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Capítulo 001 - Rato de laboratório

O mundo mudou no instante em que os céus se rasgaram. Era como se a realidade tivesse sido perfurada por algo que vinha de fora — algo impossível.

Portais. Era o nome mais simples para descrever as anomalias que começaram a surgir ao redor do mundo. Rachaduras na existência, janelas para outras realidades. Mundos bizarros e inexplorados, alguns aterradores, outros belos em sua estranheza. Os cientistas os chamaram de Singularidades, buscando enquadrar o inexplicável em termos de ciência. A igreja, por sua vez, clamou por arrependimento, vendo nos portais a ira divina, uma maldição lançada sobre a humanidade pecadora.

Mas, em meio ao medo e à incerteza, algo mais surgiu. Junto com os portais, emergiram humanos diferentes. Alterados, transformados por uma mutação genética até então desconhecida. Uma resposta da própria natureza à invasão, uma adaptação repentina a um novo mundo. A essa mutação deram o nome de Gene K..

Aqueles que carregavam o Gene K passaram a ser chamados de Keyers.Os únicos capazes de adentrar as anomalias, explorar seus segredos, enfrentar os perigos que lá residiam.

E onde há poder, inevitavelmente, há controle.

Foi assim que nasceu a A.R.G.O.S — Agência de Resposta Global a Ocorrências Singulares. Uma organização ambiciosa, com recursos ilimitados e um objetivo claro: estudar, desenvolver e regular as Anomalias e os Keyers. Em pouco tempo, a A.R.G.O.S se tornou a principal força no cenário mundial, ditando as regras de um novo jogo perigoso e complexo.

Meu nome é Noah Salles. Catorze anos. Pele escura, cabelo crespo que teima em não obedecer, sempre escapando da touca que minha mãe insiste em me dar. Tenho um sorriso fácil – pelo menos, é o que as pessoas dizem. Mas a verdade é que, por trás dele, tem um oceano de coisas que eu guardo só pra mim.

Atibaia, interior de São Paulo, é o lugar onde cresci. Uma cidade tranquila, com gente que sorri na rua e que ainda acredita em um "bom dia". Pelo menos, acreditava. Desde o Quebra-Mundo, até o bom dia, parece ter perdido a força.

Meus pais? Herois de verdade. Negros, batalhadores, com a força de mil sóis. Minha mãe, faxineira. A rainha da limpeza, que faz cada canto brilhar com a força do trabalho dela. Meu pai, pedreiro. Mãos calejadas, sorriso fácil e a sabedoria de quem aprendeu a construir a vida tijolo por tijolo. Eles estavam aqui antes do Quebra-Mundo. Viram o céu se rasgar, o pânico tomar conta. Mas, sei lá, acho que a fé deles é à prova de apocalipse.

Eu, por outro lado, nasci com o Gene K. A mutação. A diferença. A loteria genética que me deu superpoderes, mas que também me colocou na mira da A.R.G.O.S. Uma ironia, né? Meus pais, que viveram o Quebra-Mundo de perto, saíram ilesos. Eu, que nem tinha nascido, ganhei um bilhete premiado.

A infância foi normal. Dentro do possível. Sem luxo, sem viagens, sem videogame de última geração. Mas com comida na mesa, roupa lavada e o amor gigante dos meus pais. Estudar sempre foi prioridade. Por isso, ralei pra caramba e consegui uma bolsa no colégio preparatório aqui de Atibaia. O futuro, dizem, está nos livros. E eu quero dar um futuro melhor pra minha família.

Tenho dois irmãos. Gêmeos. Lucas e Theo. Sete anos. Minhas crias. Meus parceiros. Minha responsabilidade. Eles também têm o Gene K. Três Keyers numa família só. Vai entender.

Aos quatorze, meu "despertar" foi agendado. Uma forma bonita de dizer que a A.R.G.O.S resolveu me recrutar. Ou melhor, me "convidar" a usar meus poderes para o "bem da humanidade". A mesma humanidade que me olha torto por ser negro, por vir da periferia, por ter pais que "só" limpam e constroem.

Meu pai sempre me chama de super-heroi. Ele acredita em mim. Ele acredita que eu posso mudar o mundo. E eu tento acreditar também. Tento ser forte por ele, pela minha mãe, pelos meus irmãos. Tento ser o exemplo que eles precisam.

