Capítulo 23 - Despertar Parte II: O Legado de Seraphina

Após o clarão de luz, o tempo parecia congelado.

A dor cessara, mas Dário flutuava, suspenso entre realidade e memória. A Piscina do Despertar cintilava como um sol contido, transbordando energia Áurea. No entanto, ele já não estava mais ali ou, ao menos, não inteiramente.

Dentro de sua mente, o cristal pulsava como um segundo coração.

— Meu pequeno Dário... uma voz suave e calorosa ecoou, — Eu sou Seraphina, sua mãe. E se estás ouvindo minha voz, é porque sobreviveu ao primeiro Despertar. Isso significa que sua alma e corpo são fortes o bastante para suportar a verdade.

O cenário à sua volta se dissolveu como névoa.

Diante dele, surgiu uma mulher de beleza serena, vestida com mantos dourados. Seus olhos carregavam uma fúria silenciosa e uma tristeza insondável. Ao redor, cinco figuras feitas de pura luz Áurea a cercavam. Eram altas, humanoides, mas sem rosto apenas máscaras de julgamento celestial. Cada uma empunhava armas etéreas: lança, espada, arco, corrente e cajado. As Criaturas do Céu.

— Vocês me julgam por amar o que não deveriam controlar... Seraphina sussurrou, com um sorriso amargo. — Então provem que são dignos de me condenar!

A batalha começou com um estrondo. Seraphina invocou uma lança de fogo solar, disparando contra o primeiro inimigo. A criatura com lança bloqueou, mas foi arremessada para trás. As demais atacaram em sincronia, cercando-a.

Ela dançava entre as luzes com maestria. Escapava de cortes impossíveis, conjurava círculos solares que explodiam ao toque, prendia uma das entidades em uma prisão dourada antes que outra a quebrasse com uma flecha de luz.

Dário observava, paralisado, enquanto sua mãe enfrentava as entidades celestiais sozinha.

Sangue dourado começou a escorrer de seus lábios.

Um golpe cruzado da espada e da corrente rasgou seu flanco, a fazendo cair de joelhos. Mesmo assim, ela ergueu as mãos, absorvendo a luz do próprio corpo para disparar um feixe que atravessou o peito do ser com cajado, desintegrando-o.

— Um a menos... — ela murmurou, arfando.

Mas os quatro restantes não hesitaram. Avançaram novamente.

A luta se tornou desesperada. Seraphina rugia de dor e desafio. Desviava, feria, queimava, mas estava ficando mais lenta, mais fraca. Suas roupas estavam rasgadas, seu corpo coberto de feridas resplandecentes.

— Não é por mim que luto... é por ele! gritou, lançando uma onda de energia que empurrou os inimigos. Com o último de suas forças, ela abriu um portal de fuga. Atrás dela, uma voz celestial soou:

— Você traiu a ordem. O preço será eterno.

— Então que seja eterno. E desapareceu.

A visão mudou.

Agora ela cambaleava por uma floresta, sangrando e exausta. Um jovem se aproximou. Era o próprio Lorde Theon, décadas mais novo que a carregou nos braços sem hesitação.

Outras cenas vieram como fragmentos: Seraphina sendo cuidada, se recuperando, sorrindo. Depois, segurando um bebê nos braços com os olhos cheios de ternura, embora seu corpo tremesse e sua alma vacilasse.

Finalmente, o cenário se estabilizou em um jardim silencioso. Um céu de estrelas pairava sobre um campo dourado. No centro, Seraphina o aguardava ou ao menos uma projeção sua, envolta em mantos de energia solar. Seus olhos brilhavam como sóis tristes.

— Este é apenas um fragmento de minha consciência, Dário. Um eco deixado com meu último suspiro. Não posso tocá-lo, nem ouvi-lo. Mas posso mostrar. E explicar...

Dário assentiu. Ou talvez fosse apenas sua alma que reagira. Ele não tinha mais certeza de onde terminava sua mente e começava a dor.

— Você nasceu com os meridianos danificados, e seu Corpo Especial selado... porque o Céu o rejeitou. A voz de Seraphina tremia.

— Na hora do seu nascimento, o mundo se partiu entre trevas e luz. Um fenômeno que nunca havia sido registrado antes. Um aviso aos de cima. Um temor aos de baixo.

— Para protegê-lo, escondi sua existência. Selando seu corpo, danificando seus meridianos como uma ilusão... enquanto transferia para você toda a essência do meu físico especial. O Céu jamais imaginaria que seria eu a morrer. Não você.

Nesse momento deu pra ver um leve sorriso que demonstrou alegria e travessura.

Então imagens mostravam seu corpo se despedaçando enquanto envolvia Dário recém-nascido em uma cúpula de energia radiante. Ela sangrava luz.

— Você foi meu último milagre, Dário... Minha ruína e minha salvação.

Dário sentia seu coração apertar, seus olhos marejarem.

— Está destinado à ruína, sim. Mas a ruína não precisa ser o fim. Seus olhos o fitaram intensamente. — Não permita que o Céu dite seu caminho. Nem os Deuses, nem os Reis, nem eu. Viva como quiser. Ame quem quiser. Lute e sobreviva. Minha vontade... é que seja livre.

A visão desapareceu.

E com ela, veio a dor.

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Dário afundava, engolido pelas profundezas da Piscina do Despertar. O mundo ao redor desaparecia, restando apenas dor.

Mas não uma dor comum.

