O caminho até a Seita levou três dias em besta espiritual.
Klaus não falou nenhuma vez.
O discípulo da comitiva — único sobrevivente — também não.
No primeiro dia, ele tentou puxar assunto:
— "Sei que não faz sentido agora. Mas a seita pode te dar algo. Força, talvez. Propósito."
Klaus respondeu sem olhar.
— "Se quiser se redimir, fica em silêncio."
E ele ficou.
A Seita das Nuvens Cortantes não era como Klaus imaginava.
Não era dourada. Nem bonita.
Era afiada.
Picos de pedra cortavam o céu como lanças congeladas.Túnicas azuis se moviam como fantasmas pelos corredores.E todo mundo — todo mundo — tinha a mesma cara:
"Sou melhor que você. E vou provar quando for conveniente."
Klaus?Nem piscava.
Na entrada, um Élder o recebeu com um olhar vago.Devia ter uns 70 anos, mas com corpo de 40.
— "Nome?"
— "Klaus."
— "Origem?"
— "Morta."
O Élder franziu a testa.
— "Reino?"
— "Nível 5."
O Élder olhou o discípulo da comitiva, que apenas assentiu com um movimento sutil.
— "Alguém vai cuidar dele?"
O discípulo hesitou.
— "Não. Só o trouxemos. Cuidem do resto."
— "Ótimo."O Élder virou para Klaus.— "Quarto leste. Vestiário sul. Refeições no meio-dia. Ninguém vai te dar explicações. Descubra sozinho."
— "Ah. Amor à primeira vista." — Klaus murmurou.
O Élder não entendeu.
Mas Klaus entendeu tudo.
O quarto era pequeno, mas limpo.Uma pedra de meditação, uma janela voltada pro abismo, e uma cama que parecia ter sido feita por alguém que odiava conforto.
Klaus sentou no chão.
Fechou os olhos.
E ficou ali.
Por três horas.
Até a flor do dantian girar sozinha.
No primeiro dia de treinamento, Klaus chegou antes dos instrutores.
Assistiu os outros discípulos se agruparem.
Eram sete.
Dois do Clã Yan. Três de famílias nobres. Dois órfãos.
Todos achavam que eram melhores.
O primeiro a falar foi um garoto com cabelo preso e sorriso torto.
— "Você é o do vilarejo, né? O da vila que congelou?"
Klaus encarou.
— "Você é o que vai falar besteira e se arrepender?"
O grupo riu.
— "Calma, camponês. Aqui todo mundo é igual."
— "Mentira. Alguns são mais idiotas."
O instrutor chegou antes que alguém atacasse.
— "Silêncio."
Mas Klaus já tinha marcado.
E já tinha sido marcado.
A primeira aula era simples: formação de Qi circular.
Basicamente, aprender a mover energia dentro do corpo de forma eficiente, sem perder pelo nariz ou ficar zonzo.
Klaus fazia isso desde os oito anos.
Fingiu errar duas vezes.
Na terceira, o instrutor se aproximou:
— "Você não é tão bom quanto o relatório dizia."
Klaus olhou pra ele com um olho só aberto.
— "Você lê devagar ou só entende metade?"
O instrutor estalou os dedos. Uma pedra voou direto na direção de Klaus.
Ele moveu o pescoço meio centímetro.
A pedra congelou no ar. Caiu em pedaços.
O grupo silenciou.
O instrutor sorriu. Curto. Forçado.
— "Continue fingindo. É melhor assim."
Klaus não respondeu.
Mas o frio na palma da mão não parava de vibrar.
Na refeição, sentou-se sozinho. Ninguém se aproximou.
Exceto um.
Um garoto alto, cabelo desgrenhado, olhar de quem nunca dormia.
— "Jesse."
— "Klaus."
— "Vi o que você fez com a pedra."
— "Tava muito no meio."
— "Você é perigoso."
— "Ainda não. Mas vou ser."
Jesse sorriu.Não aquele sorriso falso de discípulo mimado.
Sorriso de quem entendeu alguma coisa que os outros não viram.