Mas a real é que, às vezes, o peso da responsabilidade me esmaga. O racismo, a pobreza, a falta de oportunidades... tudo isso grita dentro de mim. E aí, o sorriso some. A esperança vacila. Mas eu respiro fundo, lembro dos meus pais e sigo em frente.

Porque, no fim das contas, é isso que os super-herois fazem, né? Eles escondem a dor, vestem a capa e salvam o dia. Pelo menos, é o que eu tento fazer. Todos os dias.

O portal giratório da A.R.G.O.S engoliu o carro dos meus pais como se fosse um brinquedo. Atibaia ficou para trás. A calmaria, a rotina... tudo virou memória. Agora, o que dominava meus sentidos era o aço frio, o vidro espelhado e o silêncio opressor da sede da A.R.G.O.S na cidade de São Paulo. Uma metrópole que sempre me pareceu um mundo à parte.

A grandiosidade do lugar era de embrulhar o estômago. Paredes brancas que pareciam se estender infinitamente, corredores impecáveis que ecoavam a cada passo, funcionários uniformizados que se moviam com precisão robótica. Era tudo tão... asséptico. Tão diferente do calor da minha casa, da bagunça dos meus irmãos, do abraço apertado da minha mãe.

A sensação era de estar entrando em outro mundo. Um mundo onde a ciência e a tecnologia reinavam absolutas, onde a esperança e o medo se misturavam em doses iguais, onde o meu futuro estava prestes a ser decidido.

Eu sentia o peso de cada olhar que se cruzava com o meu. Eles viam o garoto da periferia, o filho da faxineira e do pedreiro, o portador do Gene K. Mas será que eles viam a minha coragem? A minha vontade de fazer a diferença? O meu medo de decepcionar?

Meu pai apertou meu ombro. Um toque rápido, mas carregado de força e confiança. Seus olhos brilhavam. Orgulho? Medo? Talvez os dois.

“— Lembre-se do que te falei, filho. Você é um super-heroi. Não importa o que aconteça, siga em frente. Estamos contigo.”

As palavras dele ecoaram na minha mente como um mantra. Um escudo contra a solidão que me invadia. Um lembrete de que eu não estava sozinho nessa jornada.

Mas a verdade era que eu nunca tinha me sentido tão sozinho na vida. Meu pai sempre foi meu alicerce, meu guia, meu exemplo. Mas agora, ele estava do outro lado do vidro, me observando se afastar. Agora, era a minha vez de me manter firme. De encarar o desconhecido. De provar que eu era digno da fé que ele depositava em mim.

O "despertar", como eles chamavam. O momento que me transformaria em um Keyer. Um símbolo de esperança para um mundo em ruínas. Ou, talvez, apenas mais uma peça no quebra-cabeça sombrio da A.R.G.O.S. Um número, um experimento, uma arma.

Engoli em seco. Olhei ao redor, tentando disfarçar a ansiedade. Eu tinha apenas quatorze anos. Quatorze anos e o peso do mundo nas costas. Mas, por baixo da insegurança, pulsava a coragem. A mesma coragem que meus pais me ensinaram a ter, que me impedia de desistir, que me obrigava a seguir em frente.

Será que eu realmente posso ser o heroi que todos esperam? A pergunta martelava na minha cabeça como um tambor.

O chamado. A voz metálica que ecoou pela sala de espera, cortando o silêncio. "Noah Salles, por favor, dirija-se ao Setor Delta. Repito: Noah Salles, Setor Delta."

Respirei fundo. Uma vez. Duas vezes. Três vezes.

Levantei. Sem olhar para trás. Sem hesitar. Sem demonstrar o medo que me consumia.

Não havia mais volta.

O Setor Delta me esperava. E, com ele, o meu destino.

 O salão era um cubo branco e impessoal, iluminado por fileiras intermináveis de lâmpadas que zumbiam em uma frequência irritante. O chão de mármore, impecável e frio, refletia a luz, criando um efeito ofuscante que intensificava a minha ansiedade. Meus pés descalços grudaram levemente no chão, um detalhe que me lembrou da minha vulnerabilidade.

