O Peso do Gelo

O ar na caverna subterrânea era um punhal invisível, cortando a pele de Aiden e Lyra a cada respiração. O gelo negro do chão refletia seus rostos como um espelho distorcido, capturando o cansaço em seus olhos e a tensão em suas mandíbulas. Um uivo melancólico ecoava ao longe, um lamento que parecia surgir das próprias paredes, como se o domínio do Devorador da Luz estivesse vivo, consciente, e os observasse com olhos famintos. As figuras congeladas ao longo das paredes — humanas, presas em poses de sofrimento eterno — emitiam um brilho fraco, um azul doentio que pulsava em sincronia com o bater irregular do coração de Aiden. Seus olhos ocos pareciam segui-los, rastreando cada passo hesitante com um silêncio mais ameaçador do que qualquer grito. O gelo sob seus pés não era apenas frio; era como se sugasse o calor de seus corpos, uma força quase viva que tentava drenar sua vitalidade. As paredes da caverna pareciam se mover na penumbra, formas retorcidas que poderiam ser rochas ou algo mais sinistro. O ar estava impregnado de um cheiro metálico, como sangue congelado, misturado ao odor úmido de mofo antigo.

Aiden tremia violentamente, o frio infiltrando-se em seus ossos como uma praga. Ele segurava o lado esquerdo, onde a costela fraturada gritava a cada movimento, a dor uma companheira constante que o fazia cerrar os dentes. O braço esquerdo, ainda inchado pela infecção, pendia inútil ao seu lado, um peso morto que o lembrava de sua fragilidade. Mesmo assim, ele forçava os pés a seguirem em frente, cada passo um ato de teimosia contra o colapso iminente de seu corpo. Lyra, por outro lado, movia-se com uma determinação quase sobrenatural, imune ao frio que parecia querer devorá-lo. Seus cabelos negros esvoaçavam levemente, e seus olhos azuis cortavam a escuridão, guiados por um instinto que ela ainda não compreendia.

— Tá ficando mais frio — Aiden murmurou, a voz rouca, os dentes batendo enquanto tentava manter o ritmo dela. Ele tropeçou, o pé escorregando no gelo liso, e Lyra o segurou pelo cotovelo com um movimento rápido, firme.

— Preste atenção onde pisa, seu desastrado — retrucou ela, seca, mas com uma sombra de preocupação nos olhos. — Se você desabar agora, não vou te carregar.

Aiden conseguiu um sorriso fraco, o hálito formando nuvens brancas no ar gelado. — Você? Me carregar? Ia me arrastar como um saco de batatas e ainda reclamar o caminho todo.

Lyra bufou, dando um soco leve no peito dele. — Se continuar falando besteira, vou te deixar aqui mesmo. — Um brilho rápido cruzou seu rosto, mas ela logo virou a cabeça, retomando o passo firme. — E pare de sorrir como um bobo. Isso não é hora pra piadas.

Aiden riu baixinho, mesmo com a dor latejando em seu corpo. — Desculpa, Lyra. É que... você fica engraçada quando tá brava.

Ela ergueu a mão como se fosse acertar o ombro dele, mas parou no meio do gesto, os olhos suavizando por um instante. — Só anda logo, antes que eu realmente te deixe pra trás.

Enquanto avançavam, o silêncio entre eles era cortado apenas pelo som dos passos ecoando no gelo. O gelo negro sob seus pés parecia pulsar, um ritmo lento e profundo que ressoava nos ossos. Lyra sentiu algo se agitar dentro dela, uma pulsação fria que ecoava no peito como um tambor distante. Ela parou abruptamente, a mão voando para o coração, os olhos arregalados. — Você sentiu isso? — perguntou, a voz baixa, quase um sussurro.

Aiden, ofegante, se apoiou na parede gelada, ignorando a queimação do frio contra a palma. — Sentir o quê? Além do fato de que meus dedos tão virando picolé?

Antes que Lyra pudesse responder, um estalo ensurdecedor cortou o silêncio. O gelo na parede à esquerda rachou, estilhaços voando como cacos de vidro. Uma das figuras congeladas — uma mulher com cabelos negros longos, tão parecidos com os de Lyra que poderia ser sua sombra — se libertou com um gemido gutural. Sua pele era pálida como a morte, e seus olhos azuis brilhavam com uma luz sobrenatural, perfurando Lyra como lâminas. Ela deu um passo à frente, o gelo estalando sob seus pés descalços, e apontou um dedo trêmulo para Lyra.

