Capítulo 1 – Antes da Neve Cair

A aldeia de Yúnshān era pequena, mas ninguém a chamava de fraca.Escondida entre montanhas eternas e cercada por neblina nas manhãs, parecia viver fora do tempo.Nem muito rica, nem muito pobre. Nem muito feliz, nem miserável. Apenas… viva.

O tipo de lugar onde todo mundo conhece o nome do padeiro, e o nome da filha do padeiro, e o apelido do cachorro da filha do padeiro.

Klaus odiava isso.

"Por que você não fica quieto, só hoje?" — perguntou sua mãe, pela terceira vez naquela manhã.

"Porque se eu ficar quieto, eles vão achar que morri. E alguns vão comemorar."

Ela suspirou.

"Você vai fazer a entrega pro velho Wei ou vai continuar falando besteira?"

Klaus pegou a cesta de arroz, chutou uma pedrinha no caminho e saiu pela porta.

Era assim todos os dias.

O velho Wei morava perto do templo. Era cego de um olho, ranzinza de dois, e conhecido por gritar com qualquer criança que respirasse alto demais.

Klaus não só respirava alto — ele gostava de provocar.

Chegou na porta e bateu três vezes.

Nada.

Bateu mais duas.

"Wei, se você não abrir, eu vou entrar e comer tudo."

A porta abriu meio segundo depois. O velho estava lá, cara de quem dormia pior que bode em pedra molhada.

"Você de novo."

"Surpresa! Vim trazer arroz e charme juvenil."

O velho resmungou, pegou a cesta, e deu uma moeda a menos que o combinado.

"Isso tá errado."

"E o mundo também. Você se adapta ou morre cedo."

Klaus deu as costas e foi embora antes de ouvir a resposta.

No caminho de volta, cruzou com Yan, a ferreira da vila. Alta, forte, cheia de cicatrizes nos braços e uma gargalhada que dava medo em cavalo.

"Klaus! Vai crescer ou continuar desse tamanho até os 80?"

"Tô economizando altura. Uso tudo no cérebro."

Ela riu. De verdade.

"Você é igual sua mãe. Fala pouco, mas quando fala, acerta."

Klaus não respondeu. Só andou.

Esse tipo de elogio doía mais do que ajudava.

A casa dele era simples: duas janelas, telhado de pedra, uma estufa pequena com flores roxas que nunca morriam.Ali vivia Silan, a mãe de Klaus. Ninguém sabia de onde ela veio. Só que chegou com o filho no colo, sem família, sem passado, e com olhos que pareciam ver mais do que mostravam.

Ela ensinava medicina para os anciãos, cuidava das plantações medicinais, e falava pouco sobre tudo que importava.

À noite, Klaus a viu limpando o altar da casa.

Havia um talismã de gelo quebrado ao lado de um espelho rachado.Sempre os dois. Sempre juntos.

"Mãe... o que é aquilo?"

Ela parou. Limpou a mão no pano. Olhou pra ele.

"Coisas que você não precisa carregar agora."

"Mas eu vou, né?"

"Você vai. Só não agora."

No dia seguinte, o céu amanheceu claro. Azul demais. Calmo demais.

Klaus acordou antes do galo cantar.

Saiu da cama, foi até a beira do rio e encostou os dedos na água.

Não por sede.

Só pra ver o que acontecia.

Ela congelou.

Não inteira. Só um pedacinho. Um círculo ao redor da mão dele.

Ele sorriu.

"De novo."

O que ninguém sabia — nem os vizinhos, nem os anciãos, nem o velho Wei — é que Klaus estava no Nível 5 do cultivo, o último da fundação básica.A maioria das crianças da vila nem sequer tinha Qi ativo ainda.

Mas ele já sentia o gelo dançar por dentro.Como se o mundo sussurrasse pra ele parar de esconder.

Ele não ouvia.

Mas sentia.

Mais tarde, enquanto ajudava na estufa, ouviu a mãe conversar com a mestra Mei, do templo.

Elas falavam baixo. Quase sussurrando.

"Você precisa contar pra ele.""Não ainda.""E quando for tarde?"

Silan não respondeu.

Na praça, três crianças brincavam de duelo com varas de bambu.Um deles — Ren, filho do ferreiro — se achava o herói de alguma história.

"Se eu fosse um cultivador, já tinha matado um bando de bestas espirituais."

Klaus passou e não se aguentou.

"Você não consegue matar nem piolho com essas orelhas de porteiro de templo."

Ren jogou a vara.

Klaus desviou.

Com estilo.

"Tenta de novo. Ou desiste de ser idiota e só aceita que eu sou melhor."

