Capítulo 3 – Entre Gelo e Trovão

A convocação veio sem aviso, sem saudação e sem escolha.

Um pergaminho jogado na porta do quarto, com o selo da Seita e três palavras:

Missão externa. Amanhã. Reúna-se no portão norte.

Jesse abriu antes de Klaus.

“Parece oficial.”

Klaus girou um pedaço de gelo entre os dedos.

“Parece armadilha.”

“Mesmo assim vai?”

“Claro. Não posso perder a chance de ver gente burra morrendo tentando me usar.”

O portão norte estava cercado por sete discípulos.

Cinco deles estavam armados demais pra ser uma missão comum.

Um deles — Gu Feng, do ramo menor do Clã Yan — os encarou com o mesmo sorriso falso de sempre.

“Vocês vieram. Corajosos.”

Klaus respondeu sem sorrir.

“Ou só conscientes de que a gente aguenta mais do que você imagina.”

O responsável pela missão, um instrutor novo, se aproximou:

“Objetivo: investigar sinais de Qi corrompido nas ruínas do Penhasco Quebrado.”

“Local instável. Clima difícil. Presença de feras espirituais.”

“Retorno previsto: dois dias. Sobrevivência não garantida.”

Ninguém reagiu.

Mas Klaus ouviu o que importava:

“Sobrevivência não garantida.”

Traduzindo: ‘A gente quer ver quem volta. E quem não.’

A viagem durou meio dia de besta espiritual.

Na entrada das ruínas, o cheiro de sangue antigo misturado com musgo seco enchia o ar.

As pedras da trilha tinham marcas de garras.

E no horizonte… nuvens pretas.Carregadas.Vivas.

Na primeira hora de reconhecimento, dividiram os grupos.

Klaus e Jesse foram empurrados para o setor norte — o mais instável.

Gu Feng sorriu ao entregar o mapa.

“Se encontrarem algo que não conseguem congelar… corram.”

Jesse respondeu antes que Klaus soltasse algo pior:

“Se encontrarmos algo que vocês soltaram, não vamos correr. Vamos devolver.”

A vegetação ali era densa.

O solo, instável.

Mas o Qi… estava errado.

Klaus tocou a terra com dois dedos.

A resposta veio imediata: fria, quebrada, desequilibrada.

“Isso aqui não é corrupção natural.”

Jesse analisava o fluxo.

“Parece técnica residual. Como se alguém testasse algo proibido… e abandonasse.”

“Ou deixasse de propósito.”

Eles continuaram. Em silêncio.

Mas já sabiam:

Aquilo não era missão. Era armadilha.

Foram cercados uma hora depois.

Bestas com olhos brancos e pele rachada, Qi escorrendo pelas juntas como fumaça ácida.

Jesse contou cinco.

Klaus sentiu sete.

“Eles largaram isso aqui pra alguém morrer.”

“E apostaram que seríamos nós.”

A primeira investiu contra Klaus.

Ele girou o corpo e criou estacas de gelo do próprio ar.

A criatura foi perfurada, mas continuou.

Jesse estalou os dedos e lançou três arcos de raio concentrado direto nos tendões.

Só então caiu.

“Essas coisas não estão vivas. Estão sendo mantidas.”

Klaus travou o olhar em uma marca no pescoço de uma das feras.

“Clã Yan.”

Quando o combate terminou, os dois estavam cobertos de arranhões e sangue escuro.

Mas vivos.

As criaturas se desmanchavam em Qi corrompido, como névoa suja.

Jesse sentou numa pedra.

“Se a gente voltar agora, perdemos o jogo. Eles vencem sem precisar sujar as mãos.”

Klaus limpava a mão com neve que criou no próprio pulso.

“E se a gente ficar, pode deixar alguém vivo demais.”

“Então o que fazemos?”

Klaus olhou pro céu.

Sorriu.

“Deixamos eles atacar primeiro. Depois... mostramos o que acontece quando irmãos de juramento ficam bravos.”

A emboscada aconteceu ao entardecer.

Jesse sentiu primeiro. Uma descarga fraca de Qi vindo da floresta lateral, sincronizada demais pra ser bicho.

Klaus confirmou com um estalo nos dedos: o ar ao redor congelou com resistência.

“Tem cultivador escondido. Com selo de disfarce. Mas o calor do corpo dele traiu.”

“Quantos?”

“Três. Dois armando, um fingindo ser refém.”

O “refém” era Li Wen, um dos discípulos mais covardes da seita.Órfão de guerra, nunca superou o medo de morrer.

E agora… estavam usando isso contra ele.

Eles observaram da encosta, atrás das rochas partidas.

O cenário era montado:Wen fingia estar amarrado, três bestas espirituais rodeavam, e atrás delas… dois encapuzados esperando alguém se aproximar.

