visitaria hoje, é claro. Afinal, até um monstro como ele tinha seus pequenos prazeres.
O corredor que levava aos aposentos de Kalmia era mais frio que o resto da mansão, como se o próprio ar se recusasse a carregar qualquer vestígio de calor ou vida. As tochas tremeluziam com uma luz doentia, projetando sombras que se contorciam nas paredes como espíritos atormentados. Baraki caminhava devagar, seus passos meticulosos ecoando no silêncio, cada batida de suas botas no mármore negro, a contagem regressiva para o horror que se desenrolaria.
Ele carregava consigo um pequeno objeto envolto em seda negra, um "presente" para Kalmia. Seus dedos longos e pálidos acariciavam o tecido com uma ternura perversa, como um amante preparando uma surpresa macabra.
A porta do quarto de Kalmia não era como as outras.
Marcas de unhas – algumas velhas, outras ainda frescas e manchadas de sangue – arranhavam a madeira escura. Sete fechaduras mágicas, cada uma gravada com runas de selamento físico, mantinham o cômodo selado contra qualquer interferência externa. Baraki sussurrou as palavras-chave, uma por uma, e as fechaduras se abriram com cliques satisfeitos, como ossos sendo quebrados em sequência.
Dentro, o quarto era uma grotesca paródia de um aposento nobre.
Cortinas de veludo carmesim – a cor favorita de Kalmia, outrora – agora pendiam rasgadas, suas franjas desfiadas como nervos expostos. O cheiro era uma mistura de sangue seco, ervas medicinais e algo mais doce, mais íntimo: o odor de desespero humano.
E no centro desse pesadelo, encolhida na cama de dossel, estava Kalmia.
Ela já foi uma bela moça élfica nobre.
Tão bela.
Cabelos cor de cerejeira, outrora tão vibrantes que pareciam brilhar com luz própria, agora pendiam opacos e quebradiços como palha podre. Seus olhos – antes dois rubis cintilantes, cheios de vida e desafio – estavam vazios. Vidrados. Como os de um peixe morto há dias no mercado.
Seu corpo, antes esguio e ágil como uma lança, estava reduzido a sombras e ossos. As marcas de um anterior "presente" de Baraki cruzavam sua pele como cicatrizes luminosas, pulsando em um ritmo lento e agonizante. Ela não podia morrer. Ele não permitiria.
Kalmia não reagiu quando ele entrou. Não ergueu a cabeça. Não tremeu. Apenas existia, como um fantasma preso em carne viva.
Baraki fechou a porta atrás de si. O Clique da fechadura soou como uma sentença.
"Minha querida..." Sua voz era um sussurro melífluo, o tom que um poeta usaria para declamar versos de amor. "Trouxe algo para você."
Ele se aproximou da cama, seu manto arrastando-se no chão como as asas de um abutre. Com movimentos cerimoniosos, desdobrou a seda negra, revelando o objeto em seu interior:
Um espelho.
Não um espelho comum, mas um artefato feérico, capaz de mostrar ao usuário sua própria imagem como ela já foi no passado – e como seria no futuro.
Baraki segurou-o diante do rosto de Kalmia.
"Olhe, ele ordenou, suave como um cutelo deslizando na carne.
Por um instante – um breve, trágico instante – Kalmia resistiu. Seus olhos mortos permaneceram fixos no vazio.
Então, como se uma corda invisível a puxasse, ela olhou.
O reflexo mostrou-lhe duas imagens:
À esquerda, a Kalmia do passado: orgulhosa, radiante, com olhos cheios de fogo e lábios curvados num sorriso desafiador. A elfa que se aventurava pela cidade que seus pais cuidavam, a Elfa, feliz, se aventurando em coisas que ela amava fazer. . . Mas tudo caiu em segundos quando a parte em que ela enfrentaria o olhar de Baraki o assassino de seus pais, nos salões de seu próprio castelo, chegou.
E logo em seguida, o espelho passou a mostrar o possível futuro de kalmia, e o que ela se tornaria: um saco de pele e ossos, os olhos furados, a boca costurada com fios de prata, gemendo através das suturas como um animal mutilado preso em um porão escuro e sujo vivendo em miséria sem qualquer resquício de vida, como uma alma penando no fogo do inferno.
Kalmia gritou.
Um som que começou, no fundo, de sua alma dilacerada e explodiu em um uivo que faria lobos em fúria recuarem. Ela se debateu, suas unhas arranhando o próprio rosto, tentando destruir o espelho, o reflexo, a verdade.
Baraki riu.
Não uma risada de triunfo, mas um som úmido e íntimo, como o de um homem que encontra uma piada particularmente engraçada num livro antigo.
"Shhh..." Ele sussurrou e a envolveu em seus braços, puxando-a contra seu peito num abraço que simulava proteção. "Você sempre foi a mais satisfatória, eu amo suas lágrimas, amo te ver gemer de dor e ver sua condição deplorável, Você entende Kalmia? Isso é amor, eu faço isso tudo porque amo você, para mim. Entre todos os jardins, seja o Éden ou qual for, você é a flor mais bela, a flor mais delicada, e te ver morrer lentamente enquanto mantém essa aparência amável, isso tudo me faz te amar cada vez mais, você é completamente minha amável e imaculada flor" Uma de suas mãos deslizou para seu pescoço, os dedos apertando suavemente. "É por isso que eu nunca poderia te deixar morrer completamente, afinal, que jardineiro permitiria isso?"
Kalmia continuou a gritar.
Baraki continuou a rir.
E em algum lugar, nas profundezas da mansão de Baraki, até os ratos se encolheram de terror.
Quando finalmente a deixou – horas depois, com a luz da lua banhando o quarto em tons de Sépia – Baraki fechou a porta com o mesmo cuidado de um pai, colocando uma criança para dormir.
As fechaduras se ativaram sozinhas.
Kalmia não se moveria por dias. Talvez semanas.
E isso estava perfeito.
Porque quando ele retornasse da guerra – coberto de sangue alheio, com novas histórias de carnificina para contar – ela estaria lá.
Sempre lá.
Sua obra-prima.
Sua vítima eterna. . . E também aquela a quem ele dizia ser seu verdadeiro amor.