NONO ANIVERSÁRIO

Estava imerso em um sonho vívido, daqueles que parecem mais reais do que a própria realidade. Via-me em um espaço vazio, envolto por uma névoa densa e silenciosa, como se estivesse flutuando em um mar de alguma composição etérea qual não existia no mundo físico.

O ar era frio, mas não desconfortável, e o silêncio era tão profundo que eu podia ouvir o eco dos meus próprios pensamentos. No centro desse vazio, flutuava uma figura que parecia ter saído de um conto de fadas. Era uma mulher de vestido vitoriano, com cabelos brancos como a neve, que caíam em cachos perfeitos sobre seus ombros delicados. Seus olhos vermelho-carmesim brilhavam como gemas preciosas, refletindo uma luz que parecia vir de dentro dela. Sua pele era pálida, quase translúcida, e emanava uma aura de graça e divindade que me deixava sem fôlego.

Ela segurava uma katana próxima ao peito, uma arma tão bela e perfeita que parecia ter sido forjada pelos próprios deuses. A lâmina brilhava com uma luz suave, como se estivesse viva, e os detalhes intrincados do punho e da bainha eram obras de arte que desafiavam a compreensão humana.

A mulher parecia adormecida, mas algo perturbador se escondia nas sombras atrás dela. Olhos enormes, brilhantes e selvagens, como os de um lobo, aproximavam-se lentamente, fixando-se em mim com uma intensidade que me fazia sentir pequeno e vulnerável.

Eles eram como janelas para um abismo, cheios de uma inteligência antiga e predatória que me fazia querer fugir, mas eu estava paralisado, incapaz de mover um músculo.

Antes que pudesse entender o que estava acontecendo, o sonho foi interrompido bruscamente.

- Ei, acorda, Fu! Você tá morto ou o quê? Se não levantar agora, juro que vou chutar sua bunda até você cair da cama! - A voz aguda de Lizzie ecoou como um alarme indesejado, seguida por cutucões insistentes no meu braço, cada um mais forte que o anterior.

Abri os olhos lentamente, ainda preso às últimas imagens do sonho que se dissipavam como névoa ao amanhecer. A luz do sol já invadia o quarto, iluminando Lizzie, que estava de pé ao lado da cama com os braços cruzados e um olhar que misturava impaciência e irritação. Seus cabelos carmesim estavam desalinhados, como se ela tivesse saído correndo da própria cama, e seus olhos cor de vinho brilhavam com uma intensidade que só Lizzie conseguia ter. As orelhas dela, pontudas e expressivas, estavam eretas, quase como as de um cachorrinho ansioso para sair de casa.

- Tá, tá... Já estou indo. Será que não dá para esperar só mais 30 minutinhos? - murmurei, em um tom arrastado, virando-me para o lado e afundando no travesseiro, que parecia conspirar comigo para me manter preso ao conforto da cama.

- Trinta minutinhos? - Lizzie inclinou-se sobre mim, as mãos firmes na cintura e os olhos estreitados em um olhar que não deixava espaço para negociação. - Você sabe que horas são? Sabe que dia é hoje? - Sua voz era cortante, e eu sabia que ela não ia me deixar escapar tão fácil. - Fu, eu sempre soube que você é um preguiçoso sem noção, mas hoje você superou! Precisa mesmo de um chute para funcionar?

Esfreguei os olhos, ainda meio grogue, e olhei para ela, tentando processar o que estava acontecendo.

- Espera... Que horas são, mesmo? - perguntei, ganhando tempo enquanto meu cérebro tentava se libertar do torpor do sono. As imagens do sonho ainda pairavam na minha mente: aquela mulher de olhos dourados e o lobo que parecia me observar de longe.

- Que horas são? Sério, Fu? - Lizzie agarrou um relógio de madeira em cima da mesa e o empurrou na minha direção. O sino do relógio começou a tilintar, um som estridente que parecia gritar: "Levanta, já!". - Olha isso! Você não tem desculpa!

