Entre o Sacrifício e a Esperança

O ar na caverna subterrânea era denso, quase sólido, carregado de um silêncio opressivo que parecia engolir qualquer som, exceto pelo arrastar lento e doloroso dos pés de Aiden no chão de gelo negro. Cada passo dele ecoava como um lamento abafado, misturado ao uivo melancólico que reverberava das paredes, um som que parecia vivo, como se a caverna tivesse pulmões próprios, respirando uma tristeza antiga e faminta. O gelo sob seus pés não era apenas frio — era uma força voraz, sugando o calor de seus corpos com uma avidez sobrenatural, como se tentasse roubar a própria essência de suas almas. As paredes, esculpidas em formas retorcidas e sombrias, dançavam na penumbra, ora parecendo rochas naturais, ora vultos de criaturas petrificadas, congeladas em um grito eterno. O ar cheirava a metal enferrujado, como sangue seco há séculos, misturado ao odor acre de mofo que se agarrava às narinas como uma memória insistente.

Lyra arrastava Aiden com uma determinação que beirava o desespero, os músculos das pernas ardendo, os braços tremendo sob o peso dele. Sua mente era um redemoinho caótico, girando em torno das palavras sussurradas pela criatura sombria que os confrontara antes — promessas de poder, ameaças de aniquilação. O símbolo em seu antebraço pulsava com uma luz azul fraca, quase imperceptível, mas ela sentia cada batida como uma corrente elétrica, um lembrete do poder que crescia dentro dela, uma tempestade contida que ameaçava romper todas as barreiras. Desistir era uma tentação constante, um sussurro doce e traiçoeiro que acariciava sua mente exausta, prometendo paz em troca de rendição. Ela sentia o Devorador da Luz, uma presença sombria e faminta que a puxava para o abismo, suas garras invisíveis cravadas em sua alma. Cada vez que evocava o frio que brotava de suas mãos, era como se entregasse um fragmento de si mesma, e o medo de se perder completamente a sufocava, apertando seu peito como uma mão gelada.

Mas então, seus olhos captaram uma fenda na parede da caverna, uma rachadura irregular onde o gelo parecia mais fino, quase translúcido. Uma luz fraca, pálida como o amanhecer, infiltrava-se por ali, trazendo consigo um sopro de calor que mal se podia chamar assim. Para Lyra, era um oásis em meio ao deserto gelado, um fiapo de esperança que reacendia sua determinação. Para Aiden, porém, aquele “calor” era um insulto — um frio cortante que atravessava suas roupas esfarrapadas e fazia seus dentes baterem em um ritmo descompassado. Com cuidado, ela o deitou no chão, os movimentos lentos e precisos, como se temesse que ele se quebrasse ao toque. O corpo dele tremia violentamente, a respiração ofegante escapando em nuvens brancas que pairavam por um instante antes de se desfazerem no ar gélido. O coto de seu braço direito, selado pelo gelo que ela conjurara para estancar o sangramento, emitia um brilho azul suave, uma luz que parecia viva, pulsando em sincronia com o coração fraco dele. O rosto de Aiden estava pálido como a morte, os lábios tingidos de um azul doentio, e seus olhos, mesmo entreabertos, carregavam uma exaustão que partia o coração de Lyra.

Ela começou a andar de um lado para o outro, os pés deslizando no gelo liso com um som áspero que ecoava na caverna. Roía as unhas com uma ferocidade quase selvagem, as pontas dos dedos marcadas por linhas vermelhas de tanto pressionar. Seus cabelos negros caíam em cascata sobre os ombros, embaraçados e úmidos de suor, e ela os puxava nervosamente, enroscando-os entre os dedos como se pudesse arrancar uma solução do próprio couro cabeludo. Sua mente era um turbilhão de pensamentos fragmentados — o peso da escolha que recusara, a culpa de ver Aiden naquele estado por causa dela, o terror do que ainda poderia vir. Parava por um instante, lançava um olhar angustiado para ele, depois retomava o movimento, o vaivém quase obsessivo, como se cada passo pudesse afugentar o medo que a consumia.

Foi então que Aiden, com um esforço que parecia sugar o último resquício de sua força, estendeu a mão trêmula e agarrou a dela enquanto ela passava. Seus dedos estavam gelados como o próprio gelo da caverna, mas o toque era firme, uma âncora que a arrancou do caos interno. Lyra parou de repente, o corpo tenso, os olhos arregalados de surpresa enquanto encontrava os dele. Os olhos verdes de Aiden, mesmo turvados pela dor e pelo cansaço, brilhavam com uma determinação obstinada, uma chama que se recusava a se apagar apesar de tudo. Era um olhar que ela conhecia bem, um que a fazia acreditar, mesmo nos momentos mais sombrios, que ainda havia algo pelo que lutar.