Armadilha padrão: salva o fraco, morre o ingênuo.

“Eles querem que a gente tente salvar.”

“E vão soltar as feras quando a gente se expor.”

“Eu não salvaria.” — disse Klaus.

“Mas?”

Klaus ficou em silêncio.Depois, suspirou.

“Mas quero que eles saibam que nem pra armar armadilha eles prestam.”

Jesse avançou primeiro.

Desceu pela lateral, ativando um selo de ilusão leve que ele mesmo criou.

Klaus se moveu pelo outro lado, em linha reta — como se estivesse indo sozinho.

A primeira besta atacou.Klaus congelou o solo, mudou o peso do corpo da criatura com gelo nos órgãos.

Ela tombou.

Jesse apareceu atrás e eliminou o encapuzado com uma lança de raio curta no pescoço.

O segundo encapuzado tentou fugir.Klaus congelou o ar ao redor dele.

O homem não conseguiu respirar.

Caiu.

“Limpo.”

Li Wen tremia.

“V-vocês vieram.”

Klaus se ajoelhou.Olhou bem nos olhos dele.

“Não por você.”

“O q-quê…?”

“Você ainda vive porque quero que eles sintam vergonha por te usar.Não confunda isso com bondade.”

Wen calou.

Jesse já estava revirando os corpos.

“Símbolo interno. Clã Yan.”

“Claro.”

Quando voltaram ao ponto de encontro, o grupo estava agitado.

Gu Feng os esperava com o rosto preocupado demais.

“Encontraram Wen? As feras estavam lá?”

Klaus apenas jogou no chão a máscara dos encapuzados.Manchada de sangue. E com o selo da seita escondido na lateral interna.

“Na próxima vez que mandarem gente pra matar a gente... mandem gente que saiba disfarçar o próprio Qi.”

Gu Feng engoliu seco.

“Não sei do que estão falando.”

Jesse deu um passo à frente.

“Sabe sim. E agora você tem uma escolha: ou para... ou continua e acaba sendo enterrado em lugar que ninguém vai procurar.”

“Isso é ameaça?”

“É aviso. Ameaça viria com relâmpago.”

Klaus apontou pro lado.

Uma árvore atrás de Gu Feng estava congelada da raiz ao topo.

Ele não tinha nem notado.

Na volta pra seita, nenhum dos outros discípulos falou com eles.

Mas todos olhavam diferente.

Não com raiva.

Com cuidado.

Na sala do instrutor-chefe, o relatório chegou antes deles.

Mas quando o Élder Rong leu o que os dois fizeram — sem matar, mas deixando a mensagem clara — ele apenas disse:

“Eles já entenderam.A seita é grande demais pra proteger todo mundo.Mas pequena demais pra esquecer dois como esses.”

Dois dias depois do retorno, a convocação veio — dessa vez com selo vermelho.

Raríssimo.

Só Élderes de nível 6 acima podiam usar.

Jesse olhou o pergaminho.Klaus bocejou.

“Agora querem ser educados.”

“É só porque perceberam que matar a gente ia sair caro demais.”

“Ou barato. Mas com muito barulho.”

A Sala Interna do Alto Céu era escura, mas carregada de Qi tão refinado que o ar tremia em silêncio.

Ali, Élder Zhuo, o estrategista da seita, os aguardava.

Rosto liso. Túnica cinza. E um olhar que lia pensamentos — ou fingia muito bem.

“Klaus. Jesse. Sentem-se.”

Klaus ficou de pé.

Jesse também.

Zhuo nem insistiu. Só começou.

“Vocês causaram agitação.”

“Ou só sobreviveram demais.” — Klaus.

“Não é ruim. Mas chama atenção.” — Zhuo.

“Foi intencional?”

Jesse respondeu.

“Não. Mas não evitado.”

Zhuo assentiu.

“Bom. Porque precisamos de gente que não evita.”

A proposta era direta:

Uma missão de investigação fora do território da seita.Acompanhamento de Élderes de outra organização.Possível presença de cultivadores de nível superior.Interesse: vestígios de uma técnica proibida desaparecida.

Klaus já sabia.

“Estão rastreando a tal ‘Flor Sombria’.”

Zhuo o encarou.

“Você conhece?”

“Só de ouvir dizer.”

Jesse não esboçou reação.

Mas sentiu o peso da mentira.

Zhuo continuou:

“Vocês serão parte de uma equipe de elite. Não lideram. Não decidem. Só observam e reportam.”

Klaus deu um passo.

“Só observamos?”

“Sim.”

“E se o que virmos for alguém tentando usar a gente como escudo?”

Zhuo sorriu.

“Usem o gelo e o trovão. Depois reportem.”