O relógio era uma peça antiga, feita pelos artesãos da vila, e parecia ter sido projetado especificamente para irritar quem o ouvisse. "Como se eu precisasse de mais um lembrete de que vivemos em um lugar onde a tecnologia é coisa de outro mundo", pensei, olhando para o objeto com uma expressão de desdém.

- Lizzie, eu não vou te dar nem mais um segundo de sono. Você não tem escolha, lembra? Ontem você prometeu que me levaria para pescar! - Ela beliscou minha bochecha com força suficiente para me fazer sentar de repente na cama. A dor foi eficaz em dissipar qualquer resquício de sonolência.

- Tá bom, tá bom... Já entendi. Vou me arrumar, e a gente vai até o Monte Kantou. Só que hoje meu pai não vai conosco Vai ser só eu e você. Tem certeza de que quer ir? - Olhei para ela com um ar de preocupação, tentando disfarçar um pouco de hesitação. - Ouvi dizer que algumas plantações sumiram por lá. Pode ter algum monstro na floresta... E a gente vai ter que passar por ela para chegar lá. Tem certeza que quer arriscar?

Lizzie me encarou com um olhar que misturava desafio e determinação, as orelhas dela tremendo levemente, como se estivessem prontas para a aventura.

- Monstro ou não, eu tô indo. E você também, Fu. Promessa é promessa! - Ela deu um passo para trás, cruzando os braços e sorriu, como se já tivesse vencido a batalha. - Agora, levanta logo antes que eu decida que um chute é a melhor maneira de começar o dia!

Lizzie soltou um suspiro exasperado e colocou as mãos nos quadris, assumindo aquela postura clássica de quem estava prestes a dar uma lição.

- Olha, Fu! Não adianta tentar me botar medo. Mesmo que sejamos só crianças, ainda somos da raça semi-humana. Isso já nos torna muito mais fortes que qualquer bichinho assustador que esteja por aí. - Ela fez uma pausa dramática, os olhos cor de vinho brilhando com determinação. - E, pelo cheiro e pelos rastros que os aldeões viram nas plantações, só tem slimes selvagens por lá. slimes, Fu! Eles são tão fracos que nem chegam a ser monstros ranqueados, até um humano comum consegue lidar com eles sem esforço algum. Nem são considerados monstros de verdade! Então, essa sua desculpa não cola! - refutou ela, com um tom de voz que deixava claro que não ia ceder.

Eu sabia que ela tinha razão, mas algo, no fundo do meu peito, ainda me incomodava. Monstros, mesmo os mais fracos, podiam ser imprevisíveis e Lizzie com essa personalidade dela poderia nos colocar em sérios problemas a qualquer momento. Mas Lizzie não era do tipo que desistia fácil. Ela era teimosa como uma mula, e eu já sabia que argumentar era perda de tempo.

- Tá bom, tá bom... Mas antes, você vai ter que avisar a tia Kelly. Se eu te levar para floresta sem a permissão dela, posso acabar degolado! - respondi, enquanto me levantava da cama e começava a arrumar o quarto. A tia Kelly era conhecida por ser uma pessoa amável e carinhosa. Mas também era uma pessoa sensata, madura e protetora, seja com a família ou com a vila toda. E ela não hesitaria em me dar uma bronca daquelas que ecoariam por dias se eu levasse Lizzie para a floresta sem avisar.

Assim que terminei de arrumar as cobertas, a porta do quarto se abriu com um leve rangido. Lá estava a tia Kelly, parada na entrada com um sorriso caloroso, mas que carregava aquela aura de autoridade que só ela tinha. Ela era uma mulher alta e forte, com cabelos vermelhos carmesim, uma cor clássica entre a linhagem da família D. Scale. Apesar disso, eu sequer sabia muito sobre, pois Raine evitava falar sobre isso todas às vezes, mas ao contrário de mim e Raine tia Kelly matinha o cabelo sempre presos em um rabo de cavalo prático. Seus olhos eram verdes e brilhavam com uma mistura de carinho e severidade, e eu já sabia que ela estava de olho na gente.

