Depois do Fim, Só Eu

— Quando a Terra soltou seu último suspiro… eu ainda estava acordado.

O fim do mundo não foi como nos filmes.

Não houve explosões dançando no céu, nem gritos de multidões em pânico tentando escapar. Não teve heróis. Nem vilões.

Só teve… silêncio. Um silêncio tão espesso que engasgava.

Acordei em mais um dia igual aos outros. Talvez fosse terça. Talvez fosse o fim do tempo.

O céu estava tingido de um vermelho escuro, como se o sol tivesse sangrado antes de morrer.

A poeira cobria tudo, como um véu de luto sobre um cadáver que ninguém teve coragem de enterrar.

Minha casa — se é que posso chamar assim — fica no topo de um prédio desmoronado. Os andares superiores caíram como cartas mal empilhadas, e os inferiores estão vazios, ecoando lembranças que não são minhas.

Subo por escadas improvisadas, tábuas sobre vigas, ferro sobre concreto.

Durmo entre placas de cimento, enrolado em cobertores que roubei de uma escola abandonada. Tem desenhos de unicórnios. Irônico.

Choveu ácido ontem à noite. Deixei baldes do lado de fora, com sorte eles filtram algo bebível.

A água tem gosto de ferrugem e de fim. Mas é água.

Hoje saí cedo. Fui caçar comida.

Levo meu bastão com pregos — companheiro de jornada, guarda-costas e confidente. Um pedaço de madeira com dentes. Mas nunca precisei usá-lo em nada vivo. Só em portas. E, às vezes… em mim mesmo, quando o vazio aperta demais.

As ruas estão engolidas por raízes que explodiram do solo, como se a Terra tivesse acordado furiosa. Árvores retorcidas, com cascas que parecem carne, tomaram conta das calçadas. Carros derretidos descansam como carcaças. O ar fede a metal velho e lembrança ruim.

Passei por uma vitrine quebrada onde antes havia uma loja de roupas. Um manequim ainda estava lá. Sem cabeça. Pendurado pelos braços. Por um segundo, pensei que ele tinha se mexido.

Vi um rato.

Fiquei parado olhando ele correr entre os escombros. O som das patinhas no chão rachado foi a coisa mais viva que ouvi em semanas.

Corri atrás dele.

Dei a volta em um ônibus tombado. Me arranhei em uma placa de ferro.

Quase consegui pegá-lo.

Quase.

— Quase, hein, senhor rato — falei, ofegante, rindo baixo.

Sim, eu falo com ratos.

E com postes.

E com um ursinho de pelúcia chamado Davi, que achei preso no para-brisa de um carro destruído. Ele esta sem cabeça — perdeu ela em uma de nossas explorações por comida. Tentei recuperá-la, mas caiu em um lugar difícil. Mesmo assim, ele sobreviveu, e agora é meu confidente pessoal. Escuta melhor que muita gente que conheci.

Essa é a parte do dia em que eu ainda rio. Depois… tudo desce.

Voltei pra casa quando o céu ficou cinza de novo.

O silêncio é mais denso ao anoitecer. Parece respirar nas frestas das paredes, nas rachaduras do chão, como se o mundo morto ainda tivesse pulmões.

Entro no abrigo com o cuidado de um ladrão, mesmo sem nada pra roubar. Os sons dos meus próprios passos são altos demais. Invasivos. O eco do bastão batendo no chão me assusta mais do que consola.

Tem uma parede no meu abrigo. A parede dos rostos.

Desenhei nela com carvão, com sangue seco, com ferrugem raspada de portas velhas. Rostos inventados. Pessoas que criei pra não enlouquecer. Ou talvez… pra organizar a loucura.

A Júlia me ouve. Tem olhos grandes, curiosos. Ela sorri até quando falo besteira.

O Pedro sempre critica. "Devia ter ficado mais tempo no mercado", "Você esqueceu o galão de água", "Vai morrer assim, seu idiota". Ele parece meu pai… se eu lembrar de como ele era.

A Sra. Marga cozinha. E reclama. Reclama do frio, da fumaça, do silêncio.

Hoje sentei com eles.

— Fui caçar milho. Quase peguei um rato. — Sorri, jogando a mochila vazia no canto.