Na saída, Jesse falou primeiro:

“Ele sabe. Talvez não tudo, mas sabe o suficiente.”

“Claro que sabe.” — Klaus.— “Mas quer manter perto, não quebrar. Ainda.”

“Vamos?”

“Vamos. Mas se tentarem cortar nossas asas…”

“A gente congela a torre e queima o altar.”

A notícia correu rápido: os dois “irmãos problemáticos” estavam indo pra missão de elite.

Alguns discípulos invejaram.

Outros tremeram.

Um ou dois começaram a fazer anotações.Porque sempre há alguém com medo de ficar pra trás.

Na noite anterior à partida, Klaus e Jesse ficaram no alto do templo do vento.

Sentados. Olhando o vale.

“Sabe o que eu odeio?” — Klaus.

“O que?”

“Quando os adultos fingem que estão te testando… mas só querem controle.”

“Você vai deixar?”

“Não.”

“Nem eu.”

Klaus criou um floco de gelo no dedo.Soprou.Ele voou no escuro e desapareceu.

“Vamos mostrar pra eles que os dois que eles tentam conter... são os dois que ainda seguram esse lugar de pé.”

A equipe partiu ao amanhecer.

Cinco cultivadores: dois de elite da Seita das Nuvens Cortantes, dois convidados de outra seita menor… e Klaus e Jesse.

Ninguém falou muito.

E ninguém confiava neles.

Principalmente o líder da missão — Élder Huo Zhen, olhos duros e barba de aço, famoso por dizer:

“Discípulo que cresce fora da mão… deve ser quebrado antes que floresça.”

Klaus ouviu isso dias antes.

Jesse o lembrou:

“Você prometeu não quebrar nenhum Élder ainda.”

“Eu disse hoje?”

O destino era o Vale Rachado de Xùan, uma área onde o Qi da terra girava invertido.

Diziam que ali, um cultivador perdeu a alma e virou casca viva.

Perfeito lugar pra esconder técnicas que não deviam existir.

A primeira noite foi calma.

Calma demais.

Klaus usava o gelo pra manter distância térmica no acampamento. Jesse fazia vigília com sentidos estendidos por meio de selos vibratórios de raio.

O primeiro a se mexer foi Jesse.

“Tem gente. Não animal. Gente.”

“Distância?”

“Cinquenta passos. Mas o Qi... não é limpo.”

Klaus se ergueu.

“Vamos brincar.”

Quando o ataque veio, veio sujo.

Três figuras saltaram das árvores com Qi distorcido — como se cada movimento cortasse o próprio corpo.

Eles não falavam.Não respiravam como humanos.Mas seus olhos... eram de alguém que já foi humano.

“Cultivadores modificados.” — Jesse rosnou.

O primeiro golpe partiu o chão. Klaus girou e congelou o braço do inimigo em movimento.

A criatura estourou a camada de gelo e mordeu o ar.

Jesse invocou dois fios de raio e perfurou os olhos.

Outra criatura tentou agarrá-lo por trás.

Klaus deslizou no gelo, empurrou Jesse pro lado e travou os pés do monstro com gelo espiritual.

O gelo grudou na alma.A criatura uivou — não de dor, mas de memória.

“Eles ainda têm consciência!” — Jesse gritou.

“Então vão sentir arrependimento.”

Klaus puxou o Qi do fundo do dantian.

Era demais.

O corpo tremeu.

Mas ele forçou.

O gelo emergiu das costas. Como lâminas afiadas.Uma técnica nova. Instintiva.Nascida no campo. Batizada no sangue.

“Asas de Gelo Farpado.”

Ele girou o corpo e varreu o campo com corte curvo.

Duas das criaturas foram rasgadas pela metade.

A terceira recuou, mas Jesse não deixou.

“Marca Celeste!”

Ele cravou uma runa de raio no chão.

A runa explodiu pra cima como um chicote de trovão.A criatura foi destruída por dentro.

Quando a poeira baixou, o chão estava marcado, o campo rachado…

E os outros cultivadores em silêncio.

Élder Huo Zhen se aproximou, encarando Klaus.

“Você quebrou o fluxo do próprio Qi. Isso é insensato.”

Klaus limpava o sangue do lábio.

“Melhor do que morrer lúcido.”

Zhen se virou pra Jesse.

“E você... sua técnica é instável.”

“Só instável pra quem não entende.”

Klaus tossiu.

“Vamos dormir? Ou querem que a gente lute contra o próprio time agora?”

Ninguém riu.

Mas ninguém ousou se aproximar mais.

Mais tarde, Jesse verificava os pulsos.O raio ainda dançava sob a pele.

“Acho que passei também.”

“Você queimou meridianos?”