Cada célula ardia como se fosse consumida por chamas negras e douradas. Seus ossos estalavam, se quebrando em milhares de fragmentos, apenas para se reconstruírem com uma densidade nova, mais pura, como se moldados por forças além do entendimento humano. Sua pele se dilacerava e se refazia, como casulos se rompendo. Sua alma gritava, sendo rasgada em véus de luz e sombras, reescrita por uma mão invisível.

A Energia Áurea se fundia à essência deixada por Seraphina, e ambas envolviam seu corpo como um útero cósmico, gestando algo novo.

Não era apenas um despertar.

Era um renascimento.

Sua estrutura física se desfez completamente e foi reconstituída com base na matriz do Corpo Primordial de Seraphina porém adaptado à alma singular de Dário. Veios de energia dourada e negra se formaram sob sua pele, pulsando como raízes vivas. Seus meridianos se ampliaram, multiplicando-se em complexidade. Órgãos novos nasceram em silêncio, ligados a centros de poder espiritual. Seu coração espiritual foi refinado, cercado por uma espiral dupla de luz e trevas.

Um rugido ancestral percorreu o lago.

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Do lado de fora, Caelenna, Garron e Velkara mantinham-se em alerta. O ar ao redor oscilava como se o espaço estivesse em convulsão.

— Está demorando mais do que o normal... — rosnou Garron, os olhos faiscando.

— Um físico como o dele exige mais que força. É preciso... se despir da própria humanidade. disse Caelenna, a voz tensa. Ela já havia se erguido e, sem perceber, se aproximava do lago.

Velkara continuava impassível, mas suas mãos estavam fechadas com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos.

— Algo está... diferente murmurou. — A essência do lago está se dobrando.

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Então, o céu tremeu.

Uma explosão de pura energia sacudiu a terra. Uma coluna de luz e sombras irrompeu do lago como um pilar cósmico, rasgando nuvens, fazendo as árvores ao redor se curvarem como se prestassem reverência.

Pedras flutuaram. O tempo pareceu hesitar.

A Energia Áurea no ar enlouqueceu, vibrando entre o sagrado e o profano. O redemoinho de caos se expandiu e, por um instante, parecia que o mundo seria tragado.

Lorde Theon surgiu, o olhar alarmado.

— Selamento imediato! — rugiu.

Com um gesto, selos dourados cobriram o solo, formando runas em espiral ao redor do lago. Um campo de contenção envolveu a área, protegendo os arredores de um colapso dimensional iminente.

— Ele... está vivo. — murmurou, com um suspiro contido.

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No fundo do lago, Dário pairava.

Mas não era mais o mesmo.

Sua pele irradiava linhas brancas e negras que se moviam como tatuagens vivas runas primordiais que pulsavam com consciência. Seu corpo emitia uma presença quase divina, mas desequilibradamente humana. Era uma anomalia, um milagre, um paradoxo vivo.

A Energia Áurea fluía para ele como um rio desgovernado, mas ao tocá-lo, se ordenava. A herança de Seraphina se dissolvia dentro de seu núcleo, reconstruindo o físico com delicadeza feroz, selando memórias, emoções e poder.

Seus olhos se abriram, dois sóis invertidos, um dourado, outro negro, girando em harmonia.

O Reino de Dário avançava sem resistência:

Aprendiz Marcial 5... 6... 7... 8... 9... 10 (Perfeição).

Guerreiro Marcial 1... 2... 3... 4... 5.

Então, silêncio.

Ele emergiu do lago como um fantasma recém-nascido. Cada passo sobre a água era como o de um deus desacorrentado. O local ao redor parecia devastado, mas o lago... intocado. Sereno. Como se o respeitasse.

Quatro figuras o aguardavam na margem.

Theon. Garron. Caelenna. Velkara.

Ele os olhou, ainda sentindo o peso de seu novo corpo cada respiração era um trovão interno.

Theon foi o primeiro a romper o silêncio.

— ...Você sobreviveu.

Dário assentiu, a voz firme como aço, mas carregada de emoção:

— Ela me salvou. Minha mãe... Seraphina.

Theon baixou a cabeça, olhos marejados.

— Então... você a viu.

— Não só vi. respondeu Dário, tocando o próprio peito. — Eu a senti. Ela está aqui... em mim.

Caelenna deu um passo à frente, maravilhada.

— Esse poder... é diferente de tudo que já testemunhei. Ele não corrompe, não purifica. Ele... redefine.

Velkara finalmente falou, sua voz baixa, mas afiada:

— Luz e trevas... em simbiose perfeita. Não como opostos, mas como amantes que dançam. Você... foi forjado para isso.

Dário sorriu de canto, ainda trêmulo, mas firme:

— Um novo começo, uma nova história, e que o mundo abra as portas para uma nova Era.

Theon assentiu. Sua voz era reverente, carregada de orgulho e pesar.

— Que os deuses tremam. Que os reis se curvem. Que o mundo assista... enquanto você pisa onde nenhum filho da terra deveria.

Dário fechou os olhos. E, numa prece silenciosa, murmurou:

— "Viva como quiser, meu filho..."

E, pela primeira vez em todas as suas vidas, seja como Zai ou como Dário, ele se sentia inteiro.

E naquele momento, ele entendeu. Não havia mais dúvidas. Ele era a síntese de tudo o que sua mãe havia sido, e agora ele estava pronto para reescrever o próprio destino.

A jornada dele estava apenas começando. E o mundo que o conhecia... logo entenderia o preço de subestimá-lo.

...