A neve era onipresente no mundo. Os seres humanos não conheciam as estações do ano. Somente a brancura estonteante da neve.
Durante todo o ano, a neve cruelmente açoitava os moradores de pequenos vilarejos com o castigo do inverno sem fim. Alguns dias, ela era mais clemente e permitia que o sol fosse apreciado por algumas horas. Em outros, não permitia que as pessoas sequer saíssem de suas casas, e não pudessem sequer contemplar as nuvens.
Para alguns, o mundo estava sendo punido por um pecado cometido a tanto tempo, que eles já haviam se esquecido. Para outros, a neve era uma benção, que impedia guerras e conflitos complexos.
Para Kaito, a neve era apenas um contratempo para que ele fosse trabalhar, e com sorte, um bom motivo para que ele não fosse. O que, na maioria das vezes, significava um dia tedioso cozinhando em casa.
"Como a mesma cama pode parecer uma pedra durante a noite e ser como uma nuvem pela manhã?", o garoto pensou aborrecido.
Apesar da preguiça, ele se levantou e dobrou seu saco de dormir.
Ele deu uma olhar panorâmico sobre a casa e tentou reconstruir a manhã e entender o que estava acontecendo. A casa consistia em três cômodos: uma sala de tamanho razoável, que cabia uma lareira generosa, uma cama e o saco de dormir no qual ele revezava para dormir. Uma cozinha pequena, que cabia quatro ou três pessoas ao mesmo tempo, mas que nunca chegou a ter tantas pessoas de uma vez.
O último cômodo era um modesto armazém que abrigava três prateleiras de mantimentos, que sofriam, quase vazias.
Enquanto se arrumava, ele se perguntava se teria tempo para ler o livro que ele estava lendo ontem. "Se o velho do Adam não ficar me enchendo o saco, talvez eu quebre meu recorde. Quinhentas páginas em um dia!".
Quando chegou a essa conclusão, Kaito se sentiu um pouco triste. "Se eu terminar esse livro, não vão sobrar muitos além daqueles chatos livros de genealogia. Até chegarem mais, eu vou morrer de tédio".
Ele sabia que, de todos os outros trabalhos que ele poderia encontrar, esse era o que menos exigia esforço. Ele precisava apenas carregar alguns livros de um lado para o outro e registrar algumas coisas em cadernos velhos. O máximo de trabalho pesado que ele tinha era tirar um pouco de neve quando a brigada não dava conta.
O garoto se vestiu com sua camisa de manga curta azul, com uma gola alta e larga, uma calça que ele havia recebido de um homem que era algumas vezes maior do que ele. Por cima de tudo, ele usava uma túnica - também em um tom de azul, escuro como o fundo do mar - que cobria todo o corpo debaixo dos ombros, e acima deles também, caso Kaito quisesse usar o gorro.
Kaito realizou a parte mais difícil quando as tempestades eram fortes: abrir a porta. O que era uma tarefa simples em dias de pouca neve, era um trabalho quase hercúleo quando as tempestades atacavam sua casa. Mas, por sorte, ele conseguiu abrir com uma certa tranquilidade, a boa sorte, no entanto, significava que o vendaval estaria contra a porta da biblioteca.
Mesmo com a tempestade, a neve nunca passava dos joelhos. Mas, mesmo assim, quando chegava nesses níveis, incomodava e atrapalhava qualquer um.
O jovem saiu cortando a neve, mesmo com a dificuldade em ver um palmo à frente de si mesmo. Ele recebeu algumas saudações enquanto se dirigia para a biblioteca da vila Rubi, cumprimentou o patriarca da família vizinha a ele, o senhor Alamo. Apesar do nome bonito, ninguém na vila se referia a ele dessa forma, preferiam usar o nome da família, Texugo.
Usavam esse nome, pois um ancestral da família deu início ao projeto dos armazéns subterrâneos, assim como os texugos constroem seus túneis. O significado acabou se perdendo com o tempo, já que devido ao clima rigoroso, a última pessoa a avistar um texugo já havia deixado essa terra a um bom tempo.
Kaito chegou na biblioteca, mas não teve sucesso em abrir a porta, por mais que fizesse força, o vento insistia em envergonhá-lo, fazendo-o ter que bater na porta para pedir ajuda.
