O PESADELO DE KALMIA

Não sei mais quantas vezes abri os olhos para esta mesma abóbada escura, com suas

vigas de madeira podre e aranhas tecendo redes entre as fissuras. O teto ri de

mim. Ri porque, mesmo que eu feche os olhos com força, mesmo que eu arranque as

próprias pálpebras, ainda assim verei o mesmo cenário quando voltar. E eu

sempre volto. Sempre. É como se o tempo tivesse parado neste lugar,

condenando-me a reviver a mesma cena, o mesmo desespero, a mesma impotência.

 

A

runa no meu peito arde como um sol minúsculo, fundido às minhas costelas.

Baraki a chamava de Eternium — um presente, segundo ele. Um presente para

mantê-la "intacta". Intacta. A palavra soa como um insulto, ecoando em minha

mente como uma maldição. Intacta é a flor que ninguém colhe, destinada a

murchar sozinha; intacta é a taça que não se quebra, mas que nunca conhece o

sabor do vinho. Eu não sou intacta. Sou um vaso rachado, remendado à força,

transbordando de coisas que não quero carregar. Sou um reflexo quebrado de quem

um dia fui, uma sombra que luta para se lembrar da luz.

 

Tento

mexer os dedos. Não respondem. Meu corpo é uma estátua de carne, obediente

apenas à vontade dele. Baraki gosta de me ver lutar contra mim mesma. Gosta de

sussurrar em meu ouvido, com a voz suave de quem conta segredos íntimos: "Por

que resistir, pequena elfa? Seu sangue real já secou. Você é minha. Até seus

suspiros me pertencem." Suas palavras são como veneno, infiltrando-se em cada

fibra do meu ser, corroendo o pouco que resta de mim.

 

Hoje,

porém, ele não está aqui. Os serviçais o chamaram para outra guerra, outra

carnificina. Deixaram-me deitada neste colchão imundo, onde posso, por algumas

horas, ter a ilusão de controle. Ilusão. Porque, mesmo se eu conseguisse

levantar, para onde iria? As portas estão fechadas. As janelas, gradeadas. E há

sempre olhos. Sempre. Olhos que vigiam, que julgam, que consomem. Olhos que

nunca piscam, nunca descansam. Até as sombras parecem conspirar contra mim,

sussurrando segredos que não consigo decifrar.

 

Tento

chorar. Nada sai. Até minhas lágrimas se cansaram de mim. Secaram como um rio

sob o sol implacável, deixando apenas um deserto árido onde antes havia emoção.

O que resta de mim? Um eco, uma sombra, um fragmento de algo que um dia foi

vivo. E, ainda assim, no fundo deste abismo, uma pequena chama teima em não se

apagar. Uma chama que não sei se é esperança ou apenas teimosia. Mas ela está

lá. E, enquanto estiver, eu ainda sou algo mais que um brinquedo quebrado nas

mãos de Baraki.

 

Antes

de ser cinza, fui asa.

Lembro-me do jardim. Lembro-me das borboletas. Elas vinham em bandos, coloridas

como vitrais sob a luz do sol, pousando em meus dedos enquanto eu ria. Minha

mãe dizia serem almas de ancestrais nos visitando. "Elas escolhem você,

Kalmia", sussurrava, enchendo meus cabelos de flores de lírio. "Você é

especial."

Especial.

A palavra queimava meu peito de orgulho, como se carregasse um fogo que ninguém

mais podia sentir. Eu queria ser como São-Laceron, o herói das histórias que

meu pai contava nas noites de lua cheia. O sábio que enfrentou Rutreus, o

dragão que devorava estrelas. Laceron não tinha espada nem exército — apenas

inteligência. Reuniu as quatro raças, forjou a lança que dividiu o monstro em

quatro pedaços e selou-o nos confins do mundo. Morreu ao final, é claro. Heróis

sempre morrem. Mas sua lança ainda brilha na lua marcada, diziam.

