Um Convite Perigoso

Dezesseis dias se passaram desde a nossa partida de Myrelis, e finalmente chegamos a Sylvari, uma cidade consideravelmente grande. As terras aqui eram bem menos áridas e apresentavam mais vegetação. 

Nós nos despedimos de Marcus, que nos trouxe. Apesar de praticamente ter nos roubado, até que ele era gente boa. Encontrou ótimos locais para acampar, sempre perto de água, e até conseguiu alguns insetos e lagartos para comer, embora Clarice tenha se recusado a comer qualquer um deles. 

Diferente da viagem até Myrelis, Clarice manteve-se incomumente silenciosa, o que até foi um alívio. No entanto, assim que cruzamos os portões da cidade, seus olhos se arregalaram, absorvendo cada detalhe ao redor com fascínio. 

Sua arquitetura era robusta e funcional, com edifícios baixos e largos, projetados para resistir ao tempo. A cidade era cercada por muralhas maciças de pedra, esculpidas com precisão. 

As ruas eram pavimentadas com grandes lajes de pedra, encaixadas com perfeição. No centro, erguia-se um grande salão, um imponente edifício de pedra. A cidade não buscava luxo ou extravagância, mas sim solidez e permanência, uma fortaleza destinada a resistir por séculos. As ruas estavam repletas de comerciantes expondo suas mercadorias e pessoas conversando animadamente. 

— Que incrível! Nunca tinha visto algo assim antes. 

— E você já foi pra onde? 

— Nunca sai de Hasol. 

Fiquei encarando-a, perguntando-me como ela podia dizer isso sem nunca ter visitado outros lugares, mas logo deixei para lá. Agora, precisava encontrar uma maneira de conseguir dinheiro, pagar essa garota e partir em direção à floresta. Caminhei um pouco pela cidade, tentando encontrar alguma oportunidade, enquanto Clarice me seguia por toda parte, como um filhote perdido em busca de companhia. 

Ao me aproximar do grande salão, percebi um mural repleto de anúncios de trabalho. A maioria oferecia pagamentos baixos, até que meus olhos se fixaram em algo realmente interessante. 

O anuncio dizia: "Estamos procurando guerreiros habilidosos dispostos a atravessar a Floresta da Noite Eterna até a cidade de Graldrak. Como recompensa, receberão 100 cruzeiros. Se tiverem interesse, procurem por Edrian no grande salão para mais informações." 

Era uma recompensa considerável, especialmente para atravessar a floresta, algo que eu já planejava fazer. No entanto, algo me incomodava: por que precisavam de guerreiros? O mestre nunca mencionou perigos nessa floresta. O melhor a fazer era encontrar esse Edrian e descobrir a verdade. 

Entrei no Grande Salão, um espaço imponente, com paredes e teto de pedras robustas, meticulosamente posicionadas. Vários lampiões espalhavam uma luz amarelada pelo ambiente, destacando as mesas largas distribuídas pelo salão, onde grupos de pessoas conversavam. O local exalava um ar de reunião e estratégia. Observei por um instante antes de me aproximar de um homem que parecia estar à vontade, sentado em uma mesa no canto do salão. 

— Olá, poderia me informar onde posso encontrar Edrian? 

— Ele tá ali. — Ele apontou para o outro lado do salão, onde, em uma mesa grande, estava sentado um único homem. 

Caminhei até o homem e, ao me aproximar, percebi que ele estava de cabeça baixa, aparentemente imerso em pensamentos. Seus cabelos castanhos caíam até os ombros, e seus olhos cinzentos refletiam um ar de mistério. 

— Olá, você é Edrian? 

Ele ergueu a cabeça com uma expressão de leve surpresa. 

— Sim, o que precisa? 

— Eu vi lá fora sua proposta de trabalho pra atravessar a floresta. 

— O que? Você quer ir? 

— Sim. Quando vai partir? 

— Amanhã mesmo. Antes, farei uma reunião cedo em minha casa pra explicar tudo. É fácil de encontrar, fica aqui do lado do grande salão e tem um teto vermelho. 

— Certo, vou aguardar. 

— Ela vai também? 

— Não. 

— O que? eu vou, pode colocar meu nome na lista. 

— Tá bom, vou esperar por vocês amanhã. 

Suspiro e começo a me afastar, sentindo-me sortudo por ter chegado antes da partida. Provavelmente era um trabalho de escolta ou algo do tipo, dinheiro fácil. Pouco antes de sair, escuto alguns homens cochichando. 

— Ei, vocês ouviram? Aquele suicida vai partir, e mais dois idiotas aceitaram ir também. 

— Hahaha. Esse bando de malucos vai morrer como todos os outros. 