Rapidamente, um homem alto e esguio abriu uma fresta da porta, o máximo que seus braços finos poderiam fazer pelo menino. Após alguns minutos de esforço vergonhoso, Kaito conseguiu entrar.
A biblioteca só não era maior do que o salão, mesmo que não parecesse. Existiam tantos livros dentro do local, que exceto por uma pequena entrada em que ficava a mesa do bibliotecário, o restante do local possuía apenas pequenos corredores estreitos e tortuosos. O espaço era sufocado por livros de todos os lados, que subiam por estantes tortuosas, que ameaçavam cair sob os mais desatentos.
-Você demorou para chegar hoje - o homem se recompunha e voltou a ler um livro grande, atrás do balcão.
-A neve está um pouco pior do que o normal, Adam. Além disso, eu vim o mais rápido que eu pude.
-Desde a hora que eu cheguei aqui, eu coloquei três ampulhetas - disse Adam apontando para uma ampulheta cujo a terra estava concentrada na parte de baixo - Você normalmente demora duas ampulhetas.
-Você deve ter acordado mais cedo. Mas, se eu me atrasei, eu peço desculpas.
O homem tirou seus olhos do livro por um momento e vislumbrou um pouco da paisagem enquanto a porta estava se fechando, levantou uma sobrancelha e voltou os olhos para o livro.
-Preciso que você termine o trabalho com os livros que você não conseguiu concluir ontem. O mais rápido possível, eles já estão remexendo - Após passar essas instruções, Adam se espreguiçou um pouco e ajeitou seus óculos. O trabalho que ele teria pela frente ainda levaria muitas horas…
Kaito guardou sua capa e se dirigiu com cuidado, mas destreza ao ponto mencionado por Adam. Era um local em que as velas não iluminavam bem, e era necessário um esforço a mais do leitor para que ele conseguisse compreender as palavras neles contidas. Mas não era somente isso que fazia o lugar ser pouco popular entre as estantes da biblioteca.
Esse ponto mal iluminado era a morada dos livros mais rebeldes de toda a vila.
Livros que se recusaram a virar suas páginas, outros que apagavam sua tinta e alguns que até pulavam das mãos de quem os tentava ler.
O garoto começou a olhar ao redor, buscando seu alvo. Seus olhos miraram em um livro grande de capa de couro, que era o único empoeirado entre os outros ao seu lado. O único desafio que ele não conseguiu superar da última vez.
Com passos vagarosos, como quem se faz de desentendido, Kaito passou o dedo no livro e leu os escritos em sua lombada.
-"Diogenes"! Nossa, essa é a história que eu estava procurando.
O livro continuou na estante, sem oferecer sinais para ele.
–Esse é o livro que eu sempre sonhei em ler!
O livro continuou emburrado, não se movendo nem um centímetro.
Já um pouco irritado, Kaito puxou ele da estante exercendo o máximo de força que conseguia. Bruscamente, ele conseguiu puxar o livro, batendo suas costas na estante atrás dele.
-Cara, eu estou aqui pelo seu bem. Só vou tirar o seu pó!
Como resposta, a capa do livro se grudou ainda mais às suas páginas, tornando o livro grosso, um pouco mais fino.
-Por isso que você tá largado aí! Você não quer nem sair da estante! - repreendeu Kaito.
A capa se afrouxou um pouco, sentindo o peso das palavras.
-Não quis ser tão duro. Mas você precisa me ajudar a te ajudar. Se você quiser que as pessoas te leiam, você precisa se abrir.
O livro então liberou a pressão nas páginas e Kaito finalmente conseguiu abri-lo. A página era escrita com uma letra cursiva rebuscada, que aos poucos foi se esvaindo, exceto pela palavra "Olá" no topo esquerdo da página.
-Agora sim! Oi pra você também. Você vai colaborar comigo?
Agora, toda a página estava apagada. Kaito virou a página e encontrou outras duas páginas parecidas. Na esquerda, uma com as palavras "não" e "você" enquanto na direita a palavra "ler".
Na vila Rubi, os livros tinham todas essa característica peculiar: conseguiam apagar as palavras para conseguir comunicar sua mensagem. Eles não tinham o poder de escrever novas palavras, já que estavam limitadas às palavras que seus escritores originais colocaram.