Naquela

época, acreditava que heróis existiam. Acreditava que, se eu encontrasse a

lança de Laceron, poderia proteger todos que amava. Imaginava-me erguendo-a

contra as trevas, salvando aldeias inteiras com um único gesto. Sonhava com o

dia em que meu nome seria cantado em versos, como o dele.

Como

era ingênua.

 

O

jardim não existe mais. As borboletas se foram, e as flores de lírio murcharam

sob o peso da cinza que cai do céu. Minha mãe não sussurra mais segredos doces

em meus ouvidos, e meu pai não conta histórias de heróis. A lança de Laceron?

Nunca a encontrei. Ou talvez eu tenha, e ela não fosse nada além de um pedaço

de metal enferrujado, incapaz de salvar qualquer um.

Agora,

sou apenas cinza. Cinza que voa ao vento, sem direção, sem propósito. As asas

que um dia carreguei foram arrancadas, e o fogo que queimava em meu peito se

apagou. Resta apenas o eco de uma menina que acreditava em borboletas e heróis.

Uma menina que não existe mais.

 

A

princesa Lirathiel era minha melhor amiga. Íamos juntas caçar cogumelos

brilhantes na floresta, rindo enquanto nossas mãos sujas de terra colhiam os

pequenos tesouros luminosos. Às vezes, pegávamos gravetos e duelávamos como

guerreiras lendárias, imaginando sermos heroínas de histórias épicas. Até que

um dia, os gravetos viraram facas.

Bandidos

nos arrastaram para uma carroça, amarrando nossas bocas com trapos sujos.

Lirathiel chorava baixinho, seus soluços abafados ecoando como um lamento. Eu

tentava cantarolar nossa música favorita para acalmá-la: "Borboleta de cristal,

leva-me além do luar. . . ", Mas os homens riam, e suas gargalhadas cortavam o

ar como lâminas. Dois dias sem água, três sem comida. Quando os soldados

finalmente nos encontraram, já éramos apenas cascas vazias, sombras do que um

dia fomos.

O

rei não perdoou. "Sua negligência custou o risco à herdeira do trono", disse ao

meu pai, sua voz fria como o inverno. Não importou que tivéssemos sobrevivido.

Não importou que Lirathiel suplicasse por clemência, seus olhos cheios de

lágrimas implorando por piedade. Fomos exilados para a Cidade das Lágrimas

Secas, um lugar onde elfos "manchados" eram esquecidos, abandonados à própria

sorte.

Meus

pais, porém, não se curvaram. Transformaram casebres em lares, organizaram

escolas, ensinaram a colher alimento do solo árido. "Nossa honra não está no

sangue, Kalmia", meu pai dizia, sua voz firme como a raiz de uma árvore antiga.

"Está no que fazemos com ele." Eu odiava aquela cidade. Odiava o sol quente que

queimava minha pele, a poeira que cobria tudo como um véu sujo, o cheiro de

desespero que pairava no ar. Mas eles. . . Eles a transformaram em lar.

Até

que Dagura estendeu suas garras.

 

Baraki

não veio com exército. Veio com um sorriso.

Lembro-me

de seu cabelo loiro brilhando sob o sol, tão belo quanto venenoso, como se cada

fio fosse um raio de luz envenenada. Seus olhos violetas cintilavam de prazer

enquanto erguia as mãos, como um maestro preparando-se para reger uma sinfonia

de destruição. Um único gesto, e o céu rachou. Chamas azuis, frias e vorazes,

engoliram casas, crianças, esperanças. O ar ficou pesado com o cheiro de cinzas

e desespero, e o mundo que eu conhecia desmoronou em instantes.

Meu

pai gritou para eu correr. Corri — mas não para longe. Corri direto para os

braços de Killer, o servo de olhos vazios, cujo olhar era tão morto quanto o

destino que me aguardava. Ele me arrastou até a praça central, onde os corpos

de meus pais jaziam entrelaçados, como se mesmo na morte tentassem proteger um

ao outro.

Baraki

ajoelhou-se ao meu lado, segurando meu queixo com força, seus dedos gelados

como garras. "Olhe bem, princesinha. Veja o que resta da sua nobreza." Sua voz

era mel, veneno e faca, cada palavra um corte profundo naquilo que eu ainda

tentava chamar de alma. "Você deveria agradecer. Agora, não precisará mais

carregar o fardo de um nome."