- Ei, Lizzie, deixa seu primo arrumar o quarto dele em paz. Se você ficar perturbando ele assim, ele vai demorar o dobro do tempo! - exclamou a tia Kelly, fazendo com que Lizzie se afastasse de mim e se dirigisse à porta. Lizzie fez uma careta, mas obedeceu, resmungando algo inaudível.

Ao chegar na porta, Lizzie virou-se para mim, os olhos estreitados e um dedo apontado na minha direção.

- Te espero lá na entrada da floresta. E é bom você aparecer, Fu, senão vou ser obrigada a amassar você na porrada! - Ela estalou os dedos, e o olhar dela emanava uma promessa de violência que eu não tinha a menor dúvida de que ela cumpriria. Suas orelhas estavam em pé, como se estivessem reforçando a ameaça, e eu sabia que ela não estava brincando.

"Credo, essa garota precisa de um exorcista e um balde de água benta! Como ela pode falar em me espancar tão casualmente, com só 7 anos?", pensei, olhando para Lizzie com uma expressão que misturava incredulidade e um leve pânico. "Ela nem tem altura suficiente para me acertar direito, mas com certeza vai tentar. E, convenhamos, eu não duvido que ela consiga." Lizzie era forte - tanto emocionalmente quanto fisicamente -, e eu sabia que ela não hesitaria em me dar uma surra se eu a irritasse. Ainda assim, era difícil acreditar que alguém tão pequena pudesse ser tão... assustadora. "Talvez ela seja um demônio disfarçado de criança. Ou uma fada do caos. Algo assim."

Assim que Lizzie saiu, terminei de arrumar o quarto e segui para a cozinha, onde minha mãe estava terminando de assar uma fornada de biscoitos. O cheiro era tão bom que quase me fez esquecer da ameaça de espancamento. Quase. Peguei alguns biscoitos, escondendo-os rapidamente em um pano antes que minha mãe percebesse. "Se ela me pegar, vai ser pior do que a Lizzie. Aí, sim, eu vou precisar de um exorcista", pensei, sorrindo para mim mesmo.

Ao abrir a porta, uma brisa fresca acariciou meu rosto, trazendo consigo o cheiro doce das flores-do-campo Olhei para o céu, que estava límpido e azul, e para o vasto campo de plantações que se estendia à minha frente. Tudo parecia perfeito, como se o mundo estivesse em harmonia. A vila era um lugar tranquilo, com algumas centenas de casas que eram compartilhadas por famílias, todas as construídas próximas umas das outras, como uma grande comunidade. Cercada por uma floresta densa e montanhas imponentes, a vila tinha o Monte Kantou como seu ponto mais marcante, sua silhueta majestosa dominando a paisagem como um guardião silencioso. "Pelo menos a vista é bonita", pensei, tentando me convencer de que o dia não ia acabar comigo sendo usado como saco de pancadas pela Lizzie.

Segui pela estrada de terra batida, cumprimentando os aldeões que encontrava pelo caminho. A vila era grande o suficiente para abrigar várias famílias em cada casa, mas pequena o bastante para que todos se conhecessem e se ajudassem. "É tipo uma grande família disfuncional, só que com menos drama e mais plantações de batata", pensei, acenando para o velho Tanaka, que estava consertando uma cerca. Ele acenou de volta com um sorriso desdentado, mas os dentes dele já voltavam a crescer, e eu me perguntei, não pela primeira vez, como a biologia semi-humana podia ser tão fora do padrão. Mesmo um semi-humano velho como o senhor Tanaka podia ter os dentes repostos apenas em alguns dias após ter perdido os antigos, e isso se aplicava até na velocidade de recuperação de doenças ou feridas. "Talvez ter sangue de animais faça as células se duplicarem bem mais rápido?"

Em poucos minutos, cheguei à entrada da floresta, onde Lizzie me esperava com dois arcos e flechas nas mãos. Ela estava vestida com roupas simples, mas práticas, e seus cabelos carmesim brilhavam sob a luz do sol, como fios de fogo. "Se ela não fosse tão assustadora, até daria para achar ela fofa", pensei, mas rapidamente me repreendi. "Não, Fu, não caia nessa armadilha. Ela é um perigo ambulante."