“Lyra,” ele murmurou, a voz tão fraca que mal atravessava o silêncio opressivo, mas carregada de uma clareza que cortava como uma lâmina. “Eu não sei o que tá passando por essa sua cabeça dura, mas tudo isso... é maior do que qualquer coisa que eu já vi. Você tá carregando um peso que ninguém deveria carregar sozinho. Mas escuta aqui: você não tá sozinha. Eu vou ficar com você, não importa o que venha, não importa o que essa caverna ou qualquer criatura jogue na gente. Esse poder que você tem, esse frio que te assusta tanto... ele é seu, Lyra. Usa ele do jeito que você quiser, do jeito que você acha certo.” Ele parou, o peito subindo e descendo com dificuldade, cada palavra um esforço monumental que fazia suas feições se contorcerem em dor. “Eu também tenho um poder, sabe? A Ceifadora das Sombras. Eu odeio ela. Cada vez que a uso, sinto o peso do que perdi — meu pai morto na minha frente, minha irmã levada embora enquanto eu ficava parado, sem poder fazer nada. Deixei minha mãe chorando numa igreja pra correr atrás da Elara, e olha onde eu cheguei: sem um braço e quase morto. Mas esse poder me trouxe até aqui, e o seu vai te levar mais longe ainda. Então, abraça ele, Lyra. E se você tropeçar, se achar que vai cair nesse abismo que tá te puxando, eu te seguro. Mesmo que seja só com metade de mim.”

Ele tentou sorrir, uma tentativa fraca de piada sobre o braço perdido, mas o esforço o fez tossir, uma tosse seca e rouca que ressoou pelas paredes da caverna como um trovão abafado. Seu corpo estremeceu com o som, e Lyra sentiu o coração apertar, um nó subindo pela garganta enquanto lágrimas quentes queimavam seus olhos. Ela piscou rápido, engolindo o choro, e se abaixou ao lado dele, as mãos hesitantes pairando sobre o rosto pálido dele antes de afastarem, com uma delicadeza inesperada, os fios de cabelo castanho colados em sua testa pelo suor. Então, num impulso que a pegou desprevenida, inclinou-se e pressionou os lábios contra a testa dele, um beijo suave e demorado que carregava mais do que ela sabia expressar — gratidão, medo, uma promessa silenciosa.

“Muito obrigada,” ela sussurrou, a voz embargada, quase inaudível, como se as palavras fossem frágeis demais para serem ditas em voz alta. Era a primeira vez que ela se permitia tal vulnerabilidade, que deixava a armadura de força e sarcasmo desmoronar completamente, e Aiden, mesmo naquele estado, sentiu o peso daquele instante. Seus olhos se suavizaram, um brilho de emoção atravessando a névoa da dor, e por um momento, o silêncio entre eles foi mais eloquente que qualquer palavra.

Lyra se sentou ao lado dele, as pernas cruzadas sobre o gelo, fechando os olhos e respirando fundo, o ar gelado enchendo seus pulmões com uma sensação cortante. Ela precisava entender aquele poder, precisava transformá-lo de uma maldição em algo que pudesse controlar, algo que fosse parte dela. Concentrou-se na pulsação fria que reverberava em seu peito, no símbolo que brilhava em seu antebraço como uma estrela em miniatura, e mergulhou na tempestade que rugia dentro de si. O ar ao redor começou a vibrar, uma energia gélida se acumulando como nuvens negras antes de um dilúvio. Lentamente, uma onda de gelo se formou, não como uma força destrutiva, mas como uma extensão de sua vontade, obediente ao seu comando. O gelo subiu em espirais ao redor deles, traçando padrões intricados que brilhavam com uma luz azul intensa, como vitrais iluminados por um sol invisível, e a caverna parecia responder, as paredes pulsando em harmonia com o poder que ela liberava.

O chão tremia sob seus pés, as paredes estremeciam com um gemido grave, e Lyra abriu os olhos, o azul de suas íris refletindo o brilho do gelo que dançava ao seu redor como uma sinfonia viva. Ela ergueu as mãos, os dedos abertos, e o poder explodiu em um crescendo que fez o ar crepitar. Espinhos de gelo brotaram do chão, altos e afiados como sentinelas de um exército esquecido, e uma rajada de vento gelado varreu a caverna, carregada de flocos de neve que cortavam o ar como lâminas de cristal. Ela não lutava mais contra o poder — ela o abraçava, moldando-o com uma determinação feroz que queimava em seu âmago. De repente, um estrondo ensurdecedor ecoou, e a parede de gelo à sua frente desmoronou em uma avalanche de fragmentos brilhantes, cada pedaço refletindo a luz azul como estrelas caídas, revelando um caminho ascendente que levava à superfície.