À minha volta, outros jovens. Rostos tensos, olhares nervosos, mãos que tremiam discretamente. A maioria não era muito diferente de mim: garotos e garotas de famílias humildes, carregando o peso da esperança em seus ombros. Éramos a nova geração de Keyers. A promessa de um futuro melhor. Ou, pelo menos, era isso que a A.R.G.O.S queria que acreditássemos.

A agente. Uma mulher jovem, com um sorriso profissional e um olhar que denunciava o cansaço. Ela parecia simpática, mas havia algo de robótico em seus gestos, como se ela já tivesse repetido aquela cena centenas de vezes. Como se nós fôssemos apenas números em uma planilha.

Ela nos guiou até a plataforma central. Um círculo metálico, cercado por um labirinto de fios, cabos e monitores. Uma vista panorâmica de São Paulo se estendia além das paredes de vidro, uma metrópole caótica e pulsante que parecia nos observar.

"— Todos, por favor, se posicionem —", disse a agente, sua voz amplificada pelos alto-falantes. "— Este é o momento que define seu futuro. O Gene K será ativado. Cada um de vocês irá descobrir seu potencial —."

O estômago revirou. O ar se tornou denso, carregado de eletricidade. Podia sentir o cheiro metálico dos equipamentos, o perfume enjoativo da agente, o suor frio escorrendo pela minha testa. A ansiedade era quase palpável.

Olhei ao redor. Entre os rostos tensos dos outros jovens, notei a presença de figuras importantes. Líderes de Guildas, com seus ternos impecáveis e seus olhares calculistas. Diretores de academias de treinamento, avaliando nosso potencial como se fôssemos gado em um leilão. Representantes de grandes Conglomerados, interessados em nossos poderes como se fôssemos ações na bolsa de valores.

Eles nos observavam como predadores analisando suas presas. Como se o nosso despertar fosse apenas mais um jogo de poder, mais uma peça em seu tabuleiro.

A agente começou a ajustar os dispositivos. Cabos conectados aos nossos pulsos, sensores grudados em nossas têmporas, monitores exibindo nossos sinais vitais. Eu me senti como um cobaia em um experimento macabro. Como um boneco prestes a ser controlado por mãos invisíveis.

"— Lembrem-se —", continuou a agente, sua voz ecoando na sala silenciosa. "— O despertar é único. Não há como prever o que cada um de vocês irá vivenciar. Estejam preparados para qualquer coisa —."

A pressão aumentou. O peso da responsabilidade, da expectativa, do medo. Senti o sangue pulsando nas minhas veias, o coração batendo descontroladamente, a respiração presa na garganta. Eu sabia que minha vida estava prestes a mudar.

A agente apertou o botão.

Um zumbido agudo invadiu meus ouvidos. Uma vibração percorreu meu corpo, começando pelos meus pés e subindo até a minha cabeça. Uma luz intensa emanou da plataforma, engolindo a sala em um clarão branco e cegante.

Fechei os olhos.

O calor me invadiu. Uma onda de energia que queimava por dentro, que me fazia vibrar em cada célula do meu corpo. Era como se eu estivesse sendo desmembrado e remontado em um nível atômico.

Fui puxado para dentro de mim mesmo. Para um lugar escuro e silencioso, onde o tempo não existia e o espaço não tinha limites.

Então, a imagem surgiu.

Diante de mim, flutuando no ar, quatro espaços vazios. Quatro molduras de energia aguardando para serem preenchidas. Eram como janelas para o meu potencial, para as minhas habilidades latentes. Quatro caminhos diferentes que eu poderia seguir.

Duas molduras brilhavam em tons de bronze, como promessas de um poder estável e confiável. Uma cintilava em dourado, como a possibilidade de uma grandeza excepcional. E a última... a última era indistinta. Marcada apenas por uma aura densa e antiga, como se guardasse segredos ancestrais.

Mas as molduras estavam vazias. Como se o meu destino estivesse incompleto. Como se faltasse algo.

Então, uma carta se materializou. Uma única carta, surgindo do nada, como um chamado do universo.

As outras molduras permaneceram vazias. Portas trancadas. Oportunidades perdidas. Ou talvez... apenas adiadas.

A carta que surgiu era diferente de tudo o que eu já havia visto. Dos exemplos que estudei nos livros da A.R.G.O.S, dos relatos dos Keyers mais experientes, das lendas que sussurravam nos corredores da academia.