Ren avançou.

Klaus pisou de lado, girou o corpo e encostou dois dedos no ombro dele.

O menino congelou. Literalmente.

O braço dele travou por dois segundos.

Depois voltou.

"O que foi isso?!"

"Frio. Da alma."

Klaus saiu andando.

Ren nunca mais tentou.

Naquela noite, a mãe colocou três velas no altar.

Klaus olhou. Duas estavam acesas. Uma, apagada.

"Por que sempre deixa essa última sem fogo?"

"Porque ela não representa alguém que partiu."

"E sim?"

Ela olhou nos olhos dele.

"Alguém que ainda precisa voltar."

Ele não entendeu.

Mas o frio nas pontas dos dedos voltou.

Nos dias seguintes, o frio chegou mais cedo.

Nada absurdo. Mas quem morava há tempo suficiente em Yúnshān sabia que o vento não devia cortar daquele jeito em pleno fim de outono.

Yan, a ferreira, comentou alto:

"Ou os deuses tão com febre ou tem cultivador bagunçando o ar por perto."

Ninguém levou a sério. Ainda.

Klaus continuava com sua rotina: ajudar na estufa, provocar os velhos, e testar o próprio gelo em segredo.

No quarto, deixava a água de um pequeno frasco congelar e derreter, só com o toque.Sentia o Qi circular nos dedos, nos braços… e, às vezes, sem aviso, formava espinhos de gelo na palma.

A primeira vez que aconteceu, ele escondeu a mão.Na segunda, ele sorriu.

Silan, sua mãe, o observava de longe.Fingia que não via, mas via tudo.

Naquela noite, ela o chamou pra jantar cedo. Coisa que nunca fazia.

Klaus desconfiou na hora.

"Você me chama de educado e me serve arroz? Tá morrendo?"

Ela sorriu de lado.

"Você vai sair da vila um dia, Klaus. Vai ver coisas que eu evitei que você visse."

"Isso é conversa de gente morrendo."

"Não é. É conversa de gente que sabe que o tempo anda mais rápido que a gente percebe."

Klaus largou os hashis.

"O que você sabe que eu não sei?"

Ela o olhou. Longo. Firme. Depois desviou.

"O que você precisa saber... ainda não tá pronto pra ouvir."

"Você vai continuar me dizendo isso até quando?"

"Até o momento certo."

Silêncio.

Depois, ela disse:

"A flor da estufa congelou hoje. Uma que nunca congela."

Klaus não respondeu.

Mas ele sabia.

No dia seguinte, os caçadores da vila voltaram com algo estranho:

"Duas trilhas de pés. Uma de bota grossa. Outra… descalça."

"Descalça?"

"Descalça. Mas afundando na terra. Como se o corpo fosse de pedra."

No templo, a mestra Mei acendeu sete incensos. Normalmente eram três.

Alguns moradores perguntaram por quê.

Ela só disse:

"Prevenção."

Na vila, as crianças ainda brincavam.Os mercadores ainda vendiam.Mas algo no ar estava diferente.

Klaus sentia.

À noite, acordava com a garganta seca e os dedos gelados.

Uma vez, viu um vulto passar do lado de fora da janela.

Saiu da cama. Pé descalço no chão frio. Silêncio.

Quando abriu a porta… nada.

Mas havia gelo.

Gelo onde ele não tinha pisado.

Dois dias depois, o velho Wei não abriu a porta.

Klaus foi levar o arroz. Bateu três vezes. Quatro.

Nada.

Arrombou a porta com um empurrão.

Encontrou o velho sentado. Vivo. Mas quieto.Os olhos arregalados. A boca tremendo.

"Ele... ele olhou pra mim."

"Quem?"

"O que não devia ter forma."

Klaus ficou parado por um segundo.

Depois saiu. Devagar.

Ele foi direto pra casa.A mãe estava sentada no altar, olhos fechados.

"Mãe."

Ela não respondeu.

"Tem coisa errada lá fora. Gente vendo o que não devia. E eu tô sentindo o gelo responder."

Ela abriu os olhos.

"Você precisa sair da vila, Klaus."

"O quê?"

"Você vai entrar em uma seita. Vai se misturar. Vai ficar em silêncio."

"E você?"

"Eu fico."

"Não."

"Sim."

"Você quer me treinar? Me preparar?"

"Quero te salvar."

Klaus ficou em silêncio.

A mãe dele… estava com medo.

E isso era novo.

Na manhã seguinte, a neve caiu.

Em pleno outono.

Sem aviso. Sem vento.

Só caiu.

Branca. Suave. Quieta.

"É bonito." — disse Klaus.