— Você é a chave — disse a mulher, a voz rouca e fragmentada, como se as palavras fossem arrancadas de um túmulo. — O sangue do sacrifício corre em você. O Devorador te escolheu.

Lyra recuou, o coração disparado, o ar preso nos pulmões. — Quem é você? — perguntou, a voz tremendo, mas firme o suficiente para mascarar o pânico que subia pela garganta. — O que você quer dizer?

A mulher não respondeu. Seus olhos se arregalaram, e com um grito silencioso, seu corpo desmoronou em uma pilha de pó de gelo, que se espalhou pelo chão como cinzas. O silêncio que se seguiu era sufocante, e Lyra ficou paralisada, os olhos fixos no montinho brilhante onde a mulher estivera.

Aiden se aproximou, ignorando a dor que atravessava seu corpo. — Lyra? Tá tudo bem? — Ele tocou o ombro dela, mas ela se encolheu, como se o contato a queimasse.

— Não tá tudo bem — sussurrou ela, ainda encarando o pó. Então, sem aviso, sua visão escureceu, e o mundo ao seu redor dissolveu-se em uma onda de memórias que não eram inteiramente suas.

Ela viu uma estrada poeirenta, o sol ardendo no céu. Sua família caminhava à frente — o pai com seu chapéu de palha, a mãe cantando uma melodia suave, os irmãos correndo e rindo. Então, o trovão dos cascos. Robes pretos emergiram das sombras, os cultistas com olhos mortos e lâminas brilhando. O grito da mãe, o sangue do pai manchando a terra, os irmãos caindo um a um. Lyra, impotente, foi arrastada para uma caverna escura, amarrada a uma pedra fria. Um símbolo brilhante — luz e sombra entrelaçadas — foi gravado em sua pele, queimando como fogo. Ela gritou, mas o ritual foi interrompido por um estrondo, e o caos engoliu tudo.

Lyra voltou a si com um suspiro rouco, cambaleando. Aiden a segurou pelos braços, os olhos arregalados de preocupação. — Lyra! Fala comigo! O que aconteceu?

Ela balançou a cabeça, as mãos tremendo enquanto puxava a manga da túnica. Lá, na pele do antebraço, estava o símbolo da visão — luz e sombra, gravado como uma cicatriz que ela nunca notara antes. — Eu... eu vi coisas — disse, a voz falhando. — Minha família. Os cultistas. Eles fizeram algo comigo, Aiden. Esse símbolo... acho que é por isso que a criatura me quer.

Aiden franziu a testa, os olhos caindo para o símbolo. Ele não entendia, mas a angústia no rosto dela era evidente. — Escuta, Lyra — disse, a voz firme apesar do tremor em seu corpo. — Não importa o que eles fizeram. Você ainda é você. Não é uma chave, não é um sacrifício. E a gente vai sair disso juntos.

Lyra o encarou, os olhos marejados, mas ela segurou as lágrimas. — Você não entende. Esse poder... tá me consumindo. E se eu me perder?

— Então eu te puxo de volta — respondeu ele, sério. — Você me salvou lá fora. Agora é minha vez.

Antes que Lyra pudesse retrucar, o chão tremeu, e um rugido gutural ecoou pela caverna. Sombras esqueléticas irromperam do gelo, suas garras ossudas brilhando com uma luz pálida. Seus olhos vazios fixaram-se na dupla, e elas avançaram com uma velocidade assustadora, o ar cortado por seus movimentos.

Aiden empurrou Lyra para trás com um grunhido, agarrando a foice com a mão direita. Apesar da dor lancinante em sua costela e do braço esquerdo pendendo inutilmente, ele se moveu com uma determinação feroz. Girou a foice em um arco amplo, a lâmina cortando o ar com um silvo agudo. O impacto contra o osso da sombra foi brutal, enviando uma onda de choque pelo seu braço direito. A criatura desmoronou em uma pilha de ossos quebrados, o som ecoando na caverna. Ele cambaleou, mas manteve o equilíbrio, os olhos fixos na próxima ameaça.