Não brilhava. Não pulsava. Não irradiava energia.

Estava... petrificada.

Era como uma pedra antiga, lapidada pelo tempo, com rachaduras finas que contavam histórias de eras passadas. A superfície era áspera, fria, como se tivesse resistido a séculos de intempéries.

Nenhum texto visível. Apenas o nome, gravado em baixo-relevo, com letras que pareciam ter sido esculpidas por mãos divinas:

O Deus Decapitado

A imagem era perturbadora. Uma figura humanoide ajoelhada, com a cabeça apoiada sobre os joelhos em um gesto de submissão e desespero. As feições eram difusas, como se o tempo tivesse apagado a sua identidade.

Ao fundo, os restos de um trono partido. Símbolo de um poder perdido, de uma glória desvanecida. Uma coroa jogada no chão. Sinal de uma queda inevitável, de uma derrota amarga.

Tentei ler alguma descrição. Entender o nível, o tipo, os atributos. Mas nada aparecia. A tela permanecia em branco, como se a carta desafiasse qualquer tentativa de análise.

O tempo corria. Podia sentir a pressão da A.R.G.O.S, a expectativa dos observadores, a curiosidade dos outros jovens. O processo estava chegando ao fim.

Olhei para os espaços vazios ao meu redor. Para as cartas que nunca se materializaram. Para os caminhos que eu nunca poderia seguir.

E então, olhei para a carta solitária. Para o Deus Decapitado. Para o meu destino.

Era aquilo ou nada.

Engoli seco. A saliva desceu rasgando a minha garganta. Senti o medo me paralisar. A dúvida me consumir.

Mas a coragem falou mais alto. A coragem que meus pais me ensinaram. A coragem de enfrentar o desconhecido. A coragem de ser um super-heroi.

Estendi a mão. Hesitei por um instante. E então, toquei a carta.

No instante seguinte, o mundo explodiu em cores. Uma sinfonia de luzes e sons que me transportou para outra dimensão. A carta se desfez em pó brilhante, uma chuva de estrelas que foi absorvida pela minha pele.

Senti a energia me invadir. Me transformar. Me completar.

O campo de luz desapareceu. A música cessou. O silêncio retornou.

Estava feito.

O despertar de Noah Salles havia acontecido.

Mas o que significava O Deus Decapitado? Que tipo de poder eu havia adquirido? Que tipo de destino me aguardava?

As respostas, eu sabia, estavam prestes a ser reveladas.

Ainda podia sentir a energia da carta percorrendo meu corpo, como uma corrente elétrica que me mantinha em alerta. Mas a imagem do Deus Decapitado não me deixava em paz. O que aquilo significava? Que tipo de poder eu havia despertado?

A funcionária da A.R.G.O.S, com seu sorriso ensaiado e seus olhos curiosos, me observava com atenção.

"— Tudo certo? —", perguntou ela, com uma voz suave que não escondia o seu interesse.

Assenti, tentando disfarçar o turbilhão de pensamentos que rodavam na minha cabeça.

"— Ótimo. Agora, vamos para a sala de medição. É lá que os dados do seu Despertar serão computados e analisados —".

Ela se virou e começou a andar. Seus saltos ecoavam no corredor, que parecia se estender infinitamente. A cada passo, a minha ansiedade aumentava.

O corredor era mais estreito e mais iluminado que o anterior. Portas metálicas, sensores de movimento, câmeras de segurança... Tudo me lembrava que eu estava sendo observado, monitorado, controlado.

Podia ouvir vozes abafadas vindo de outras salas. Outros jovens sendo avaliados. Instrutores debatendo resultados. Cientistas murmurando fórmulas complexas. Era como se eu estivesse no coração de uma máquina fria e implacável.

Chegamos a uma porta translúcida. As letras em negrito brilhavam em neon:

SESSÃO DE AVALIAÇÃO GENÉTICA – MEDIÇÃO DE POTENCIAL E CLASSIFICAÇÃO INICIAL

A porta se abriu automaticamente, revelando um ambiente ainda mais estéril e asséptico que o anterior. Um grande scanner circular dominava o centro da sala, cercado por técnicos em trajes brancos e assépticos. O brasão da A.R.G.O.S — um olho estilizado sobre uma espiral de luz — estampava seus ombros.