A mãe olhou o céu.

"É presságio."

No mercado, a velha Hua viu um homem encapuzado parado na entrada da vila.Ele não falava. Não se movia.

Só observava.

Klaus o viu também.

Não disse nada.

Mas o frio dentro dele apertou.

Naquela noite, a estufa congelou inteira.

As flores roxas quebraram como vidro.

Silan não disse nada.

Só fechou a porta.

E pegou o espelho rachado e o talismã de gelo.

A neve não parou no dia seguinte.

Era fina, delicada — mas constante.

Cobria telhados, campos, as pedras da estrada.Mas o mais estranho: não derretia.

Mesmo ao meio-dia, sob sol direto, ela permanecia intocada.

Klaus reparou nisso enquanto observava a praça.Yan, a ferreira, passou correndo para cobrir a fornalha com uma lona.

"Se isso continuar, vai matar todas as sementes antes do tempo."

"Você acha que é natural?"

Ela parou, olhou pra ele com um olho só (o outro sempre fechava quando ficava séria).

"Você acha?"

Ele não respondeu.

No fim da tarde, Silan trancou a casa por dentro.

Acendeu quatro velas — as três de sempre e uma nova, azul.

Klaus entrou devagar.

"Você vai me contar agora?"

Ela estava sentada no chão, na frente do espelho rachado.

"Há muitos anos, um clã com afinidade com o gelo foi caçado."

Klaus parou.

"Por quê?"

"Porque aprenderam a roubar técnicas. Não copiar. Roubar. Tomar da alma de outros cultivadores. Adaptar. Moldar. Fazer melhor."

Ela olhou pra ele.

"E um deles... fez isso com o gelo."

Silêncio.

"Essa pessoa era você?"

Ela não respondeu de imediato.

Depois disse:

"Essa pessoa era sua mãe. E sua sentença foi a morte."

Klaus piscou.

"Mas você tá viva."

"Estou. Porque escondi meu nome. Escondi minha linhagem. Escondi você."

O frio no ar pareceu real.

"Então quem é o homem parado na entrada da vila?"

Silan fechou os olhos.

"Alguém que veio lembrar o mundo de que eu devia estar morta."

Na mesma noite, dois jovens desapareceram da vila.

Encontraram só os calçados deles, cobertos de gelo seco.

A mestra Mei subiu ao templo com trinta incensos.Trinta.

Klaus sentiu o gelo nos ossos.

Mas não era medo.

Era raiva antiga, que ele nem sabia que tinha.

Silan começou a ensinar símbolos a Klaus.Rúnicos. Velhos. Cortados em ossos.

Ela dizia que eram "selos do norte", mas os olhos dela diziam mais.

Diziam que eram proibições. Proteções.

"E se eu ativar errado?"

"Você congela o próprio coração. Literalmente."

"Legal."

"Não."

Do outro lado da vila, o homem encapuzado foi visto pela terceira vez.

Ele não entrava.

Só ficava ali.

Esperando.

Alguns diziam que era um cultivador vagante.

Outros... que era um caçador de linhagens.

Silan sabia.Klaus também.

Naquela madrugada, Klaus sonhou com gelo cobrindo a vila inteira.

Não o gelo dele.

Outro.

Mais escuro. Mais grosso. Sem vida.

Acordou suando frio.

Foi até o altar.

A vela azul ainda queimava. Mas baixa.

A mãe não estava.

Saiu pela janela, seguiu a trilha de neve até o topo da estufa destruída.

Lá, Silan estava sentada.

Ela não o olhou.

"Você vai sair daqui em dois dias. Uma comitiva da Seita das Nuvens Cortantes vai passar. Você vai com eles."

"E você vai ficar?"

"Eu sou o que ele veio buscar."

"Eu sou você."

Ela virou.

"Não. Você é o que veio depois. O que pode fazer diferente."

Klaus apertou os punhos.

"Então me treina de verdade."

"Já estou treinando."

"Não com palavras."

"Treinar você agora é te empurrar pro abismo. Ainda não."

Ele ficou ali. Em pé. Parado.Enquanto a mãe se levantava e desaparecia na neblina.

No dia seguinte, o gelo começou a surgir embaixo da terra.

As raízes das plantações quebravam.

Os peixes do rio apareceram mortos, congelados por dentro.

E o homem encapuzado… sorriu pela primeira vez.

A comitiva chegou antes do previsto.

Três cultivadores montados em bestas-serpente cruzaram os portões da vila no fim da manhã.Vestiam azul-acinzentado, o símbolo das Nuvens Cortantes no ombro — uma espiral quebrada.