Ele

me deu a runa naquela noite. Não houve luta. Apenas dor. Uma dor que rasgou

algo muito mais profundo que a carne, algo que nem palavras podem descrever.

Quando acordei, meu espírito já estava em pedaços — e Baraki, rindo, dizia que

agora éramos "eternos".

 

Baraki,

então, durante todas as noites, regressou. Senti seus passos no corredor,

lentos, calculistas, como se cada pisada fosse uma marca de sua dominação. A

porta rangia, anunciando sua presença, e seus olhos violetas me encontravam

sempre, brilhando com uma mistura de curiosidade e crueldade. E eu…

Eu

sorria.

Sorria.

Era o único pedaço de mim que ainda me pertencia, a única coisa que Baraki não

podia arrancar, não importava quantas vezes ele tentasse. Sorria porque, mesmo

que ele quebrasse meu corpo, dilacerasse meu coração e reduzisse minha alma a

cinzas, ainda havia algo dentro de mim que ele não podia tocar. Um fragmento de

luz, uma memória distante, um eco de quem eu havia sido. Lembrava-me das

borboletas. Sim, as borboletas. Elas vinham em bandos, coloridas como vitrais

sob o sol da manhã, pousando em meus dedos enquanto eu ria, inocente e livre,

no jardim que um dia fora meu refúgio. Lembrava-me do calor do sol acariciando

minha pele, do cheiro das flores de lírio que minha mãe entrelaçava em meus

cabelos, do som de sua voz suave sussurrando: "Você é especial, Kalmia."

 

E

eu acreditava. Acreditava que era especial, que o mundo era um lugar de

maravilhas, que os heróis das histórias que meu pai contava nas noites de lua

cheia eram reais. Laceron, o sábio que enfrentara Rutreus, o dragão devorador

de estrelas, era meu ideal. Eu sonhava em ser como ele, em erguer a lança

lendária e proteger todos que amava. Mas o jardim não existia mais. As

borboletas haviam se ido, e as flores de lírio murchavam sob o peso da cinza

que caía do céu. Minha mãe não sussurrava mais segredos doces em meus ouvidos,

e meu pai não contava histórias de heróis. A lança de Laceron? Nunca a

encontrei. Ou talvez eu tivesse encontrado, e ela não fosse nada além de um

pedaço de metal enferrujado, incapaz de salvar qualquer um.

 

Agora,

eu era apenas cinza. Cinza que voava ao vento, sem direção, sem propósito. As

asas que um dia carregara haviam sido arrancadas, e o fogo que queimava em meu

peito se apagara. Restava apenas o eco de uma menina que acreditara em

borboletas e heróis. Uma menina que não existia mais.

 

Mas,

no fundo do abismo, uma pequena chama teimava em não se apagar. Uma chama que

eu não sabia se era esperança ou apenas teimosia. Talvez fosse as duas coisas.

Talvez fosse a lembrança das borboletas, daqueles dias em que a vida parecia

infinita e cheia de possibilidades. Borboletas, por mais frágeis que fossem,

voavam. Elas não se importavam com as tempestades, com os ventos que tentavam

derrubá-las. Elas simplesmente batiam as asas, delicadas e persistentes,

seguindo em frente. Eu não era mais aquela menina do jardim, mas ainda

carregava suas memórias como um tesouro escondido. Enquanto eu sorria, era como

se minhas asas invisíveis se preparassem para um voo que Baraki nunca poderia

impedir.

 

Ele

podia me prender, machucar, humilhar. Podia tentar apagar cada traço de quem eu

havia sido. Mas não podia tirar de mim a lembrança das borboletas. E, enquanto

eu me lembrasse delas, ainda haveria esperança.

 

Tudo

continuou por anos. Muito tempo.