— "Gelo não serve só pra defesa." — disse Jesse.
Klaus levantou a sobrancelha.
— "E você não parece só mais um medroso."
— "Sou o contrário. Só ainda não decidi pra que lado eu vou quando tudo quebrar."
Silêncio.
Eles comeram sem falar mais nada.
Mas alguma coisa entre os dois já tinha nascido.
Não amizade.
Alerta mútuo.
No segundo dia de treinamento, os discípulos foram levados ao Pátio do Vento Cortante.
Um campo aberto, entre rochas afiadas e bandeiras congeladas.Ali, os testes não eram de técnica. Eram de intenção.
O instrutor — o mesmo que quase tomou um bloco de gelo na cara no dia anterior — anunciou:
— "Hoje, duplas. Combate até desistência ou perda de controle de Qi. Sem matar. Se conseguirem."
Alguns discípulos riram. Outros afiaram as mãos.
Klaus bocejou.
— "Quem me der sorte ganha uma cicatriz elegante."
Jesse apareceu ao lado.
— "Duplas?"
— "Já tô vendo o roteiro: eu congelo um, você eletrocuta outro, e depois a gente toma bronca."
— "Não vou pegar leve."
— "Eu nunca peguei."
O instrutor sorteou os pares.
Klaus e Jesse caíram juntos.
Contra dois discípulos do Clã Yan.
Um usava espadas curtas.
O outro... manipulava vento.
Combinação clássica: ataque direto + controle de campo.
Perfeita pra lutas em equipe.
Perfeita pra se sentirem superiores.
— "Vocês são os órfãos?" — perguntou o do vento.
— "Quase." — Klaus respondeu. — "A diferença é que a gente tá vivo."
Jesse não falou. Mas já estava girando o Qi nas mãos.
A luta começou com um disparo de ar. Rápido. Preciso.
Jesse desviou.Klaus caminhou por baixo, como se o ar tivesse dado licença.
O espadachim veio em seguida, mirando no flanco esquerdo de Klaus.
Ele não recuou.
A mão dele se moveu meio segundo antes da lâmina tocar.
O chão sob o espadachim congelou.
O pé travou.
Klaus o girou pelo ombro e jogou no chão.
Sem uma palavra.
O do vento ativou um redemoinho, tentando empurrar Jesse contra as pedras.
Mas Jesse não se moveu.
Ele absorveu parte do vento no próprio Qi.
E, num gesto rápido, liberou como raio curto — direto no peito do inimigo.
O instrutor gritou:
— "Chega!"
Os dois oponentes estavam no chão.Não feridos… mas derrotados.
Klaus estalou o pescoço.
— "Boa movimentação."
Jesse assentiu.
— "Você congelou sem selo."
— "Ele confiou no chão. Eu não."
Os dois saíram andando juntos, sem olhar pra ninguém.
Mas todos olharam pra eles.
E viram algo que não entendiam.
Na hora da refeição, se sentaram lado a lado.
Klaus mexia a sopa com um pedaço de gelo que criou do nada.
Jesse observava.
— "Você congela com pensamento?"
— "Quase. Mas meu corpo sabe antes de mim o que quer fazer."
— "Isso é perigoso."
— "Você é perigoso."
Jesse riu.
— "Eles vão ficar com medo da gente."
Klaus olhou pra frente.
— "De mim, talvez. De você… vão tentar puxar pro lado deles."
— "E de que lado você tá?"
Klaus encarou.
— "Do meu. Mas você pode ficar por perto."
A partir dali, os dois não foram mais vistos separados.
Durante a noite, Klaus treinava no campo externo.Jesse assistia, de cima do telhado.
— "Você não treina técnicas."
— "Eu crio as minhas."
— "Por quê?"
— "Porque as que existem foram feitas por quem não tinha meu gelo."
— "E se você errar?"
— "Eu sangro. Aprendo. E acerto no próximo."
Jesse desceu.
Sentou ao lado.
— "Eu também odeio todos aqui."
Klaus não respondeu.
Mas os dois ficaram ali, quietos.
O frio não incomodava.
O silêncio era confortável.