- Então, bora nessa! Sigam-me se tiver a capacidade! - anunciei, com um sorriso confiante, tentando aliviar a tensão que parecia pairar no ar. Lizzie rolou os olhos, mas seguiu-me sem reclamar, seus passos firmes e decididos. "Pelo menos ela não me deu um chute. Ainda."

Entramos na floresta, onde os sons dos pássaros e animais e o farfalhar das folhas criavam uma atmosfera tranquila e quase mágica. No entanto, Lizzie estava estranhamente quieta, o que me deixou intrigado. Ela, que normalmente não parava de falar, agora caminhava em silêncio, seus olhos fixos no chão. "Por que ela está emburrada? Ela parecia tão animada hoje de manhã. Será que fiz algo de errado?", pensei, enquanto caminhávamos. A floresta era um lugar cheio de vida e mistérios. As árvores eram altas e antigas, seus troncos grossos e retorcidos contando histórias de séculos. O ar estava impregnado do cheiro de terra úmida e flores silvestres, e os raios de sol que filtravam pelas copas das árvores criavam padrões dançantes no chão. Era um lugar lindo, mas hoje parecia carregado de uma energia diferente.

Depois de um tempo, chegamos ao pé do Monte Kantou, onde o rio descia das montanhas e desaguava em um lago cristalino próximo à vila. Preparei os arcos e comecei a pescar, enquanto Lizzie se sentava em uma pedra próxima, observando a água com um olhar distante. Gradualmente, sua expressão foi se suavizando, mas algo ainda parecia incomodá-la. Ela não era mais a Lizzie animada e cheia de energia de sempre, e isso me deixou preocupado.

- Lizzie... - chamei, em um tom mais suave. - Tá tudo bem? Você tá quieta hoje. Isso é... assustador. - Tentei brincar, mas minha voz carregava uma preocupação genuína.

Ela olhou para mim, seus olhos cor de vinho refletindo a luz do sol. Por um momento, parecia que ela ia dizer algo, então ela apenas suspirou e olhou de volta para a água.

- É só... - Ela hesitou, como se estivesse lutando para encontrar as palavras. - Às vezes, eu sinto que todo mundo me vê só como a garota agressiva que grita com os outros. Ninguém nunca leva a sério o que penso ou sinto. - Sua voz estava baixa, quase um sussurro, e eu senti um nó se formar na minha garganta.

"Ah, então é isso", pensei, sentindo-me um idiota por não perceber antes. Lizzie era forte, sim, mas também era só uma criança. E, como qualquer criança, ela tinha medos e inseguranças. Só que, no caso dela, ela escondia tudo atrás de uma fachada de bravata e ameaças.

- Lizzie... - comecei, escolhendo minhas palavras com cuidado. - Você é a pessoa mais corajosa que eu conheço. E não é só porque você ameaça me espancar o tempo todo. - Ela olhou para mim, surpresa, e eu continuei. - Você enfrenta tudo de frente, sem medo. Mas... você não precisa fazer isso sozinha, sabe, eu costumo pensar assim comigo, apesar de muitas coisas serem complicadas, tudo que precisamos fazer é entender elas da maneira mais simples. Se as pessoas te verem dessa forma, apenas demonstre que todas elas são uns idiotas e que estão erradas, afinal eu mesmo odeio coisas complicadas, eu sou doente... não possuo nem próximo da estatura real de um semi-humano saudável, graças a {Síndrome Hipersêmia}, mas quem se importa? Afinal convivo com isso, sei daquilo que enfrento diariamente, meus músculos e ossos não se desenvolvem de maneira rápida como normalmente deveria ser entre semi-humanos. E ninguém além de mim, sabe o que preciso superar, já fui até confundido com uma garota credita?... então mesmo que falem me julguem, ou seja, lá o que for, eu não me importo, afinal são opiniões irrelevantes para mim. Mas saiba, você é uma garota forte, te admiro, e estou aqui para você também. Sempre vou estar, você tem a mim e eu tenho você, afinal somos uma família não é, você é como uma irmãzinha mais nova para mim, no fim te garanto que todos sabem que você é uma garota dócil! -

Ela ficou em silêncio por um momento, e então um sorriso pequeno, mas genuíno, apareceu em seu rosto.