Um dos técnicos, um senhor calvo com óculos de dados pendurados no pescoço, nos recebeu com um aceno de cabeça.

"— Este é o novo? —", perguntou ele à funcionária.

"— Sim. Noah Salles, 14 anos. Primeira avaliação —".

O técnico digitou algo em um painel à sua frente e me indicou o scanner.

"— Pode se posicionar ali, por favor. Vamos fazer a leitura da sua estrutura genética, conexão com o Gene K e registro do número e tipos de slots abertos. O processo é rápido e indolor —".

Caminhei até o scanner, sentindo o olhar de todos sobre mim. A plataforma circular se ajustou ao meu tamanho com um zumbido suave, como se me engolisse. Uma luz azul começou a percorrer meu corpo de cima a baixo.

A sensação era estranha. Como se estivesse sendo dissecado por dentro. Como se cada célula do meu corpo estivesse sendo analisada, catalogada, julgada.

Paineis holográficos se formaram ao redor dos técnicos, exibindo dados complexos, gráficos e fórmulas que eu não conseguia entender. O rosto do técnico se contraiu. Seus olhos se estreitaram.

"— Quatro espaços abertos... Isso é raro —", murmurou ele, como se estivesse falando sozinho. "— Mas... só uma carta registrada? Hm —".

A funcionária se inclinou, com uma expressão de preocupação.

"— Algum problema? —", perguntou ela.

"— Não. Só... incomum. Muito incomum —".

Meu coração disparou. Senti um nó na garganta. O que estava acontecendo? O que havia de errado comigo?

Apertei os punhos, tenso.

O técnico me olhou diretamente nos olhos.

"— Anomalias não são necessariamente ruins, rapaz —", disse ele, como se lesse meus pensamentos. "— Às vezes, são elas que mudam tudo —".

Mas será que eu era uma anomalia boa ou ruim? Será que eu era a chave para um futuro melhor ou apenas um erro a ser corrigido?

Aquelas palavras me assustaram ainda mais.

O técnico me guiou para uma sala menor, ainda mais isolada que as anteriores. No centro, repousava a Orbe de Potencial: uma esfera de cristal translúcido, suspensa em um campo de energia. A sala respirava tecnologia, com paineis de controle e monitores exibindo gráficos complexos. A agente da A.R.G.O.S seguia de perto, seu olhar fixo em cada movimento meu.

"— Coloque a mão sobre a orbe —", instruiu o técnico, sua voz neutra, porém carregada de expectativa. "— Ela irá medir a sua afinidade com o Gene K e revelar a sua classificação inicial —".

Aproximei-me da orbe, hesitante. A aura fria que emanava dela me dava calafrios. Era como se estivesse prestes a tocar em um pedaço do próprio universo, algo vasto e incompreensível. Lembrei-me da carta, do Deus Decapitado, da sensação de poder adormecido pulsando em minhas veias.

Respirei fundo, tentando afastar o medo. Se era para ser um super-heroi, teria que encarar o que viesse.

Toquei a orbe. O contato foi gélido, como se estivesse segurando um pedaço de gelo cósmico. Uma onda de energia percorreu meu corpo, causando um choque breve e intenso. O silêncio na sala se tornou absoluto, como se o tempo tivesse parado.

Por um instante, nada aconteceu. O painel de vidro atrás da orbe permaneceu apagado, sem exibir nenhum dado. A própria orbe parecia inerte, sem emitir qualquer sinal de luz.

A frustração começou a me invadir. Será que não havia nada ali? Será que o Despertar tinha sido uma farsa, uma promessa vazia? Será que o Deus Decapitado era apenas uma carta sem poder, um símbolo de fracasso?

Então, as memórias me invadiram. O sorriso do meu pai, a força da minha mãe, a esperança nos olhos dos meus irmãos. A lembrança da minha origem, da minha luta, da minha determinação.

Apertei a orbe com mais força, como se quisesse transferir toda a minha energia para dentro dela.

O cristal brilhou. Uma luz fraca, hesitante, como uma vela tremendo na escuridão. As linhas de dados começaram a se formar no painel, flutuando no ar com uma intensidade sutil.

