A Voz Que Desenterrou Minhas Memórias

No meio das ruínas, Elian encontra algo que não deveria mais existir: uma voz. Gravada por uma criança chamada Ana, ela fala de saudade, medo… e de um “irmãozão” que a fazia rir. Ele não sabe se era ele. Ou se apenas queria ser. Mas aquela voz — doce, viva, real — quebra o silêncio do mundo… e o que resta do seu coração.

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O som me acordou.

Não era um grito. Não era uma explosão.

Era… um “clinc”.

Metálico. Breve. Solitário.

Como uma colher caindo no chão de uma cozinha abandonada.

Abri os olhos devagar, como se cada pálpebra pesasse o dobro de mim.

O teto rachado me encarava de volta, impassível, com a paciência fria de quem já viu o fim.

Levantei o tronco. Ouvi. Nada.

— O mundo arranha as paredes às vezes… — sussurrei pra mim mesmo. — Só pra lembrar que ainda tá aqui.

Me sentei entre os cobertores de unicórnios, agora úmidos. Cheiravam a mofo e saudade.

Esfreguei os olhos, grudados de areia e cansaço. Cuspi no chão. A boca amarga como ferrugem dissolvida em desespero.

Levantei com cuidado. A perna ainda dói. Sempre dói. Desde aquela queda.

Pisei no chão rachado do meu abrigo e caminhei até o canto onde desenhei minha pequena multidão.

A parede dos rostos me esperava. Sempre espera.

Júlia estava quieta.

Pedro franzia a testa como sempre, pronto pra me chamar de burro.

A Sra. Marga parecia mais apagada que o normal. Talvez a tinta esteja desbotando. Talvez minha memória esteja.

— Bom dia. Dormiram bem?

Silêncio. Um silêncio que eu preenchi com as vozes deles na minha cabeça.

Fui até minha pilha de mantimentos. Nada novo. Peguei a última lata de milho.

Os grãos estavam macios demais. Um deles tinha uma mancha esverdeada. Joguei fora.

Engoli os outros com esforço. Cada mordida era um lembrete de que ainda estava vivo.

— Café da manhã dos campeões, hein, Davi? — falei pro ursinho sem cabeça, sentado sobre uma pilha de trapos como um rei mutilado.

Ele não respondeu. Claro que não.

Escrevi no chão com carvão: "O que me fez acordar hoje?"

Fiquei olhando aquela pergunta por alguns minutos.

Depois respondi embaixo: "Talvez um som. Ou o medo de nunca mais ouvir nada."

Vesti meu casaco de couro rasgado. Peguei o bastão com pregos.

A mochila tava mais leve do que deveria. Sinal de que eu precisava sair.

Tinha um destino em mente.

Na parede de um vagão antigo, semanas atrás, vi um mapa feito com canetinha. Alguém marcou uma escola com um círculo vermelho.

“Turma da Esperança”, dizia a anotação ao lado.

Talvez fosse só uma piada.

Mas hoje... eu precisava de uma piada nova.

Antes de sair, me despedi.

— Se eu não voltar, acendam a luz. Mesmo que ela não exista.

Desci pelas tábuas com o cuidado de sempre. Um passo de cada vez.

O mundo lá fora me esperava — ou o que restou dele.

As ruas estavam úmidas, o céu derramando cinza como lágrimas vencidas.

Passei por carros fundidos à terra, árvores que pareciam estar gritando em silêncio.

O ar tinha gosto de luto.

Vi um poste com fios retorcidos e falei com ele:

— Já sonhou hoje?

Ele também não respondeu. Mas ouvi, no fundo da alma, uma ideia:

Hoje, talvez, eu encontre algo que fale comigo.

A cidade parecia respirar através da fumaça.

Cada esquina era um sussurro. Cada sombra, um eco do que foi.

Caminhei pelas veias mortas de concreto com os olhos baixos, como se o chão pudesse me engolir a qualquer momento.

E talvez pudesse.

Levei quase uma hora até alcançar o ponto marcado no velho mapa.

A escola estava ali.

Ou o que sobrou dela.

Era um esqueleto de ferro e tijolo, engolido por raízes e musgo acinzentado.

O nome na fachada ainda resistia, quase ilegível: Escola Municipal Esperança Nascente.

Sorri torto.

— Que ironia.

Os portões estavam tombados. As janelas, quebradas como ossos partidos.

O silêncio aqui era diferente.

Não o silêncio absoluto do mundo morto.

Era um silêncio… vigiado.

Como se memórias ainda rondassem as salas e corredores.

Entrei com o bastão firme nas mãos.

Pisos rachados.

Giz quebrado no chão.

Um quadro-negro onde alguém escreveu a frase:

"Amanhã teremos bolo!"

O amanhã nunca chegou.

Passei por salas vazias, cheias de cadeiras pequenas e mochilas empilhadas.

Vi um caderno aberto, com desenhos infantis:

Um cachorro gigante. Uma menina sorrindo. Um céu azul.

Toquei a página com os dedos sujos.

— Isso... foi real.