O que ia à frente era jovem, mas com postura de veterano.Tinha olhos semicerrados, uma espada curta nas costas e um humor enterrado a dois metros.

"Esta é Yúnshān?" — ele perguntou a ninguém.

A velha Hua tentou responder.

"Sim, senhor cultivador. A vila está honrada..."

"Só viemos pegar um nome. Silan."

A vila congelou — e não pelo clima.

Klaus viu tudo da varanda.O olhar dele não estava nos cultivadores.

Estava no homem encapuzado.

Ele não recuou.Nem moveu.

Mas quando a comitiva chegou… ele sorriu de novo.

Silan apareceu na praça, com o cabelo preso e o olhar firme.

"Não era pra vocês virem agora."

O líder da comitiva estreitou os olhos.

"Não estamos aqui por você. Estamos aqui pelo garoto."

"Ele não vai com vocês."

"Foi você mesma que pediu. Seita das Nuvens Cortantes. Recrutamento especial. Linhagem oculta."

"Era outro plano. Outro tempo."

"O tempo acabou."

Klaus chegou devagar.

Parou ao lado da mãe.

"Se eu for, você morre?"

"Se você ficar, eu morro."

"Se eu lutar?"

Ela olhou pra ele como nunca antes.

Com medo.

"Se você lutar agora... você congela junto com tudo."

O líder da comitiva se aproximou.

"Garoto. Nome?"

"Klaus."

"Está no nosso pergaminho. Seu Qi é registrado como elemental puro. Gelo. Nível 5. Isso não pode estar em uma vila comum."

Klaus olhou pra mãe.Depois olhou pro chão.

"E se eu não quiser?"

"A escolha não é sua."

Foi então que o céu… mudou.

Não ficou escuro.

Ficou pálido.Como se o sol tivesse sido sugado por alguma coisa.

E então vieram os sons.

Primeiro, os sinos do templo tocando sem vento.Depois, os cães da vila chorando ao mesmo tempo.

E por fim… o som de gelo estalando.

Não no chão.

No ar.

O encapuzado deu um passo.

E sumiu.

Não caminhou.Não voou.

Simplesmente desapareceu.

E reapareceu no centro da vila.Entre Silan e os cultivadores.

Com um sorriso.

"Finalmente."

O Qi dele era opaco.Sem assinatura.Sem cheiro.

Mas tudo em volta congelava com a presença.

Yan correu pra pegar a marreta.

Congelou no segundo passo.

O velho Wei caiu ajoelhado — não por ataque, mas por pura pressão espiritual.

"Silan." — o encapuzado disse. — "Você devia ter morrido junto com os outros."

Silan sacou o talismã.

"E você devia ter ficado no sul."

"Eu segui o cheiro do seu filho."

Klaus avançou um passo.

A mãe bloqueou com o braço.

"Não."

"Eu posso."

"Você ainda não deve."

O encapuzado riu.

E então ele atacou.

Não usou espada.

Não usou selo.

Só estendeu a mão.

O ar tremeu.O chão se partiu.As casas ao redor foram cobertas por uma camada fina de gelo negro.

O gelo não era natural.

Era vivo.

Silan pulou na frente.

Fez um selo com uma das mãos, mordeu o próprio polegar e gritou:

"Ruptura de Gelo Interior – Nascimento da Barreira Azul!"

Um escudo circular surgiu no ar.

Mas rachou ao primeiro impacto.

Ela tossiu sangue.

"Vai." — ela disse, encarando Klaus. — "Agora."

Ele hesitou.

Mas então sentiu.

A vila queimando.

Não de fogo.

De frio.

O tipo de frio que não respeita ninguém.

O líder da comitiva tentou intervir.

O encapuzado apontou dois dedos.

O peito do cultivador congelou por dentro.O homem caiu. Rígido. Morto sem marca.

O segundo correu.

Morreu também.

O terceiro hesitou.

Klaus o encarou.

"Leva." — disse Silan. — "Agora."

A mão de Klaus tremia.

Mas não por medo.

Por raiva.

O frio dentro dele girava.

A flor invisível abriu a primeira pétala.

Mas ele segurou.

Ainda não.

Ainda não.

A mão da mãe segurava a dele.

"Se você voltar… congela o mundo por mim."

"Eu volto."

Ela sorriu.

E então virou.

E gritou.

"SELO DA RAIZ NEVADA!"

Uma explosão de gelo os separou.

O cultivador da seita agarrou Klaus pela cintura.

"Fecha os olhos."

Klaus não fechou.

Ele olhou pra trás até o último segundo.

Até ver o corpo da mãe se mover.

Até ver a vila começar a ruir.

Até o céu sumir.