o Guardião das Sombras

O GUARDIÃO DAS SOMBRAS – CAPÍTULO I

As chamas ainda ardiam no céu, tingindo as nuvens de vermelho e ouro, como se os próprios deuses estivessem travando uma batalha acima deles. Erit abriu os olhos com dificuldade, sentindo o gosto amargo de fumaça em seus lábios. O calor não vinha de fora, mas de dentro dela, pulsando junto ao coração como uma tempestade de fogo prestes a explodir.

O campo ao redor estava coberto por uma camada espessa de cinzas. Árvores queimadas apontavam seus galhos carbonizados para o céu como mãos suplicantes. A areia negra sob seus pés ainda fumegava, mas ela não sentia dor. O fogo a reconhecia. Era parte dela.

Ao seu lado, Théo tremia. Seus ombros estavam tensos, os olhos arregalados enquanto encarava a paisagem desolada. O medo dele era quase palpável, uma névoa densa que envolvia seus movimentos. Mas ele não recuava. Ficava ali, firme, como sempre fazia quando mais importava.

— Está… tudo morto — murmurou ele, quase para si mesmo.

Erit assentiu, mas não disse nada. Sabia que aquele lugar ainda respirava, mesmo entre as cinzas. Havia algo escondido ali. Algo que se alimentava do silêncio.

Mais adiante, Erian permanecia de pé, imóvel como uma estátua de mármore negro. Os olhos estavam fixos no horizonte, onde a floresta começava, sombria e densa. A aura ao redor dele oscilava, instável, como se a qualquer momento pudesse se despedaçar.

Erit o observou em silêncio. Sabia que ele carregava mais do que dizia. Desde o início da jornada, Erian parecia assombrado por algo invisível, um peso que nenhum deles conseguia alcançar. E agora, ali, diante daquela floresta amaldiçoada, o ar ao redor dele parecia mais pesado. Como se algo estivesse puxando-o para dentro da escuridão.

— Ele está perto — sussurrou Nyra, sua voz como o toque gelado da noite. Os olhos prateados dela brilharam por um segundo. — O Guardião das Sombras.

Ninguém respondeu. O nome não era para ser dito. A simples menção fazia a escuridão estremecer.

Segundo as antigas lendas de Eldalyn, o Guardião era uma entidade esquecida pelo tempo, aprisionada nos confins do mundo pelos deuses antigos. Nascido da raiva, alimentado pela dor, ele era o herdeiro das trevas. Erian havia sido marcado por ele ainda criança. Erit lembrava do dia em que o garoto desmaiara em meio a um pesadelo, coberto por marcas que brilhavam em roxo sob a pele.

Desde então, ele nunca mais foi o mesmo.

— Erian… — chamou ela, aproximando-se devagar. — Você não precisa enfrentá-lo sozinho.

Ele não respondeu. As pupilas dele haviam se dilatado, e um véu escuro parecia cobrir suas íris. As sombras começavam a se mover ao redor dos pés dele, como serpentes silenciosas. O calor do lugar desaparecia aos poucos.

Nyra, sem hesitar, estendeu a mão e tocou o peito dele com suavidade. Um brilho pálido surgiu em seus dedos, e por um instante, Erit viu a dor estampada no rosto de Erian.

— Escute minha mente — sussurrou Nyra. — Encontre a sua.

O vento cessou.

Então veio o grito.

Não era humano. Era agudo, dilacerante, carregado de ódio antigo. Ecoou da floresta adormecida, fazendo as cinzas voarem e os pássaros mortos despertarem por um segundo, apenas para mergulharem no silêncio eterno.

Théo deu um passo para trás.

— A gente vai mesmo entrar ali?

Erit ergueu a cabeça. O fogo despertava sob sua pele, como se algo dentro dela também quisesse responder ao chamado da escuridão. Mas ela não hesitou.

— Vamos acabar com isso.

E, um a um, eles avançaram em direção à floresta, onde as sombras os esperavam

A floresta os engoliu sem piedade.

Não houve transição suave entre a luz e a escuridão. Foi como atravessar um véu espesso, onde o tempo e o espaço se dobravam. O chão era irregular, coberto de raízes grossas como serpentes adormecidas. As árvores formavam uma muralha viva, com troncos que pareciam olhos fechados prestes a se abrir.

Erian caminhava à frente agora, os passos firmes demais para alguém que mal havia se recuperado. Mas havia algo novo nele. Erit percebia. Como se o vínculo com o Guardião tivesse se intensificado, puxando-o para um destino que apenas ele enxergava.

— Essa floresta não é só floresta — murmurou Théo, quase tropeçando em uma raiz. — Ela tá... viva. Tá... lembrando da gente.

— Ela guarda o que foi esquecido — disse Nyra, tocando uma árvore com a ponta dos dedos. — E nos obriga a lembrar também.

Erit sentia o fogo de Sareth vibrando mais uma vez dentro do peito, reagindo a algo próximo. Não era só o Guardião. Era como se o próprio mundo reconhecesse a presença da Pedra. Como se forças antigas, que dormiam sob a terra, estivessem despertando com passos impacientes.

Então pararam.

No centro de uma clareira envolta por árvores retorcidas, havia um altar de pedra negra. Sobre ele, uma armadura vazia, coberta de runas quebradas, como se tivesse sido rachada por dentro. Erit sentiu um calafrio. Aquela armadura... não estava vazia.

— Esse era um dos portadores antes de mim — murmurou Erian. A voz dele tinha mudado. Mais grave. Como se ecoasse de outro lugar.

— Como você sabe disso? — Erit perguntou.

— Eu sonhei com ele. Por anos. Cada vez que o Guardião me chamava.

Nyra se adiantou e se ajoelhou diante do altar, os olhos prateados fixos nas rachaduras da pedra. Ela sussurrou algumas palavras em feérico antigo, e o ar ao redor deles se condensou.

A armadura se moveu.

Só um pouco. Um estremecer mínimo. Mas suficiente para que todos sacassem as armas.

— A alma dele ainda está aqui — disse Nyra, erguendo-se lentamente. — Presa. Sofrendo. O Guardião não mata os seus... ele os devora por dentro. Torna-os parte de si.

Erian avançou até o altar e pousou a mão sobre a armadura. A Pedra de Sareth brilhou sob sua camisa, emitindo um pulsar tão forte que o chão tremeu.

— Então vou libertá-lo.

Um feixe de luz dourada escapou de sua mão e penetrou a fenda na armadura. O grito que veio em seguida foi o mesmo de antes — não humano, não natural —, mas desta vez, carregava algo mais: alívio. A armadura se desfez em pó, e por um instante, uma silhueta de luz pairou diante deles. Um homem, com olhos tristes, que fitou Erian com gratidão silenciosa antes de desaparecer.

O silêncio voltou, mas havia mudado. Estava mais leve. Como se a floresta tivesse concedido um passo.

— Vocês ouviram isso? — disse Théo.

— O quê? — Erit perguntou.

Ele engoliu seco.

— Um sussurro. Quase como... como se alguém tivesse dito meu nome.

Nyra franziu o cenho. Erian se virou lentamente. Erit sentiu a mesma coisa que ele: uma presença, agora mais próxima.

— Ele está nos observando — disse Erian. — E ele sabe que estamos vindo.

Ao longe, entre as árvores, olhos vermelhos brilharam. E desapareceram no mesmo instante.

Erit fechou os punhos.

— Que se prepare.

E, com o fogo de Sareth queimando em seus ossos, ela deu o primeiro passo em direção ao covil do Guardião das Sombras.