“Um pouco. Mas abri caminho novo.”

Klaus sorriu.

“Bem-vindo ao Nível 6.”

“Você também?”

“Por pouco. Mas sim. Sinto o núcleo tentando tomar forma.”

“Condensação de Qi concluída.”

Eles se encararam.

Avanço forçado. Doloroso. Real.

Mas vivo.

E agora… ninguém os segurava no mesmo patamar.

Ao terceiro dia de missão, chegaram às ruínas centrais do Vale Rachado.

A vegetação cedia lugar a pilares negros, cobertos por cristais de gelo antigo — não natural.

Klaus sentiu o peito pesar antes mesmo de ver.

Jesse olhou o solo.

“Flor Sombria.”

Klaus confirmou com um só movimento de cabeça.

O Élder que liderava, Huo Zhen, ordenou:

“Abram o selo. Quero a câmara revelada até o pôr do sol.”

Mas o selo... já estava rachado.

A câmara era uma cratera.No centro, um pedestal de jade azul-negro.Em cima dele: um fragmento de gelo que pulsava.

Não frio comum.Era Qi condensado.Denso. Cortante.

Gelo com alma.

Klaus parou ao chegar perto.

O fragmento sussurrava.

Não com palavras. Com memórias.

“Isso foi moldado por ela.”

Jesse entendeu na hora.

“Sua mãe.”

Klaus assentiu.

Élder Zhen se aproximou.

“Isso aqui é o que restou da técnica perdida. Flor Sombria do Abismo Congelado.”

Ele olhou pra Klaus com algo entre curiosidade e aviso.

“Você sabia disso?”

“Não.” — Klaus respondeu.

“Mentira.”

Outro cultivador — Wen Tao, um dos veteranos de outra seita — riu.

“Eu reconheço esse tipo de gelo. Vi na guerra das Montanhas Gêmeas. Uma mulher de olhos claros, uma técnica que roubava o fluxo do inimigo e o devolvia congelado.”

Klaus olhou.

“E você viveu pra contar?”

“Fugi.” — Wen Tao confessou.

“Então devia ter ficado morto.”

A tensão subiu.

Zhen ergueu a voz.

“Chega. Isso aqui pertence à Seita agora. O fragmento será lacrado e levado. Ninguém toca.”

Mas o fragmento... respondeu.

A superfície rachou.O chão congelou.O ar perdeu o som.

E então uma figura espiritual surgiu — feita de gelo opaco.

Era ela.

Por um instante, a imagem da mãe de Klaus, moldada pelo gelo que carregava sua marca espiritual.

Não falava.Não se mexia.

Mas olhava direto pra ele.

Klaus avançou um passo.

Jesse o segurou.

“Não é ela.”

“É o que restou.”

“Se tocar, pode perder o controle.”

“Eu já perdi.”

Wen Tao não entendeu o aviso.

Tentou tocar o gelo.

Foi congelado da mão até o ombro em meio segundo.

Gritou.

Mas era tarde.

A alma dele foi drenada.

E parte dela... alimentou o fragmento.

Klaus se moveu.

O gelo ao redor do corpo dele criou três lanças em rotação — como pétalas invertidas.

Jesse girou os pulsos.Relâmpagos em espiral giravam nos dedos.

Zhen sacou um talismã defensivo.

“CHEGA! Não vão tomar isso como arma pessoal!”

“Ela não deixou isso pra vocês.” — Klaus.— “Ela deixou pra mim. Pra lembrar. Pra terminar o que começou.”

Zhen ativou um selo de contenção.Círculos dourados fecharam ao redor da câmara.

Mas Klaus… não recuou.

Ele canalizou o Qi diretamente no chão.

O fragmento flutuou.

A figura espiritual da mãe se desfez em partículas.

Mas uma entrou no peito de Klaus.

E o frio mudou.

Não era mais apenas gelo.

Era comando.

Era domínio.

Zhen recuou.

“Você é herdeiro direto.”

“Não. Eu sou a continuação.”

Klaus caiu de joelhos por um segundo.

O corpo tremeu.

Mas Jesse ficou do lado.A mão direita estendida, raio circulando ao redor como proteção.

“Se ele cair, eu seguro.”

“Se tentarem quebrar, eu mato.”

Quando a energia estabilizou, Klaus se levantou.

Os olhos… mais claros.

A pele… com traços de cristal sob a luz.

“Agora sim.”

“Você subiu de novo?” — Jesse perguntou.

“Não. Mas o gelo subiu comigo.”

Zhen tentou ordenar o selamento do local.

Mas ninguém respondeu.

Ninguém ousou.

Klaus e Jesse caminharam até a saída.

E deixaram os Élderes decidirem o que fazer com a memória da mulher que eles não conseguiram matar.