- Você só tá dizendo isso porque tenho os biscoitos, né? - Ela cutucou meu braço, e eu ri, aliviado por ver um pouco da Lizzie de sempre voltando.

- Claro que não! - respondi, fingindo indignação. - Mas, já que você mencionou... posso pegar um?

Ela jogou um biscoito na minha direção, e eu o peguei no ar, rindo. Por um momento, tudo parecia perfeito de novo. Mas, no fundo, eu sabia que aquela conversa tinha sido importante. Lizzie podia ser forte, mas ela também precisava saber que não estava sozinha. E eu faria de tudo para garantir que ela nunca se sentisse assim.

Quando o sol começou a se pôr, guardamos os equipamentos e os peixes que havíamos pescado. Lizzie estava mais quieta do que o normal, o que me deixou intrigado. Ela, que normalmente não parava de falar, agora caminhava ao meu lado em silêncio, seus olhos fixos no chão. A atmosfera entre nós era estranhamente pesada, e eu sabia que algo estava incomodando ela.

- Lizzie, está tudo bem? - perguntei, tentando quebrar o silêncio enquanto caminhávamos de volta para a vila.

Ela parou por um momento, olhando para mim com os olhos brilhando de lágrimas. Seus cabelos carmesim balançavam levemente com a brisa da tarde, e seus olhos verdejantes refletiam uma mistura de medo e tristeza.

- Desde que nasci, nós sempre fomos criados juntos. O que vai acontecer quando estivermos mais velhos? - Ela hesitou, como se estivesse lutando para encontrar as palavras certas. - Com 9 anos, todos os semi-humanos passam pelo ritual de comprometimento, onde são enviados para treinar no topo do Monte Kantou. O treinamento é tão pesado que muitos nem voltam vivos de lá. - Sua voz tremia, e as lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. - Tenho medo, Fu. Medo de que, quando chegar sua vez, você não volte vivo. Eu não sei se conseguiria ficar sem um idiota como você!

Fiquei parado por um momento, surpreso com a intensidade das palavras dela. Lizzie sempre foi forte, mas agora ela estava vulnerável, e isso me atingiu de uma forma que eu não esperava. Sorri, tentando acalmá-la, e coloquei uma mão em seu ombro.

- Olha, Lizzie, eu posso até ser um idiota, como você diz muitas vezes, mas tem minha palavra de que eu não vou morrer tão cedo. - Fiz uma pausa, olhando diretamente para seus olhos. - Tenho uma vida inteira pela frente, e valorizo ela demais para deixar tudo para trás. Não acho que seria legal deixar vocês sozinhos. Então, se é isso que você teme, pode ficar em paz. Quando eu for ao Monte Kantou, eu voltarei, e então poderemos pescar muitas outras vezes como hoje! - Abracei-a, tentando transmitir confiança e segurança. Lizzie hesitou por um momento, então abraçou-me de volta, seu rosto enterrado no meu ombro.

Quando finalmente chegamos à vila, algo estava claramente errado. O vilarejo, que normalmente fervilhava de vida, estava estranhamente vazio. Uma enorme fogueira queimava no centro da praça, lançando sombras dançantes nas casas ao redor. Lizzie e eu trocamos olhares preocupados, e eu senti um frio na espinha. O ar estava carregado de uma tensão palpável, e eu sabia que algo estava prestes a acontecer.

- Olha, Lizzie, tem alguma coisa errada aqui. Fica em posição de guarda atrás de mim e me siga. Vou dar uma olhada na vila! - Disse, tentando manter a calma, embora meu coração batesse mais rápido do que o normal. A fogueira no centro da praça não era normal. Nunca havíamos feito algo assim antes, e o silêncio que pairava no ar era assustador.