Lyra se levantou, o coração disparado, a respiração acelerada enquanto encarava o que havia feito, quase incapaz de acreditar na magnitude de seu próprio poder. Ela correu até Aiden, passando o braço dele sobre seu ombro e arrastando-o com um esforço que fazia seus músculos gritarem em protesto. Cada passo pelo caminho recém-aberto era uma batalha, o peso dele testando seus limites físicos e mentais, mas ela se recusava a desistir, movida por uma esperança visceral de escapar daquele pesadelo gelado.

Quando finalmente emergiram, o ar fresco da noite os envolveu como um abraço cortante, trazendo o cheiro puro de neve e a promessa de liberdade. A luz da lua banhava a paisagem, revelando uma planície congelada pontuada por pilares de gelo retorcidos, suas formas lembrando mãos esqueléticas que se erguiam para o céu. Mas a sensação de alívio durou apenas um instante. Diante deles, uma horda de esqueletos de gelo se erguia, os ossos translúcidos brilhando sob o luar como joias macabras, os olhos vazios reluzindo com uma luz vermelha maligna. Eram figuras altas e esguias, armadas com lanças e espadas forjadas de gelo puro, movendo-se em um silêncio mortal que tornava sua presença ainda mais aterradora.

O coração de Lyra disparou, o medo subindo como bile em sua garganta, mas ela não tinha tempo para hesitar. Proteger Aiden era sua única prioridade, custasse o que custasse. Ela o deixou gentilmente no chão, apoiando-o contra um pilar de gelo, e se posicionou à frente dele, as mãos abertas, o frio pulsando em suas veias como um rio selvagem. Era a primeira vez que enfrentava uma luta de verdade, e o peso daquela responsabilidade a atingiu como um golpe físico — mas ela não recuou.

O primeiro esqueleto avançou, a lança de gelo cortando o ar em direção ao seu peito. Lyra reagiu por puro instinto, erguendo as mãos, e um espinho de gelo disparou de suas palmas, rápido e preciso, perfurando o torso do inimigo. O esqueleto se despedaçou com um estalo seco, os fragmentos caindo no chão como uma chuva de vidro quebrado. Outro veio pela esquerda, a espada erguida em um arco mortal, e ela girou o corpo, conjurando uma rajada de vento gelado que lançou a criatura contra a parede mais próxima, explodindo-a em uma nuvem de ossos estilhaçados.

Eram muitos, uma onda incessante que a cercava com movimentos rápidos e implacáveis. Lyra não tinha técnica refinada, mas compensava com uma vontade de ferro. Correu em direção a um grupo, as mãos estendidas, e uma barreira de gelo se ergueu do chão como uma muralha, bloqueando um golpe que teria sido fatal. Os esqueletos golpeavam o escudo com fúria, rachaduras se espalhando como teias, e ela contra-atacou, lançando espinhos de gelo em uma sequência desajeitada, mas devastadora. Alguns caíam em pedaços, outros se recompunham, os ossos se unindo magicamente em uma dança grotesca, e Lyra sentia o cansaço se infiltrar em seus músculos, cada evocação de poder arrancando um pedaço de sua energia.

De repente, um esqueleto maior emergiu da horda, uma figura imponente com uma coroa de gelo pontiaguda cravada em sua cabeça esquelética, uma espada maciça empunhada por mãos ossudas que pareciam esculpidas em mármore congelado. Seus olhos brilhavam com uma inteligência cruel, uma luz vermelha que perfurava a escuridão, e Lyra soube imediatamente que aquele era o líder. Ele avançou com uma graça letal, a espada cortando o ar em um arco amplo que assobiou como o vento da morte. Ela se esquivou por um triz, rolando no gelo escorregadio, o coração martelando nos ouvidos, o suor escorrendo pelo rosto apesar do frio cortante. Levantou-se com um grito preso na garganta, os olhos ardendo com uma mistura de medo e fúria.