 

Dias

viraram semanas, semanas viraram meses, e meses se transformaram em anos. O

ciclo era sempre o mesmo: Baraki vinha, eu sorria, ele partia. A runa no meu

peito ardia, meu corpo se regenerava, e a dor se tornava uma companheira

constante, como uma sombra que nunca me abandonava. A runa Eternium, um

presente envenenado, mantinha-me intacta, segundo ele. Intacta. A palavra soava

como um insulto, ecoando em minha mente como uma maldição. Intacta era a flor

que ninguém colhia, destinada a murchar sozinha; intacta era a taça que não se

quebrava, mas que nunca conhecia o sabor do vinho. Eu não estava intacta. Era

um vaso rachado, remendado à força, transbordando de coisas que não queria

carregar.

 

Até

que um dia, acabei pensando comigo:

"Por

que ainda resisto?"

 

A

pergunta ecoou em minha mente como um sino quebrado, repetindo-se sem parar.

Por que ainda sorria? Por que ainda me levantava? Por que ainda carregava essa

esperança, essa lembrança das borboletas, se tudo o que conhecia era dor e

escuridão?

 

Então

pensei profundamente:

"Deus,

se existes, por favor, deixe-me virar pó."

 

Implorava

todas as noites. Mas Deus, se existia, era surdo. Ou talvez eu já estivesse no

inferno, e Ele simplesmente não se importasse. Talvez eu fosse apenas mais um

grão de areia em um deserto infinito, insignificante demais para ser notada.

Talvez minhas preces fossem somente palavras jogadas ao vento, perdidas em um

vácuo silencioso.

 

Porém,

naquele dia, algo aconteceu.

 

Um

tremor violento sacudiu o chão, seguido de uma explosão que parecia ter rasgado

o próprio tecido do mundo. A mansão de Baraki, localizada a mais de vinte

quilômetros da capital, não foi poupada. Mesmo a essa distância, a força da

detonação foi avassaladora. Uma onda de calor intenso varreu tudo em seu

caminho, como se o sol tivesse explodido em fúria. As paredes de pedra

desmoronaram, os vitrais se estilhaçaram, e o teto desabou sobre mim. Meu corpo

foi vaporizado ao nível atômico, desintegrado em menos de um piscar de olhos.

 

Mas

a runa Eternium não me permitiu descansar.

 

Em

menos de vinte segundos, meu corpo foi restaurado completamente, como se o

tempo tivesse retrocedido para me trazer de volta. Ossos, carne, pele — tudo se

reconstruiu com uma velocidade absurda, como se a morte fosse somente um

contratempo insignificante. Levantei-me lentamente, olhando ao redor. A mansão,

outrora imponente, agora era somente um amontoado de escombros. Mas o que mais

me chamou a atenção foi o horizonte.

 

Ao

longe, onde deveria estar a capital, uma coluna de fumaça e poeira subia ao

céu, formando um cogumelo gigantesco que escurecia o sol. A explosão havia sido

tão poderosa que, mesmo a mais de vinte quilômetros de distância, suas

consequências eram visíveis. Uma cratera colossal devorara a cidade, e os

rastros da destruição se estendiam até onde minha vista alcançava. As nuvens

haviam sido lançadas para longe, deixando um céu vazio e surreal.

 

E

então, vi.

 

No

céu, acima da cratera distante, pairando como uma estrela caída, havia uma

figura. Um semi-humano de cabelo vermelho como sangue, brilhando sob a luz do

sol como uma chama viva. Seus olhos amarelo-dourados lembravam mel, quentes e

penetrantes, mas sua pele era pálida, quase translúcida, e seu corpo parecia

frágil, pequeno, como se fosse feito de vidro.

 

Meu

coração, que há tanto tempo parecia morto, voltou a bater. Eu não conseguia

desviar o olhar. Aquela figura, tão estranha e, ao mesmo tempo, tão bela,

emanava uma aura que eu não conseguia explicar. Era como se o próprio conceito

de divindade estivesse diante de mim.

 

Naquele

momento, eu acreditei.

 

Se

Deus existisse, com toda certeza, aquele era o meu Deus. E, pela primeira vez

em anos, senti algo além de dor e desespero. Senti admiração.