Ao sair para o lado de fora, as palavras daqueles homens ainda ecoavam na minha mente. A floresta não deveria ser perigosa, mas algo claramente não estava certo. O céu já estava tingido pelos tons do entardecer, e um novo problema se apresentava: onde eu passaria a noite? Sem dinheiro, a ideia de pedir ajuda a Clarice novamente me incomodava profundamente. 

— Escuta, desista de ir também. 

— Hã? Por que? 

— Você não entende? daqui pra frente fica muito perigoso. 

— Você só quer me assustar, mas eu também vou! 

— Por que você nunca me escuta, sua santa teimosa? 

— Eu não sou santa! Aquelas pessoas que insistem em me chamar assim! 

Já irritado com essa garota, acelerei o passo entre a multidão, desviando com agilidade das pessoas ao meu redor. Em um instante, movi-me rapidamente e desapareci entre a multidão, despistando Clarice antes de me enfiar em um beco. 

Era melhor assim. Não podia levar aquela garota comigo, ainda mais depois de ouvir aquelas pessoas mencionando que havia algo na floresta. Sem dinheiro, a única opção era acampar nas proximidades. 

Pouco antes de sair, avistei um homem sentado, cercado por algumas pessoas. Intrigado, me aproximei para entender o que estava acontecendo. 

— Venham todos! Descubram qual é a carta certa e levem 2 cruzeiros pra casa! — disse um homem ao lado do que estava sentado. 

— Eu vou! — Outro que estava próximo sentou-se. 

Havia três cartas: duas de ouros e uma de paus. O objetivo era simples, descobrir onde estava a de paus. Parecia incrivelmente fácil. 

Após embaralhá-las sobre a pequena mesa, não havia dúvida, ela estava no meio. No entanto, ao ser revelada, a carta era de ouros. Isso me pareceu estranho, pois eu não tinha desviado o olhar nem por um instante da carta certa. Intrigado, me aproximei ainda mais e continuei observando. Poucos venciam, enquanto a maioria perdia. 

Após cerca de dez minutos observando, compreendi o truque. Primeiro, havia uma pessoa encarregada de atrair os jogadores. Alguém aceitava o desafio e vencia, incentivando mais pessoas a tentarem a sorte e falharem. O jogo era completamente manipulado: os vencedores faziam parte do esquema, e, em vez de apenas três cartas, havia cinco. O homem que embaralhava era extremamente habilidoso, alternando as cartas de forma quase imperceptível nas mangas para enganar os desavisados. 

— Agora é minha vez. — Sentei-me à mesa, pronto para jogar. 

Era fácil acompanhar os movimentos dele e perceber onde posicionava a carta de paus, mas meu verdadeiro objetivo era dar o troco nesses trapaceiros. Ele exibiu a carta de paus antes de virá-la rapidamente, um sorriso astuto se formando em seus lábios, como se estivesse certo de sua vitória. 

— Espere, quero ver as cartas antes. 

— Claro, fique à vontade. 

Peguei a carta e a examinei atentamente, deslizando os dedos pelos cantos de forma sutil, fingindo distração para enganar o trapaceiro. Em seguida, fiz o mesmo com as outras, analisando cada detalhe. Afinal, eu já tinha um plano infalível. 

— E então, percebeu algo de estranho? 

— Não, tá tudo certo. 

Ele começou a embaralhar com destreza, trocando rapidamente a carta de paus por uma de ouros com um movimento quase imperceptível dos dedos. Em seguida, deslizou outra carta de paus para fora da manga e a substituiu por uma de ouros. O que deveria estar à direita agora estava no meio. Disfarçadamente, me espreguicei, abaixando meu braço esquerdo. 

— Então, onde tá. 

— Tá aqui na esquerda. — Apontei para a carta. 

Um sorriso se formou nos lábios do trapaceiro. A multidão ao redor começou a comentar e rir rapidamente, dizendo que eu era um idiota e que a carta estava na direita. No momento em que ele ia virar a carta, eu o interrompi. 

— Espera! 

— Não pode mudar garoto. 

Retirei meu colar e o coloquei sobre a mesa. 

— Quero aumentar a aposta: 10 cruzeiros em troca deste meu colar de ouro puro. 

— Tem certeza? Depois, não adianta se arrepender. 

— Sim, mas eu mesmo desviro. 

— Tudo bem, vá em frente. 

Estendo meu braço esquerdo em direção à carta, enquanto os trapaceiros mantêm sorrisos confiantes no rosto. Com um movimento firme, coloco minha mão sobre a carta e, em seguida, levanto meu braço para o alto. O choque é instantâneo; os rostos ao redor se transformam ao verem a carta de paus em minha mão. 