Com um rugido primal, ela canalizou cada gota de força que lhe restava. Saltou no ar, o corpo girando com uma graça instintiva que ela nem sabia possuir, e conjurou uma lança de gelo, longa e afiada como uma agulha de cristal. Cravou-a no peito do líder com um impacto que fez o chão tremer, o som do gelo se partindo ecoando pela planície como um trovão. O esqueleto soltou um rugido ensurdecedor, um som que parecia rasgar o tecido da realidade, mas Lyra não parou. Ergueu as mãos, os dedos trêmulos, e a lança explodiu em uma onda de energia gelada, uma tempestade de fragmentos brilhantes que desintegrou o líder e os esqueletos ao redor, transformando-os em uma chuva de pó cintilante que refletia o luar como diamantes despedaçados.

Exausta, Lyra caiu de joelhos, o peito arfando, o corpo tremendo como se fosse desmoronar. A batalha estava vencida, mas o custo era evidente em cada músculo dolorido, em cada respiração que queimava seus pulmões. Ela virou o rosto para Aiden, ainda protegido pelo pilar de gelo, e um alívio frágil a envolveu, um instante de paz em meio ao caos que quase a fez sorrir.

Mas o momento foi interrompido. O ar começou a vibrar com uma intensidade que fez seus dentes rangerem, e um portal se abriu diante deles, uma fenda negra na realidade que sugava tudo ao seu redor com uma força irresistível. Lyra tentou se segurar, cravando as unhas no gelo até que sangrassem, mas era inútil. O portal os arrastava, a escuridão os engolindo como uma fera faminta. Ela não sabia como o havia aberto — talvez fosse o poder dentro dela se manifestando sem controle, talvez o Devorador da Luz finalmente a estivesse reivindicando. O pânico a tomou como uma onda, mas ela agarrou Aiden com força, os dedos cravados em sua roupa, recusando-se a soltá-lo mesmo enquanto o vazio os consumia.

Dentro do portal, a sensação era de cair eternamente, o ar girando ao redor deles em um redemoinho de sombras e gelo. Aiden, semi-consciente, abriu os olhos com dificuldade, a visão embaçada pela dor e pelo cansaço que o corroíam. Outro portal se abriu acima deles, uma janela para um pesadelo ainda maior, e dele caiu Elara, os cabelos loiros esvoaçando como fios de ouro ao vento, o rosto contorcido em um grito silencioso de terror puro. Uma criatura grotesca a seguia, uma abominação feita de névoa de gelo, suas garras longas e retorcidas estendendo-se para agarrá-la, os olhos brilhando com uma malícia que parecia antiga como o próprio tempo.

Aiden sentiu o coração parar por um instante, o nome dela preso em sua garganta enquanto a via despencar em direção à morte certa. A imagem de Elara — sua irmã, sua razão de lutar, a última ligação com a família que perdera — reacendeu algo dentro dele, uma chama que queimava através da dor e da exaustão. Com um esforço que parecia arrancar sua alma do corpo, ele canalizou o que restava de suas forças, ignorando o grito de agonia que subia por seu braço perdido. Uma aura negra começou a emanar dele, densa e sufocante, envolvendo a foice que jazia ao seu lado, esquecida no chão. Ele a ergueu com a mão trêmula, o peso da arma quase o derrubando, e com um grito rouco que ecoou pelo vazio, lançou-a em direção à criatura.

A foice girou no ar, a aura negra se intensificando como uma tempestade viva, e dela emergiu uma figura espectral que fez o tempo parecer congelar. Aiden apertou os olhos, o coração acelerado, e então o reconheceu — Markus, seu pai, empunhando a foice com uma determinação feroz que ele não via desde os dias felizes na fazenda, antes de tudo desmoronar. Os olhos de Markus brilhavam com uma luz quente, um eco do homem que o ensinara a segurar um machado, a cuidar da terra, a nunca desistir. Ele correu em direção à criatura, a foice cortando o ar com um som que rasgava o silêncio, e desferiu um golpe poderoso que fez o espaço inteiro tremer. A lâmina atravessou a névoa de gelo com precisão mortal, arrancando um grito de agonia da criatura, que recuou, ferida, as garras se retraindo em derrota. O espectro de Markus virou-se, pegando Elara nos braços com uma ternura que contrastava com sua força, protegendo-a enquanto caíam juntos pelo portal, os cabelos loiros dela esvoaçando como uma bandeira de esperança.

Aiden sentiu as lágrimas escorrerem por seu rosto, quentes contra a pele gelada, uma mistura de alívio, saudade e dor que o engoliu por inteiro. A visão de seu pai, mesmo que por um instante, era um bálsamo e uma ferida ao mesmo tempo, um lembrete do que perdera e do que ainda podia salvar. Mas seu corpo não aguentou mais — a escuridão o reclamou, sua consciência se dissipando enquanto o portal os sugava completamente