-Você quer… ser lido? - Kaito perguntou mesmo já sabendo a resposta.
As palavras se apagaram, e um "sim" apareceu na página esquerda.
-Eu agradeço a honra, mas agora eu não vou conseguir, se você me der alguns minutos, talvez eu possa…
Kaito foi interrompido quando o livro saltou sendo impulsionado por sua capa e acertou um golpe no queixo de seu bibliotecário. Enquanto ele estava distraído, o livro saia pulando como um peixe fora d'água em direção a porta.
Inspirados por seu revolucionário, outros livros empoeirados saltaram das estantes e o seguiram no movimento. O ato era um tanto quanto patético, já que um livro não conseguia ir muito longe sozinho, mas o barulho gerado foi o suficiente para que Adam saísse de sua cadeira com uma vassoura em mãos, já acostumado com esse tipo de cena.
Adam começou a acertá-los com uma vassoura e empurrando todos para um canto, até que eles formassem uma pilha.
-Xó! Sai pra lá! - Ele gritava até ficar vermelho e distribuir grandes gotas de sua saliva por aí.
Quando eles se acalmaram, ele se juntou a Kaito no chão, ofegante.
-Desculpa senhor. Eu não percebi que…
-Já é a terceira desculpa nessa semana. E é a milésima besteira que você faz e que eu vou precisar consertar - Adam disse entre pausas profundas para pegar um pouco de ar - não sei o que vai ser desse lugar quando eu me for.
Kaito se levantou, se sentindo culpado pelo que havia feito.
-Tem algo que eu posso fazer para compensar?
Adam se levantou, batendo a poeira no colo. Ele se virou e começou a caminhar de costas para o menino, para que ele não visse o sorriso malicioso em sua face, em direção ao balcão.
-Na verdade, tem sim.
Ele se abaixou e pegou uma cesta, escondida entre as sombras e caixas da parte de trás do móvel.
-Me deixe aqui arrumando as coisas e vá tentar encontrar alguns mirtilos para minhas filhas.
Kaito pegou a cesta, vestiu a capa e saiu da biblioteca, frustrado por ter causado problemas, mas aliviado por poder sair ao ar livre. Por um tempo, ele ficou sem formular uma frase sequer em sua mente, sendo que a única coisa que conseguia sentir era a vergonha por ter derrubado os livros.
Ele sabia que a biblioteca era o último trabalho que aceitaria ele, então se não continuasse ali, não sabia para onde ir. Para ele, especialmente ele, era difícil encontrar uma ocupação, já que a maioria seguia as ocupações de seus pais, de acordo com o que a vila necessitava.
Adam, vinha de gerações de bibliotecários, e suas filhas só não trabalhavam ali porque escolheram seguir o ofício de sua mãe, se tornando costureiras.
Por não conhecer seus pais, Kaito foi jogado de um trabalho a outro, sendo substituído por cada menor erro que cometesse. O único ofício que ainda não havia sido dispensado, era a biblioteca. Então ele se esforçava ao máximo para não sair desse também.
-Você também saiu do trabalho mais cedo pra hora da neve? - uma voz se fez ouvir na frente dele.
O garoto levantou a cabeça e viu Saga, mais à frente na trilha, com seus cabelos ruivos divididos em duas tranças e um vestido que ia até os tornozelos. Seus olhos eram penetrantes, como se estivesse sempre desafiando quem os observava por muito tempo. Eles eram castanhos, mas quando iluminados pela luz, se assemelhavam ao tom vermelho vivo do seu cabelo.
-Não, acho que não vou sair tão cedo hoje.
-Porque? Está todo mundo saindo para o dia da neve hoje - Saga ia seguindo ele por entre o caminho que cruzava toda vila em direção a floresta.
-Não sei, e é melhor você não ficar me enchendo de perguntas - Kaito disse estressado. Ele sabia o porquê. Adam sabia que ele precisava do trabalho e sabia que ele faria qualquer coisa para não decepcionar o líder novamente.
-O Adam pediu para você pegar alguma coisa?
Kaito não respondeu. Apenas se virou para ela com um olhar fulminante. Ele tinha um talento especial para evitar pensar sobre seus fracassos, mas era difícil quando alguém fazia o favor de lembrá-lo em voz alta.