POTENCIAL INICIAL: BAIXO

CATEGORIA: COMUM

AFINIDADE: INDEFINIDA

CARTÕES: 01/04 (ATIVOS)

As palavras me atingiram como um soco no estômago. Baixo? Comum? Indefinida? Era só isso que eu era? Era só isso que o meu poder valia?

O brilho da orbe desapareceu. O painel se apagou. O silêncio se tornou ainda mais pesado.

A funcionária manteve a sua expressão neutra, mas percebi uma leve tensão em seus ombros. Ela não disse nada. Apenas me encarava, como se estivesse esperando a minha reação.

Estava prestes a retirar a mão da orbe, quando me lembrei das palavras do meu pai: “Você é um super-heroi, meu filho. Nunca se esqueça disso”.

Eu não podia desistir. Não podia falhar. Não podia decepcionar a minha família.

Apertei a orbe com todas as minhas forças. Fechei os olhos e me concentrei. Na minha família. No meu futuro. No meu poder. Invoquei a imagem do Deus Decapitado, buscando alguma pista, alguma direção.

Forcei. Forcei. Forcei.

Mas, em vez de receber uma nova mensagem de poder, o painel apenas confirmou o que já estava ali:

CLASSIFICAÇÃO: C - (TEMPORÁRIA)

A humilhação me invadiu. A raiva, a frustração, o desespero. Eu não era bom o suficiente. Nunca seria bom o suficiente.

Retirei a mão da orbe, sentindo o peso da derrota.

Então, ouvi o som.

Crack.

Um estalo seco, como o trovão anunciando uma tempestade. Abri os olhos e vi. Uma teia de rachaduras douradas se espalhando pela orbe, como veias de lava incandescente. A luz interior pulsava com mais intensidade, ameaçando explodir.

A funcionária deu um passo para trás, com os olhos arregalados. Um medo genuíno, puro, estampado em seu rosto.

Eu, paralisado, apenas observava a orbe se despedaçar à minha frente.

Sem saber o que estava acontecendo. Sem entender o porquê. Mas sentindo, no fundo da minha alma, que o meu destino estava prestes a se manifestar de uma forma que ninguém, nem mesmo a A.R.G.O.S, poderia prever.

A orbe explodiu em uma cascata de fragmentos de cristal, liberando uma onda de energia que varreu a sala. Senti a força me atingir como um trovão, sacudindo-me até os ossos. Uma dor lancinante percorreu meu corpo, como se estivesse sendo rasgado por dentro. Gritei, mas o som foi abafado pelo rugido ensurdecedor da energia.

A visão embaçou. O mundo se distorceu. As paredes pareciam se curvar e se contorcer, como se estivessem vivas. As luzes explodiram, lançando faíscas por todos os lados. A sala inteira tremia, como se estivesse prestes a desmoronar.

Então, o silêncio.

A dor diminuiu. A visão clareou. Lentamente, recuperei o controle do meu corpo.

Olhei ao redor. A sala estava um caos. A orbe, em pedaços. Os técnicos, caídos no chão, inconscientes. A funcionária, encostada na parede, com o rosto pálido e os olhos arregalados.

Eu... eu estava de pé. Intacto. Iluminado por uma aura tênue e azulada.

Algo havia mudado. Eu sentia. Uma força nova, desconhecida, pulsando em minhas veias. Um poder que me transcendia, que me ligava a algo maior.

A classificação "C - Temporária" ainda pairava na minha mente, um eco incômodo da minha suposta falta de potencial. Mas a explosão da orbe... aquilo era algo que definitivamente não estava nos planos.

Enquanto a adrenalina diminuía e a clareza retornava, percebi que os observadores não estavam mais ali. Os líderes de Guildas, os diretores das academias, os representantes dos conglomerados... todos haviam sumido no momento da explosão. Será que estavam seguros em algum local protegido, observando tudo através de câmeras?

Na sala escura com vidros espelhados, no alto, a cena era caótica, porém controlada. Os três representantes de Guildas haviam se agarrado às suas cadeiras no momento da explosão, a sala tremera com a força liberada, mas o vidro espelhado manteve-se intacto. Agora, recompostos, observavam os monitores com atenção.

A mulher de cabelo branco e terno vermelho sorriu discretamente.