Outra sombra veio por trás, suas garras mirando seu ombro. Aiden, sentindo o movimento pelo farfalhar do ar, girou sobre os calcanhares, a dor em sua costela explodindo como fogo. Ele brandiu a foice com a mão direita, o cabo escorregadio de suor, e a lâmina decapitou a sombra com um golpe bruto, a cabeça ossuda rolando pelo gelo negro. Cada golpe era um teste de sua resistência, cada defesa uma batalha contra seu próprio corpo que implorava por descanso.

— Lyra, faz alguma coisa! — gritou, enquanto uma terceira sombra saltava, as garras mirando seu coração. Ele ergueu a foice, bloqueando o ataque com o cabo de madeira, o impacto reverberando por seu corpo e arrancando um gemido rouco. A sombra recuou, mas Aiden avançou, a lâmina cortando o ar novamente, partindo o torso da criatura ao meio. Seus movimentos eram desajeitados, a força drenada pela dor e pelo frio, mas a teimosia o mantinha de pé.

Lyra, ainda abalada pela visão, sentiu o pânico tomar conta. Mas ao ver Aiden lutar, brandindo a foice contra as sombras esqueléticas, algo dentro dela estalou. Ela estendeu as mãos, e uma onda de energia gélida explodiu de suas palmas, congelando as sombras restantes em pleno ataque. Seus corpos ossudos ficaram suspensos em gelo cintilante, como esculturas grotescas, e o silêncio voltou à caverna.

Aiden caiu de joelhos, a foice batendo no gelo com um clangor metálico, o cabo ainda firme em sua mão. Ele segurava o peito, o rosto contorcido de dor, mas conseguiu um aceno fraco. — Isso... foi impressionante — murmurou, a voz entrecortada.

Lyra caiu ao lado dele, as mãos tremendo enquanto verificava se ele estava bem. — Você é um teimoso — disse, seca, mas com um tom de alívio. — Quase morreu por minha causa de novo.

— Valeu a pena — respondeu ele, com um sorriso fraco, a foice repousando ao seu lado como uma extensão de sua determinação. Mas então, uma dor oca floresceu no peito de Lyra, um vazio que parecia sugar sua força. Ela segurou o braço, onde o símbolo brilhava suavemente, e soube que cada uso de seu poder a puxava mais para o Devorador.

O ar na caverna ficou ainda mais denso, como se o próprio gelo estivesse prendendo a respiração. Um rangido baixo e sinistro ecoou, e os fragmentos da sombra esquelética que Aiden havia destruído começaram a se mexer, os ossos estalando enquanto se recombinavam no chão. Lyra arregalou os olhos, recuando instintivamente, enquanto a forma ossuda se transformava, ganhando contornos familiares e aterrorizantes. A criatura sombria — aquela que caçava Lyra desde o início — emergiu do esqueleto reconstituído, sua forma de gelo e sombra agora pulsando com uma fúria silenciosa. Seus olhos de brasa brilhavam com uma intensidade cruel, e o ar ao seu redor parecia se dobrar sob o peso de sua presença.

Aiden, ainda de joelhos, cerrou os dentes contra a dor lancinante em sua costela e agarrou a foice com a mão direita, o braço esquerdo inútil pendendo ao seu lado. Ele se levantou com um gemido rouco, posicionando-se entre Lyra e a criatura, a lâmina da foice tremendo em sua mão. — Fica atrás de mim, Lyra — murmurou, a voz rouca, mas firme, os olhos fixos na criatura.

A criatura não tinha paciência para jogos. Com um rosnado baixo que fez o gelo rachar sob seus pés, ela ergueu a mão, e uma espada de gelo cintilante se formou em um piscar de olhos, a lâmina brilhando com uma luz fria e cruel. Antes que Aiden pudesse reagir, ela avançou, a espada cortando o ar em um arco tão rápido que ele nem viu o golpe. A lâmina atravessou seu braço direito com um som seco, decepando-o logo abaixo do ombro. O braço caiu no gelo com um baque surdo, a foice batendo ao lado, e Aiden desabou, um grito angustiado rasgando sua garganta enquanto o sangue jorrava, manchando o gelo negro em uma poça escura.

Lyra gritou, o som cheio de pavor e raiva, mas não teve tempo de se mover. A criatura girou, as garras de gelo agarrando sua garganta com uma força esmagadora. Ela a levantou do chão, os pés de Lyra chutando o ar inutilmente, enquanto a criatura começava a arrastá-la em direção ao portal azul, que pulsava com uma luz fraca e instável. — Você será do Devorador — sibilou a criatura, a voz grave ecoando como um trovão preso. — Não há escapatória.