— Impossível! — exclamou o trapaceiro, desvirando a carta do meio e revelando uma de ouros. 

— Muito bem, agora quero o meu dinheiro. 

— Não pode ser! Você deve ter trapaceado de alguma forma. 

Agarro o braço dele com força e puxo para perto de mim. 

— Eu trapaceei? Acha que eu não percebi a carta escondida? Tá vendo aqueles guardas ali? Quer que eu chame eles? 

— N-não, tudo bem! Aqui, pegue. — Ele me entregou os 10 cruzeiros com uma expressão de frustração. 

Levantei-me e comecei a me afastar, dirigindo-me a um dos guardas para relatar os trapaceiros. Se não estivesse tão necessitado de dinheiro, teria os denunciado de imediato. Mas agora, pelo menos, eu tinha o suficiente para uma pousada e uma refeição decente. 

Foi relativamente fácil. Enquanto fingia analisar as cartas, coloquei discretamente um fio na de paus e outra de ouros. No momento em que ele escondeu a carta na manga esquerda, abaixei meu braço e a puxei para mim por baixo da mesa, colocando-a na minha manga. 

Quando coloquei a mão esquerda sobre a carta de ouros, que também estava presa a um fio, puxei-a por dentro do meu manto com a mão direita. Com um leve movimento, inclinei-me e deixei a carta de paus deslizar para minha mão. Assim que levantei a carta, a atenção de todos se voltou para ela, e foi nesse instante que troquei a do meio pela de ouros. 

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Logo ao amanhecer, saí da taberna. O clima nessa cidade não se comparava ao calor escaldante de Myrelis; aqui, o ar era mais fresco e agradável. Após uma noite de sono revigorante e uma refeição reforçada, senti-me renovado e pronto para a viagem. Com determinação, segui em direção à casa de Edrian para descobrir o que realmente estava acontecendo na floresta. 

Ao entrar na casa, percebi que era bem pequena, mas já reunia algumas pessoas. À minha direita, quatro homens conversavam entre si. À minha frente, Edrian estava ao lado de uma mulher, enquanto dois jovens e uma garota pareciam discutir acaloradamente. Ao meu lado direito… 

Sim, era ela. Lá estava Clarice, de braços cruzados, me encarando com raiva. Respirei fundo e caminhei em sua direção. 

— Por que você fez isso? Por que me deixou sozinha? 

— Eu já não falei que é perigoso? Você quer morrer? 

— Muito bem, agora que todos chegaram, podemos começar. Como todos já sabem, vamos atravessar a Floresta da Noite Eterna, e o pagamento será de 100 cruzeiros pra cada um — disse Edrian. 

— Eu tenho uma pergunta — questionou Clarice levantando a mão. 

Eu acreditava que ela perguntaria o motivo do pagamento tão alto apenas por uma travessia. Eu também estava curioso para saber. 

— Pode perguntar. 

— Por que se chama, Floresta da Noite Eterna. 

Fui idiota por esperar outra coisa dessa garota, mas, para ser justo, nem mesmo o livro de Sylvain trazia muitas informações sobre essa floresta. 

— Isso acontece porque as árvores são enormes e tão juntas que bloqueiam a luz do sol, deixando a floresta sempre meio escura. Não chega a ser noite, mas foi assim que ganhou esse nome. 

— Eu tenho uma pergunta. — Levantei a mão. 

— Sim, o que seria? 

— Quero saber o que tem na floresta que exija guerreiros pra atravessar. Vamos proteger alguém ou enfrentar algum perigo? 

— Pelo visto, vocês não são daqui, então vou explicar. Há pouco mais de um ano, todos que viajavam para a floresta simplesmente não voltavam. Isso interrompeu nosso comércio com a cidade de Graldrak. De acordo com nosso tratado com o rei, deveríamos enviar recursos pra as vilas próximas, mas, devido a essa situação, não conseguimos cumprir com nossa obrigação. 

Então era por isso que as vilas estão enfrentando com falta de comida… 

— Alguém sabe o que tem na floresta? 

— Infelizmente, não. Já fizemos várias rondas nas proximidades, mas não encontramos nada. Muitos guerreiros experientes tentaram entrar, até mesmo em grandes grupos, mas nenhum deles jamais retornou. 

Isso era realmente estranho. Parecia algo extremamente perigoso, mas, de repente, uma ideia surgiu em minha mente sobre o que poderia estar acontecendo. 

— Acho que talvez eu sei o que pode ser. 

— O que? 

— Um monstro… 

— Hahaha. — Clarice deu um tapa nas minhas costas enquanto ria. 

— O que deu em você? 