Compreendendo perfeitamente a mensagem, Saga apenas o seguiu enquanto a trilha deixava para trás a cidade.
A floresta ficava em uma elevação, um morro baixo, mas prolongado que abrigava todas as árvores e plantas que os aldeões plantavam para o próprio consumo. De forma que a floresta não possuía verdadeiramente uma alma como outras florestas naturais que cresceram pouco a pouco. Ela era coberta por uma aura de apatia que a cobria por completo, assim como a neve.
Suas árvores eram magras, altas e com poucas folhas. Não possuíam galhos e causavam uma estranheza crescente em Kaito, mas que Saga adorava admirar. Os arbustos de mirtilo eram colocados em distâncias intercaladas, com distância calculada para não interferir no crescimento do outro.
A dupla se embrenhou e começaram juntos a procurar em cada arbusto um mirtilo que valesse a pena ser colhido. Ao estarem cercados completamente pelas árvores a cesta continha somente três ou quatro mirtilo, sendo dois deles verdes e um deles um achado de Saga, que o encontrou no chão, coberto por um pouco de neve.
-Não sei se eu estou ficando louco, mas a cada vez que eu visito esse lugar com você eu sinto que ele está ficando menor.
-Eu adoraria que fosse isso, mas essas coisas acontecem porque a gente está crescendo. Igual as cadeiras e a nossa casa - Comentou Saga enquanto chacoalhava um arbusto - Tudo é gigante quando nós somos crianças.
-A vila sempre pareceu pequena pra mim, mas ultimamente está insuportável. Eu não aguento mais viver assim.
-Ás vezes eu sinto isso também. Mas eu acho que, de certa forma, eu amo viver aqui. Eu gostaria de conhecer outras coisas algum dia, mas eu não consigo me afastar da vovó.
-Também não consigo imaginar um dia sem a Hulda - Kaito verificava pela segunda vez uma moita que estava coberta pela neve - Mas todos os dias parecem iguais por aqui. As mesmas pessoas, as mesmas conversas e a mesma maldita neve. Sou muito grato por tudo que vocês fizeram por mim, pela proteção do Ivor e tudo mais, mas será que não existe mais nada lá fora? Será que o mundo todo é só isso?
-Acho que eu entendo o que você quer dizer, mas você, mais do que ninguém, sabe a resposta. Você já virou aquela biblioteca do avesso e todos os autores dizem a mesma coisa: o mundo é neve do norte ao sul.
-Eu sei o que os autores dizem, mas você? Não sabia que você sabia ler - Kaito zombava com um tom jocoso em sua voz.
-Sei sim, engraçadinho. Por trás dos meus braços fortes, existe um cérebro pensante - Saga respondia um pouco mais longe. Ela fazia o trabalho mais rápido que seu colega, embora tivesse menos capricho.
Eles seguiram em silêncio por um tempo, inspecionando a maior parte da floresta, até avistarem algo que os chamou atenção.
A vila Rubi era localizada em uma ilha que por sua vez era cercada por um mar gelo espesso, que nem mesmo o habitante mais antigo havia visto descongelar. À distância, os jovens viram ao mesmo tempo algo que quebrou a rotina daquele dia. Um pequeno ponto vermelho, que se aproximava mais deles cada vez mais.
Por um momento, eles somente observaram, espantados com o que estavam presenciando. Em toda sua vida, nenhum deles havia contemplado nenhum evento semelhante.
Ao se aproximar do campo de visão deles, o ponto começou a ganhar forma. Os braços, os pés e a cabeça começaram a se tornar aparentes.
-O que raios é aquilo? - Saga perguntou com o rosto exibindo um misto de medo com surpresa- Ele tá pegando fogo?
Kaito não respondeu, apenas manteve seus olhos fixos na figura que a cada segundo, se aproximava mais e mais, correndo com o máximo de velocidade que eles já viram alguém correr.
Quando o medo tomou conta de Saga por completo, ela agarrou o irmão e o puxou para trás de uma moita, segurando sua boca.
A figura continuou a correr, sem fazer barulho algum, até chegar ao esconderijo improvisado. Quando chegou atrás deles, parou por um momento e, por estarem com a cabeça baixa, não vislumbraram a cabeça flamejante que os observou por alguns segundos antes de explodir em chamas.