E a Seita das Nuvens Cortantes começava, sem saber, a abrigar o que viria a ser sua maior ruptura.
A missão era simples: colher Lótus Congelado nos campos do platô norte.Um teste padrão pra avaliar resistência ao frio espiritual e trabalho em equipe.
Klaus odiava trabalho em equipe.
Jesse odiava andar com idiotas.
Foram juntos, óbvio.
Mas não estavam sozinhos.
Três discípulos foram designados pra "observar".
Dois do Clã Yan. Um de um clã menor.E nenhum deles disfarçava o desgosto.
— "Eles se acham demais por ter ganhado um combate em grupo."
— "Raio e gelo. Parece nome de técnica de criança."
— "Vamos ver se sangram igual quando não tem plateia."
Jesse ouviu tudo.
Não respondeu.
Klaus ouviu também.
Sorriu. Mas daquele jeito que não tem humor.
No meio da coleta, quando Jesse se afastou pra buscar uma flor rara, aconteceu.
Klaus ficou sozinho por dez segundos.
Foi o suficiente.
O discípulo do Clã Yan surgiu atrás dele com uma adaga espiritual, Qi girando nos dedos.
— "Dorme aí, prodígio."
Klaus virou antes da lâmina chegar.
Mas não rápido o bastante pra evitar o corte no ombro.
Não recuou.
Não gritou.
Só olhou.
E a temperatura caiu.
O chão congelou sob os pés dos três traidores.
A adaga ficou presa no braço de Klaus — que a segurava com a outra mão.
— "Você devia ter vindo com uma pá. Vai ter que cavar o próprio enterro."
Ele puxou o braço, tirou a lâmina e girou o corpo.
O primeiro golpe de gelo rasgou o ar como chicote.
Pegou o peito do atacante e o jogou três metros pra trás.
Os outros dois hesitaram.
Foi o erro.
Jesse chegou.
A aura de raio dele estourou no chão como trovão contido.
— "Vocês tocaram nele."
Disparou uma linha de choque pelos pés — o raio subiu pelas pernas dos dois discípulos e os derrubou de cara no gelo.
Klaus sangrava.
Jesse puxou uma faixa do próprio casaco e amarrou no braço do amigo.
— "Devia ter congelado a ferida."
— "Queria que doesse."
— "Por quê?"
— "Porque quero lembrar o gosto quando for a vez deles."
Jesse olhou pros corpos desacordados.
— "Eles vão tentar de novo."
— "Então a gente tem que deixar claro."
Naquela noite, voltaram à seita.
Não contaram nada.
Mas os três que tentaram a emboscada…foram encontrados congelados até o pescoço na manhã seguinte.
Sem marcas visíveis.
Sem sinais de luta.
Só o gelo.
E uma linha no chão esculpida por raio.
O instrutor não perguntou nada.
Mas o olhar dele… mudou.
Mais tarde, no topo da torre dos ventos, Klaus e Jesse sentaram sem falar.
O vento cortava.A lua estava baixa.
Jesse quebrou o silêncio:
— "Você já perdeu tudo?"
Klaus não respondeu na hora.
Depois disse:
— "Tudo não. Ainda tenho uma coisa."
— "O quê?"
— "O tipo de ódio que não passa nem quando você vence."
Jesse olhou pra frente.
— "E se um dia alguém quiser tirar isso de você?"
Klaus virou.
— "Você não vai deixar."
— "Nem você."
Silêncio.
Klaus tirou uma faca curta, cortou a palma da mão.
Estendeu.
— "Quer selar isso?"
Jesse hesitou por meio segundo.
Depois fez o mesmo.
Toque de palmas com sangue escorrendo.
A lâmina congelou no centro.
O trovão estalou ao redor.
"Se o mundo virar, eu cubro suas costas.E você cobre as minhas.Até o fim."
— "Até o inferno." — Jesse completou.
O nome deles começou a circular no dia seguinte ao juramento.
Não entre os discípulos.
Entre os Élderes.
— "Eles congelaram três discípulos até o pescoço?"
— "E deixaram um traço de raio que desviou das runas do solo?"