— Saito, não me diga que você acredita naquelas histórias que nossas mães contavam porque não queríamos dormir. 

As pessoas ao redor tentavam conter o riso, trocando olhares entre si. Um grupo de idiotas que sequer imaginava o que os esperava. 

— Saito, certo? me conte mais sobre esse monstro. 

— Eles possuem mais de dois metros de altura, com pele acinzentada, garras afiadas, dentes enormes e uma cauda musculosa. São criaturas sorrateiras que atacam nas sombras. 

— Hahaha. — Clarice continuava rindo atrás de mim. 

— Se isso for verdade, parece ser muito perigoso. Darian, você já viu algo assim, já que veio de Graldrak? 

— Lá tem alguns animais diferentes dos daqui, mas nada que se pareça com isso. 

— Entendi… Se mais alguém tiver perguntas, fiquem à vontade. E não se preocupem com o dinheiro, pois ele foi fornecido pelo rei e pelo lorde da cidade como recompensa. Agora vou apresentar o grupo. 

— Eu sou Clarice! — Ela passou na minha frente, levantando a mão animadamente. 

— Certo. Aqueles dois são Darian e Richard, vieram de Graldrak há cerca de três anos e serão nossos guias. 

Os dois tinham cabelos castanhos e olhos pretos. Entre todos do grupo, eram os que aparentavam ter a melhor condição física. 

— Os outros dois são Elias e Lucas. 

Bastava olhar para aqueles dois para perceber que estavam ali apenas pelo dinheiro, completamente deslocados. 

— Está ao meu lado é minha esposa, Diana, que é médica e também será responsável pela comida. E este aqui é Otto, que cuidará da carroça com os suprimentos. 

— Isso mesmo. Se precisar de alguma coisa, é só falar! — Ele estendeu a mão na minha direção, esperando um aperto de mão, mas eu apenas o ignorei. 

Com cabelos pretos e olhos verdes, um jovem magrelo, sem nenhuma condição física e um pouco mais baixo do que eu. 

— Esses outros dois são Marco e Talia. 

Marco era um pouco mais alto que eu, com cabelos pretos e olhos castanhos, parecendo ter a minha idade. Talia, por sua vez, tinha longos cabelos pretos e olhos azuis, vestindo uma armadura leve. 

— Edrian, a Talia não vai — declarou Marco. 

— Eu vou sim! 

— Porque você não entende o quanto perigoso isso é. 

— Já se esqueceu que eu sou melhor com a espada do que você? 

— Mesmo assim, não quero que se machuque. 

Por que isso me parecia familiar? 

— Eu concordo com Marco, as mulheres não deveriam ir — comentou Edrian. 

— Amor, já conversamos sobre isso. Eu vou. 

— Isso mesmo, nós temos que ir também, não é, Talia? — disse Clarice, aproximando-se de Talia com um sorriso animada. 

— É, nós vamos! 

Eu não conseguia acreditar que esse seria o nosso grupo para atravessar a floresta. Só de imaginar, já comecei a sentir dor de cabeça. Mas eu precisava me preparar. Se fosse apenas um monstro, acho que conseguiríamos lidar com isso, mas algo me dizia que não era só isso. 

— Acho que isso é tudo. Juntem suas coisas e coloquem na carroça lá fora. Também levaremos mais dois cavalos. A travessia deve levar cerca de cinco dias, caso não encontremos nenhum obstáculo. 

Clarice começou a arrumar suas coisas e seguiu para fora. Aproveitei o momento e me aproximei dela. 

— Você ainda vai? Mesmo sabendo que várias pessoas desapareceram? 

— Sim! 

— Não tem medo de morrer? 

— Eu tenho que ajudar, não viu como as pessoas daquela vila tão precisando de comida. Além do mais se alguém se machucar posso usar meu… aiii — Pisei no pé dela. 

— Sua santa burra, não fale do seu poder assim! Esqueceu o que eu te disse lá na sua vila? — murmurei. 

— Eu não sou santa, nem burra! E era óbvio que tudo aquilo era mentira. 

— Mentira? Pois acredite, tudo isso é verdade. Estou te avisando, a partir daqui, não use seu poder na frente das pessoas e nem sequer mencione. 

— Tá bom… se eu fizer isso, você não vai mais desaparecer? 

— O que mais posso fazer? Você é pior que um carrapato. 

— Parece que todos estão prontos. Vamos!? 

E assim, deixamos a cidade para iniciar nossa jornada rumo à floresta. De longe, já era possível ver as enormes árvores se estendendo em uma imensidão verde. A ansiedade crescia dentro de mim, pois não fazia ideia do que nos aguardava lá dentro. No entanto, uma coisa era certa: essa não seria uma viagem tranquila.