Em uma das salas, encontrei o que parecia uma sala de informática. As máquinas estavam mortas. Algumas queimadas.

Mas no fundo, entre monitores caídos, havia algo diferente.

Uma caixa metálica.

Cinza. Pequena.

Tinha uma luz vermelha apagada. Um botão solitário.

Aproximei-me com cautela, como se ela pudesse morder.

Na lateral, alguém escreveu com marcador azul:

"Ana. 10 anos. Para guardar segredos."

Meu coração bateu forte.

Segurei a caixa nas mãos. Era mais leve do que imaginei.

Soprei a poeira. A luz piscou, fraca.

Apertei o botão.

Um chiado.

Depois… uma voz.

— Oi. Meu nome é Ana.

Se você encontrou isso… quer dizer que... bem, as coisas não estão boas, né?

Minha respiração falhou.

— Eu não sei se o mundo acabou mesmo. Mas… aqui a gente se escondeu. Eu, o Lume (meu cachorro), a vovó e o meu irmãozão.

A gente fez essa caixa pra guardar lembranças.

Porque... às vezes o silêncio assusta mais do que os barulhos.

Ela riu. Uma risada pequena, doce, viva.

— Eu gosto de desenhar. E de inventar músicas. Eu queria que você ouvisse uma.

O som de batidas desajeitadas. Uma melodia torta.

Ela começa a cantar.

Errado. Engraçado.

E tão absurdamente humano.

Eu me sentei no chão. A caixa no colo. O coração colado na garganta.

Ana continuou:

— Se você estiver sozinho aí... não fica triste. Tá bom?

Você tá ouvindo minha voz agora. E isso quer dizer que... de alguma forma... eu tô aí também.

Silêncio.

Depois, um último sussurro.

— A gente deixou desenhos nas paredes… na parte de baixo da escola. Onde era a salinha de teatro.

Vai lá.

Leva minha voz com você.

O áudio cortou.

Eu fiquei imóvel por longos minutos.

O ar parecia mais espesso. O mundo mais... presente.

Levantei.

Com a caixa apertada contra o peito, desci os degraus que levavam ao subsolo.

E pensei:

Ela não me conhece.

Mas me falou como se me conhecesse.

Como se estivesse me esperando.

O porão da escola cheirava a mofo, tinta velha e silêncio úmido.

As escadas que levavam até lá estavam cobertas por raízes e poeira grossa. Cada degrau estalava sob meus pés como se protestasse por ainda carregar peso.

Desci devagar, com a caixa de Ana junto ao peito.

Havia algo reconfortante nela, como segurar a mão de alguém que já partiu, mas que ainda sussurra: “Estou aqui.”

Cheguei a uma porta de madeira lascada, com a maçaneta enferrujada pendendo por um fio.

Empurrei com o ombro.

Ela gemeu.

Lá dentro…

A parede me acertou como um soco.

Desenhos.

Dezenas. Talvez centenas.

Feitos com lápis de cera, tinta, carvão, até marcas de mão.

Um céu estrelado sobre uma cidade inteira. Um cachorro gigante brincando com uma menina.

Corações. Borboletas. Uma casa com uma janela iluminada.

Um menino de cabelos escuros com uma lanterna na mão.

E palavras rabiscadas com caligrafia infantil:

"Pro meu irmãozão."

A sala inteira era um mural da esperança de uma criança.

E no centro, desenhada com mais cuidado, havia uma figura de vestido branco, com cabelos longos e uma expressão serena.

Ela segurava as mãos da menina.

Acima delas, uma frase tremida:

"Ela disse que não estamos sozinhos."

Meus olhos arderam.

Engoli seco.

Toquei o desenho com os dedos sujos, tentando entender como algo tão pequeno podia pesar tanto.

Sentei no chão. A caixa de Ana ao lado.

Aquela sala parecia viva.

Como se respirasse memórias.

E então…

Vieram os flashes.

De novo.

Uma mão segurando a minha no escuro.

Uma risada infantil que fazia meu peito vibrar.

Um nome gritado em desespero.

“Noah!”

A imagem da menina da lembrança.

Cabelos bagunçados. Sorrisos de tinta no rosto.

Ela… era Ana?

Pressionei as têmporas. O coração batia como tambor de guerra.

A voz dela, no gravador, parecia se repetir na minha mente.

"Se você estiver sozinho aí… não fica triste, tá bom?"

Foi aí que percebi:

O que eu sentia não era só nostalgia.

Era reconhecimento.

Aquela garota...

Aquela voz…

Aqueles desenhos...

Ela me conhecia.

Ou, talvez…

Eu a conheci primeiro.

Levantei, tonto, como se tivesse emergido de um sonho que sangrava realidade.

Olhei ao redor uma última vez, gravando cada traço na memória.

Peguei a caixa, abracei contra o peito e sussurrei:

— Obrigado, Ana.

E foi naquele instante, naquele santuário colorido enterrado no coração de uma cidade morta…

Que senti algo pela primeira vez em muito, muito tempo.

Vontade de lembrar.