Lyra, com o ar escapando dos pulmões, sentiu o pânico ceder lugar a uma fúria ardente. Seus olhos brilharam com uma luz azul feroz, e ela agarrou o ombro da criatura com ambas as mãos, os dedos cravando-se na superfície gelada. Um frio diferente, puro e devastador, explodiu de suas palmas, rastejando pelo braço da criatura como uma praga viva. O gelo azul brilhante envolveu o membro, congelando-o em segundos, e com um estalo seco, o braço da criatura se estilhaçou em pedaços cintilantes, caindo no chão como cacos de vidro.

A criatura soltou um grito de pura agonia, recuando, mas Lyra não parou. Com um movimento instintivo, ela estendeu as mãos, e uma barreira de gelo translúcido se formou ao redor dela e de Aiden, um domo brilhante que os envolveu em uma proteção frágil. A criatura, furiosa, lançou-se contra a barreira, suas garras restantes batendo com força, rachaduras começando a se formar na superfície com cada golpe.

Lyra caiu ao lado de Aiden, as mãos tremendo enquanto pressionava a ferida aberta onde o braço dele estivera. O sangue escorria quente entre seus dedos, e Aiden, pálido e ofegante, mal conseguia manter os olhos abertos. — Lyra... — murmurou, a voz fraca, os olhos vidrados de dor.

— Fica quieto, seu teimoso — disse ela, a voz quebrada, mas firme. Seus olhos caíram sobre a ferida, o sangue ainda jorrando, e ela agiu por instinto. Com um toque hesitante, ela canalizou o mesmo frio que usara contra a criatura, direcionando-o para o coto ensanguentado de Aiden. O gelo azul se formou lentamente, selando a ferida em uma crosta brilhante, estancando o sangramento. Aiden gemeu, o corpo tremendo violentamente com o frio, mas a hemorragia parou.

A barreira estremeceu, as rachaduras se alargando enquanto a criatura batia com mais força, seus olhos de brasa brilhando com ódio. Lyra se levantou, o peito arfando, a dor oca em seu coração crescendo com cada pulsação do símbolo em seu braço. Ela sabia que o domo não resistiria por muito tempo. Quando a barreira finalmente cedeu, estilhaçando-se em uma chuva de fragmentos brilhantes, Lyra deixou escapar um grito de ódio puro, um som que parecia rasgar a própria caverna.

Ela ergueu as mãos, e espinhos de gelo azul explodiram dela, voando em todas as direções como flechas vivas. Eles perfuraram a criatura, cravando-se em seu torso, pernas e rosto, arrancando pedaços de sua forma de gelo e sombra. A criatura cambaleou, os olhos de brasa piscando com algo que poderia ser surpresa, mas sua voz cortou o ar com uma calma mortal. — Você não sairá deste lugar viva, Lyra — sibilou, enquanto recuava, sua forma tremeluzindo como se estivesse se desfazendo. — O Devorador a reivindicará.

Lyra não respondeu. Sua respiração era irregular, o corpo tremendo com o esforço de usar tanto poder. Ela caiu de joelhos ao lado de Aiden, que jazia semi-inconsciente, o rosto pálido como a morte. — Vamos, seu teimoso — murmurou, passando o braço restante dele sobre seu ombro. Com um esforço que fez seus músculos gritarem, ela o levantou, arrastando-o como um saco de batatas, o corpo dele pesado contra o dela. O gelo sob seus pés rachava com cada passo, e o uivo distante da caverna parecia zombar dela, mas Lyra não parou.

Seus olhos varriam a escuridão, procurando desesperadamente por uma saída. As figuras congeladas ao longo das paredes pareciam observá-la, seus olhos ocos brilhando com uma luz fraca, como se sussurrassem promessas de fracasso. Mas Lyra cerrou os dentes, a determinação queimando em seu peito. — Não vou te perder, Aiden — disse, mais para si mesma do que para ele, enquanto tropeçava em direção a uma luz fraca ao longe, o peso de seu poder e a dor de sua escolha pressionando como um jugo invisível.

A caverna tremia ao redor deles, pedaços de gelo caindo do teto, e o futuro parecia tão instável quanto o chão sob seus pés. Mas Lyra continuou, arrastando Aiden com uma força que vinha de algum lugar além dela mesma, determinada a encontrar uma saída — ou a criar uma, se necessário.