- Certo! Mas, Fu, tome cuidado... Estou realmente preocupada. Os aldeões costumam ser bem ativos. Sumir assim do nada é preocupante. Além disso, essa fogueira no meio da vila parece demasiadamente estranha! - Completou Lizzie, com uma voz trêmula. Ela estava tentando disfarçar o medo, mas eu conseguia ver a preocupação nos seus olhos cor de vinho.

Caminhamos cautelosamente pela vila, passando pelas casas dos aldeões. Tudo parecia normal, exceto pela ausência das pessoas. As portas estavam fechadas, as janelas vazias, e o único som que se ouvia era o crepitar da fogueira. Decidi ir até minha casa, onde fui surpreendido por um grito coletivo.

- SURPRESA! - Todos os aldeões, incluindo meus pais e a tia Kelly, estavam lá, com sorrisos largos no rosto. A fogueira não era um sinal de perigo, mas sim o centro de uma grande festa. As mesas estavam cheias de comida: pães frescos, peixes grelhados, frutas e até mesmo alguns doces raros que só apareciam em ocasiões especiais. As crianças corriam ao redor da fogueira, rindo e brincando, enquanto os adultos conversavam animadamente.

Lizzie, que estava atrás de mim, deu um empurrão e se abraçou a mim com força, quase me derrubando no processo.

- Feliz aniversário, Fu, seu idiota! - disse ela com um sorriso que misturava alegria e alívio. Seus olhos brilhavam, e eu percebi que ela estava tão feliz quanto eu, mesmo com toda a preocupação que demonstrava antes. - Mas, sério, você é o único que consegue esquecer o próprio aniversário. Até o velho Tanaka lembra do seu!

Olhei ao redor, ainda atordoado, tentando processar o que estava acontecendo. A praça estava decorada com bandeiras coloridas, e as mesas estavam cheias de comida e presentes. Até a fogueira parecia mais alegre do que assustadora agora.

- Mas afinal, o que é isso? Por que todo mundo está aqui? - perguntei, confuso. A festa era linda, mas eu não conseguia entender como todos tinham se organizado sem que eu percebesse.

Lizzie deu uma palmada na minha cabeça, como se eu fosse um cachorro desobediente.

- Francamente! Você é o único estúpido o suficiente para não notar isso aqui, Fu. Será que você ainda não se recordou de que hoje é seu aniversário de nove anos? - Lizzie disse, com uma expressão de decepção, mas seus olhos brilhavam de diversão. Ela sabia que eu era distraído, mas isso era demais até para mim.

Ri, envergonhado, enquanto meus pais se aproximavam. Minha mãe, Angie, estava segurando uma bandeja de biscoitos recém-assados, e meu pai, Raine, tinha um sorriso maroto no rosto. Seus cabelos vermelhos, uma marca da família D. Scalee, brilhavam sob a luz do sol, e seus olhos pareciam ver tudo, como sempre.

- Ah, é mesmo né? Eu tinha até me esquecido, hihihihi! - respondi, enquanto todos riam. A tia Kelly se aproximou, com um olhar carinhoso.

- Você sempre foi um menino desatento, Fu. Mas hoje é seu dia, então aproveite! - disse ela, passando a mão no meu cabelo bagunçado.

Raine deu uma risada e cutucou meu ombro.

- Esquecer o próprio aniversário? Só você mesmo, Fu. Mas, ei, pelo menos você não esqueceu de comer, né? - Ele apontou para os biscoitos na bandeja da minha mãe, e eu senti meu rosto esquentar.

- Pai! - protestei, enquanto todos riam. Raine sempre adorava me provocar, e eu sabia que ele não ia perder a chance de me zoar no meu próprio aniversário.

A festa continuou até tarde da noite, com música, dança e muita comida. Havia até uma apresentação de um bardo viajante que contou a história de São Laceron, o herói que derrotou Rutreus, o dragão que devorou dois terços de uma das três luas. Enquanto o bardo cantava, eu olhava para o céu, onde a lua marcada pela mordida de Rutreus brilhava intensamente. Era uma história que eu conhecia desde criança, mas naquela noite, ela parecia ganhar um significado especial. A lua incompleta era um lembrete de que até os maiores desafios podiam ser superados, e eu me senti inspirado pela coragem de São Laceron.