— "Foi aviso."
— "Foi promessa."
No Salão dos Céus Baixos, o Élder Rong recebeu o relatório com um suspiro.Ele era o responsável pelas formações internas, não pelos discípulos.
Mas era paranoico.
E cultivadores como Klaus e Jesse… o deixavam desconfortável.
"Talento demais.Silêncio demais.Histórias demais."
Ele decidiu ver com os próprios olhos.
No dia seguinte, Klaus e Jesse foram chamados para "revisão de postura e avaliação de técnica".
Mentira mal contada.
Eles sabiam.
Klaus chegou bocejando.
— "Vamos ver se é hoje que quebram a gente ou só nos colocam pra correr no gelo."
Jesse sorriu, contido.
— "Se for armadilha, você segura pela frente. Eu limpo por trás."
— "Como um bom irmão."
No campo de formação interna, Élder Rong os esperava.Três instrutores ao lado. O símbolo da seita aceso no chão.
— "Klaus. Jesse. Entrem."
Eles entraram.
O campo se fechou atrás deles com uma parede de Qi invisível.
Rong falou sem rodeios:
— "Vocês estão crescendo rápido demais."
Klaus respondeu sem pensar:
— "Culpa da sopa. Muita proteína."
Rong não sorriu.
— "Discípulos assim viram riscos antes de virarem força."
Jesse cruzou os braços.
— "Quer lutar?"
— "Quero medir."
Klaus levantou a mão.
— "Vai medir com régua ou quer que a gente congele seu núcleo pra entender melhor?"
Rong fez um gesto.
O chão estremeceu.
Formações ativaram.
A gravidade aumentou.O ar ficou mais denso.E o Qi do campo começou a pressionar as articulações.
Klaus cambaleou por meio segundo.
Depois sorriu.
— "Peso é bom. Gelo aguenta mais que gente."
Jesse começou a girar o Qi nos punhos.Relâmpagos curtos estalavam nos dedos.
— "Formações de contenção."— "Ele tá tentando ver se a gente quebra sem revidar."
Klaus estalou o pescoço.
— "Acha que a gente deve mostrar?"
— "Um pouco. O suficiente pra ele lembrar nossos nomes."
O primeiro movimento foi de Klaus.
Ele criou pilares de gelo sob os pés, subindo como lanças invertidas.
Forçou o campo a deformar.
O Qi gravitacional falhou por um segundo.
Jesse entrou com o contra-ataque.
Descarregou um raio curto no ponto de junção da formação.
O campo trincou.
O Élder levantou uma sobrancelha.
— "Interessante."
Ele moveu os dedos e cinco selos flutuantes surgiram no ar.
Dispararam em sequência.
Jesse rolou, Klaus congelou o chão pra empurrar o corpo pra lateral.
Um selo quase atingiu Jesse.
Klaus pulou na frente e criou uma parede de gelo espesso com traços rúnicos.
— "Aí não, avô. Esse é meu raio."
O selo rachou na parede.
Klaus caiu ajoelhado. Um corte no ombro.
Mas ainda rindo.
— "Você bate pior do que minha mãe. E ela tava morrendo."
Rong parou.
— "Basta."
Os selos sumiram.
O campo desligou.
— "Vocês passaram."
Jesse limpou o sangue da boca.
— "Você não queria medir técnica."
— "Não. Queria medir o que vocês fazem quando perdem o controle."
Klaus levantou.
— "Erro seu. A gente ainda nem começou a perder."
Na saída, Jesse olhou pro amigo.
— "Você jogou pesado."
— "Eu joguei limpo. Ele que não sabia que tipo de tabuleiro era."
— "Acha que ele vai contar pra outros Élderes?"
— "Claro. E todos vão querer entender de onde vieram os dois monstros que fingem ser só irmãos de treino."
— "Somos mais que isso."
— "Somos."
— "Vai ser difícil pra eles quando descobrirem."
Klaus olhou pro céu. Azul.
Mas com vento demais.
— "O que a gente fez aqui… foi aviso.Próxima vez, é lição."
—