Kaito se levantou aos poucos, sentindo o corpo pesado e dores fortes na têmpora. Quando tentou se levantar, apoiando-se no braço esquerdo, ele perdeu o equilíbrio e voltou com a cabeça no travesseiro. Sentiu o tendão do braço dor por mais alguns segundos, juntamente com um incômodo, na mesma região.
O garoto se sentou na cama usando o braço esquerdo para se apoiar e puxou a camisa para entender o que estava acontecendo. Enquanto ele a puxava, conseguia sentir a cicatriz mesmo sem enxergá-la. Quando conseguiu remover, não enxergou as marcas que o causaram dor, somente ataduras que iam de toda a parte esquerda de suas costas até parte do antebraço.
-Você sempre dorme demais - Saga resmungou.
Kaito se virou e viu sua irmã sentada na cama ao lado, deitada com os braços e as pernas esticados para fora da cama.
-O que aconteceu com o "bom dia"?
-Eu sei tanto quanto você. Depois que aquela coisa apareceu eu não lembro de mais nada - Saga se virou para o teto novamente.
A enfermaria ficava na maior instalação da ilha Rubi: o centro de reuniões. No térreo, existiam algumas mesas para as refeições que eram feitas em conjunto, e um palco para leitura de poesias, peças de teatro e recados importantes. No porão, eles armazenavam todo o tributo de inverno, um imposto cobrado somente no período do ano em que a neve os permitia ver o sol por mais de sete dias seguidos.
O sótão abrigava o cômodo em que eles se encontravam, com oito camas grandes e fofas, mesas cheias de papeis e frascos e uns cinco armários de madeira, repletos de remédios e plantas. Não existia muita variedade - afinal, a matéria prima que podia ser encontrada na ilha era escassa - mas era o suficiente para as necessidades locais.
Kaito olhou para cima, pensativo. Ele se perguntava o que poderia ter acontecido, mas não conseguia focar nessa pergunta por mais de alguns minutos. Sempre que pensava sobre isso, era como se uma pequena coceira começasse em sua testa, impedindo ele de pensar muito sobre o assunto.
Após mais alguns minutos, a porta se abriu revelando um grande homem, Ivor. O corpo do líder da vila era tão grande que ele precisava encolher os ombros e abaixar a cabeça para passar pela porta.
A presença de Ivor era poderosa, de forma que ele não precisava fazer as perguntas, naturalmente as pessoas deixavam as respostas fluir quando ele chegava. Ele quase nunca pedia, mas quando o viam, os moradores da vila compartilhavam o que estavam fazendo, o atualizavam de suas tarefas e tentavam de alguma forma impressioná-lo.
–Estamos bem, Ivor. Não precisava se preocupar - Kaito disse sem olhar diretamente para ele.
-Eu preciso vir ver como vocês estão, é o meu dever me preocupar com vocês - a voz de Ivor era profunda, e ressoava como um trovão em quem a ouvia.
-Nós já vamos poder sair? Daqui a pouco vai anoitecer e eu… - Saga conversava com Ivor mais informal e mais apressada do que Kaito, que ainda se usava de uma certa reverência no tom de voz.
-O dia está amanhecendo, Saga. Vocês passaram a noite aqui.
Eles se entreolharam, assustados. A garota se levantou apressada e abriu a cortina ao lado da cama.
-O que diabos aconteceu?
Ivor deixou escapar um sorriso e se sentou ao pé da cama de Saga.
-Ainda não sabemos exatamente o que foi, mas estamos preocupados com vocês. A explosão foi o suficiente para abrir uma pequena clareira onde vocês estavam.
Eles ficaram em silêncio, olhando para Ivor e depois se olhando, com desespero nos olhos.
-Eu acho que eu já entendi o que aconteceu. Não precisam ter medo de falar a verdade. Pode não parecer, mas eu já fui jovem também - ele se virou dando risada, com os olhos brilhando de nostalgia - eu e sua mãe já roubamos pólvora, Saga.
Enquanto sua gargalhada inundava o cômodo, Kaito começava a entender o que ele queria dizer. Ninguém além deles havia visto o corpo, para os outros isso havia sido apenas uma brincadeira dos dois.
-Ivor, não fizemos nada - Kaito disse tentando interromper os devaneios do homem.
As risadas dele não permitiram que ele escutasse essa e outras tentativas de Kaito chamar sua atenção.
-Nós não fizemos absolutamente nada - A voz de Saga foi o suficiente para trazê-lo novamente a realidade - Um corpo pegando fogo tentou atacar a gente, foi isso que aconteceu.
As risadas foram parando aos poucos, e a graça foi se esvaindo do rosto do chefe da aldeia, e em contraste, sua expressão se tornava séria novamente. Os jovens sentiram a mudança de humor e ficaram apreensivos com a situação.
-Não conte sobre isso pra ninguém - ele disse.
Ivor se levantou e saiu da enfermaria, deixando um silêncio para trás. "Será que ele já havia começado?", pensou ele, "aquele maldito havia começado sem o avisar?".
Quando Ivor saiu, a porta se abriu novamente, revelando uma figura imensamente menor. Hulda andava com uma bengala de madeira, feita de uma árvore tão antiga quanto ela. As rugas de seu rosto já eram parte predominante de toda sua face, seu nariz possuía uma pinta no lado esquerdo do nariz em forma de batata que adornava sua face. Entretanto, a característica mais marcante da anciã era seu sorriso, que se estendia por entre seus largos lábios.
-Meninos! - ela disse com um sorriso.
Saga e Kaito pularam de suas camas e a receberam com um abraço caloroso.
-Estou feliz que vocês tenham acordado, já estão se sentindo melhor?
-O que era exatamente para estarmos sentindo?
-Bem, vocês foram acertados por uma explosão forte, especialmente você, Kaito. Suas costas foram queimadas e um punho seu foi quase reduzido a pó.
-Meu punho? O que aconteceu com a minha mão?
-Eu esperava que você me dissesse isso, mas você deve ter perdido a consciência com o impacto. Eu imagino que você tenha tentado encobrir Saga, e pelas marcas mais presentes em seu cotovelo, eu imagino o impacto tenha acertado ele primeiro, fazendo você golpear sua irmã sem querer.
-Você é um imprestável mesmo! - Saga se virou gritando - Você não serve nem pra se sacrificar!
-Da próxima eu deixo você morrer sozinha! - Kaito gritou tão alto quanto a garota.
-Não briguem, meus netos. Vocês precisam poupar energia para que a cura funcione totalmente. Vocês precisam descansar.
Eles trocaram um último olhar de raiva, mas se deitaram novamente, respeitando a autoridade da avó.
-Saga, com a força do impacto, algumas costelas se quebraram, mas você já está bem e suas queimaduras já estão menores que as de Kaito.
-Como você conseguiu, Hulda? - Kaito perguntou - Eu nunca vi você fazer curar algo assim.
-Ossos quebrados não são especialmente difíceis de curar, especialmente quando se usa Cupana. Enfim acredito que é explicação demais para você agora, descansem e mais tarde voltamos a conversar.
Kaito se deitou novamente e olhou para o teto, mas com uma pequena alegria dentro de si. Finalmente, algo havia acontecido na ilha Rubi.
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Em outra parte da ilha, Ivor desceu um longo lance de escadas e chegou em um vasto salão.
Era impressionante como uma das maiores estruturas da ilha estivesse totalmente fora do conhecimento da maioria dos aldeões.
Ivor seguiu para um grande barco, coberto por uma capa empoeirada e a retirou. O momento estava chegando. Depois de muitos anos, Ivor sentiu um pouco de esperança.