Quando a festa começou a acalmar, eu me deitei no campo, olhando para o céu estrelado. As três luas estavam visíveis, e a maior delas, com sua marca de mordida, parecia me observar. Lizzie se deitou ao meu lado, e por um momento, ficamos em silêncio, apenas apreciando a beleza da noite.

- Você acha que um dia vai ser tão forte quanto São Laceron? - perguntou Lizzie, quebrando o silêncio.

- Quem sabe? - respondi, com um sorriso. - Mas uma coisa é certa. Eu vou voltar do Monte Kantou, e então poderemos pescar juntos de novo. Prometo.

Ela sorriu, e pela primeira vez naquela noite, parecia completamente tranquila.

No dia seguinte, acordei cedo, ainda com um pouco de sono. Ao descer para a cozinha, vi várias bolsas com equipamentos próximas à porta. Meu pai, Raine, estava ao lado delas, com um sorriso maroto no rosto. Seus cabelos vermelhos, uma herança da família D. Scale, brilhavam sob a luz da manhã, e seus olhos pareciam ver tudo, como sempre.

- Ei, pai, aonde vai? - perguntei, ainda meio confuso.

- Não é aonde vou, é aonde nós vamos! - respondeu Raine, com um tom de voz que não deixava espaço para discussão. Ele estava vestido com roupas de viagem, e sua espada estava presa à cintura. Era um homem alto e forte, com uma presença que impunha respeito.

- Opa, calma aí, eu não concordei com nada! E cadê a mamãe? - interroguei, tentando ganhar tempo. A ideia de partir para o Monte Kantou era assustadora, e eu não estava pronto para encarar a realidade.

- Estou aqui, Fu - respondeu minha mãe, Angie, que vinha de dentro da casa. - Você já vai levá-lo para o ritual de comprometimento, Raine? - perguntou ela, com um olhar de preocupação.

- Sim, Angie. Ele já está em uma boa idade, então deve começar agora! - retrucou Raine, com firmeza. Ele não era do tipo que mudava de ideia facilmente, e eu sabia que não adiantava argumentar.

- Entendo. Tenha cuidado, Fu. Este lugar em que vocês irão é realmente perigoso! - Angie abraçou-me com força, como se não quisesse soltar. Seu abraço era quente e reconfortante, e por um momento, eu me senti seguro.

Sem muito o que dizer, acabei indo com meu pai. Quando estávamos prestes a entrar na floresta, ouvi um grito familiar. Era Lizzie, correndo em minha direção.

- VÊ SE VOLTA VIVO, FU! SE VOCÊ MORRER, EU TE MATO DE NOVO! - gritou ela, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Seus cabelos carmesim voavam ao vento, e seus olhos brilhavam com uma mistura de raiva e preocupação.

Sorri e gritei de volta:

- NÃO FALE COMO SE EU FOSSE MORRER TÃO FACILMENTE, SUA IDIOTA! VOU VOLTAR VIVO, E ENTÃO PODEREMOS PESCAR NOVAMENTE, ASSIM COMO EU TE PROMETI! - Acertei para Lizzie, que continuou a fazer sinais de despedida com as mãos.

Assim, eu e Raine começamos nossa jornada rumo ao topo do Monte Kantou, onde meu destino aguardava. Sabia que o caminho seria difícil, mas também sabia que tinha uma promessa para cumprir. Enquanto caminhávamos, meu pai começou a contar histórias de suas próprias aventuras, tentando me distrair do medo que sentia. Ele era um ótimo contador de histórias, e logo eu estava rindo das suas piadas e esquecendo um pouco da ansiedade.

- Lembra, Fu, o Monte Kantou não é só um lugar de treinamento. É um lugar onde você vai descobrir quem realmente é. E eu sei que você vai surpreender a todos, inclusive a si - disse Raine, com um sorriso confiante.

Eu sorri de volta, sentindo um pouco mais de coragem. O caminho à frente seria longo e cheio de desafios, mas eu estava determinado a voltar. Afinal, tinha uma promessa para cumprir e uma prima explosiva esperando por mim.