Eles riram. Ou eu imaginei que riram. Talvez eu mesmo tenha feito a voz da Júlia rindo. A voz do Pedro me xingando. A da Sra. Marga mandando eu lavar as mãos com álcool que já acabou.

Eu ri com eles.

Depois chorei.

Não sei o que é mais doloroso: o fato de estarem mortos ou o fato de nunca terem existido.

Me enrolei nos cobertores de unicórnio. Tentei dormir. Mas o sono não vem fácil nesse mundo.

O coração bate devagar, pesado. A cada batida, parece gritar: "Você ainda tá aqui."

Mas e se ele parar? E se for hoje? E se eu for dormir e só não acordar?

Às vezes, eu acho que é isso que quero.

Outras vezes, eu me levanto pra ver se a lua ainda existe. Não vejo estrelas faz meses. Só o vermelho. Só a fumaça. O céu parece doente. Um animal ferido esperando a morte.

Flashs me vêm na mente.

Uma mulher de cabelos brancos. Gritando meu nome. Ou chorando?

Um homem de jaleco, desesperado: "É você ou o mundo."

Uma criança pequena desenhando numa parede colorida. Ela ri. Me abraça. E depois vira poeira.

Não sei se são lembranças. Ou sonhos.

Talvez eu só tenha assistido isso num filme antes do mundo apagar.

Mas aquela voz, a da mulher… é nítida.

Ela grita: "Noah!"

E é assim que eu sei.

Meu nome é Noah.

Ou era.

Hoje… eu sou Elian.

E não importa quem eu fui.

Importa quem eu sou agora:

O último.

Ou talvez o primeiro.

De manhã, acordei com os olhos grudados. A boca amarga. O silêncio, claro, ainda ali.

Engraçado como o mundo morreu… mas o silêncio sobreviveu.

Peguei minha mochila. O bastão.

Desci pelas escadas de concreto com cuidado. Cada passo podia ser o último se o piso desabasse. Já caí uma vez. Rasguei a perna. Fiquei dois dias com febre e pensei que seria meu fim.

Mas não foi.

Não ainda.

Hoje fui até uma estação de metrô soterrada. Não pra buscar comida — já sei que não tem.

Fui buscar livros.

Livros são como pessoas congeladas no tempo. Mesmo depois do fim, eles continuam contando histórias. Histórias de mundos melhores. Ou piores. Mas nunca tão solitários.

Passei por ratos mortos. Por pichações antigas. Por mensagens desesperadas:

"NÃO ENTRE."

"NÃO HÁ SALVAÇÃO."

"ME PERDOE, MÃE."

Eu entrei mesmo assim.

Lá dentro, no meio de entulho, encontrei algo diferente. Um diário. Capa azul, mofada.

Na contracapa: "Ana, 10 anos. Se achar, não leia. Ou leia. Sei lá."

Sentei ali mesmo e comecei a folhear. As páginas estavam úmidas, mas legíveis.

Ana falava de um cachorro chamado Lume. De uma avó que fazia pão com cheiro de canela. De um dia em que choveu forte e o teto caiu na escola, e ela achou isso "o máximo".

Falava de medo.

Falava de esperança.

Falava de alguém que ela chamava de "irmãozão".

Li em voz alta, mesmo com a garganta seca.

Senti um nó no peito.

Chorei.

Porque pela primeira vez em muito tempo… aquelas palavras não eram minhas.

Não eram inventadas.

Eram de alguém que existiu.

Alguém que sentiu.

Que viveu.

Voltei pro abrigo antes do pôr do sol.

Preparei um fogo fraco com cacos de madeira e plástico — fede, mas queima.

Escrevi no chão com carvão:

"HOJE FOI UM DIA BOM. NÃO MORRI."

Assinei com meu nome.

Noah.

Ou Elian, se preferir.

Antes de dormir, rezei.

Não sei pra quem.

Talvez pro rato.

Pra Ana.

Pro cachorro Lume.

Pra Júlia, Pedro, Sra. Marga.

Pra mim.

O silêncio voltou.

Mas antes de fechar os olhos, eu juro…

Por um segundo…

Ele parecia respirar.