“— Ele é um deles —” repetiu, com a certeza de quem há muito esperava por aquele momento.

“— Certeza? Essa anomalia toda... não era para acontecer —” o homem mais velho, de terno cinza e expressão preocupada, questionou. “— Os dados apontavam para um Keyer comum, potencial baixo.”

A mulher balançou a cabeça, negando.

“— Os dados podem ser manipulados, as leituras, falseadas. O Gene K é imprevisível, e a A.R.G.O.S nem sempre sabe tudo. Mas o que importa é o resultado. E o resultado está ali, desestabilizando tudo. Ele é um classe especial.”

O terceiro observador, um homem jovem de terno preto e olhar frio, falou pela primeira vez.

“— Especial por quê? A explosão da orbe pode ter sido apenas um acidente. Um defeito no equipamento.”

A mulher riu, um som curto e cortante.

“— Acredite no que quiser, Sr. Ito. Mas eu vi o brilho nos olhos dele. Aquele garoto carrega um poder que a A.R.G.O.S não consegue controlar. E isso, meus caros, é uma oportunidade.”

Ela se virou para o holograma do nome de Noah no canto da tela.

“— Guardem esse nome. Ainda vamos ouvir falar muito de Noah. E vamos garantir que ele jogue a nosso favor.”

De volta à sala de avaliação, a funcionária da A.R.G.O.S, ainda encostada na parede, finalmente recuperou a fala.

“— Você... você está bem? —” perguntou, com a voz trêmula.

Assenti, embora não tivesse certeza. Eu me sentia diferente. Mais forte. Mais... algo.

“— O que aconteceu? —” ela continuou, com os olhos fixos nos destroços da orbe. — O que você fez?

Ainda não tinha as respostas. A explosão havia sido tão repentina, tão intensa, que mal conseguia processar o que havia acontecido. Mas sabia que algo havia mudado. Que o meu destino havia tomado um rumo inesperado.

— Eu não sei — respondi.

Na sala de avaliação, a funcionária da A.R.G.O.S ainda parecia atordoada, mas gradualmente recobrou a compostura. Acionou um alarme silencioso em seu bracelete e, após alguns minutos, uma equipe de contenção chegou para avaliar os danos e remover os técnicos inconscientes.

Sob seu olhar apreensivo, fui levado para uma sala adjacente, onde me submeteram a uma bateria de exames rápidos. Medições, testes de força, avaliação de habilidades... tudo para tentar entender o que havia acontecido durante o meu "despertar".

Os resultados, obviamente, eram inconclusivos. As máquinas registravam picos de energia anormais, flutuações inexplicáveis na minha estrutura genética, mas ninguém conseguia decifrar o significado daquilo. Para a A.R.G.O.S, eu era um enigma.

Finalmente, após horas de interrogatório e exames, fui liberado. Recebi um cartão de identificação provisório, com a minha foto, o meu nome e a classificação "C-" impressa em letras grandes. As informações no painel, refletindo a leitura da orbe destruída, eram o que estava disponível. Mesmo com a explosão, a A.R.G.O.S não podia simplesmente ignorar o "despertar" registrado. Era burocracia, protocolos a serem seguidos.

A funcionária, que agora se apresentava como Agente Silva, me acompanhou até a área de espera. Seus olhos, ainda carregados de cautela, transmitiam uma mistura de curiosidade e desconfiança.

“— Seus pais estão esperando —” disse ela, com um tom neutro. “— A A.R.G.O.S entrará em contato em breve para agendar o seu treinamento inicial. Por enquanto, siga as orientações contidas no manual do Keyer iniciante.”

Peguei o manual, um calhamaço grosso e intimidante. Agradeci com um aceno de cabeça e me dirigi à porta de saída.

A ansiedade apertava meu peito. Queria ver meus pais, meus irmãos. Precisava do abraço da minha mãe, da força do meu pai. Precisava desesperadamente voltar para casa, para a minha vida normal.

Mas sabia que nada seria mais normal.

Ao sair da sede da A.R.G.O.S, avistei meus pais e meus irmãos esperando do outro lado da rua. Lucas e Theo correram em minha direção, me abraçando com força. Abracei-os também, sentindo o amor e a inocência deles me invadirem.

Meus pais se aproximaram, com sorrisos ansiosos.

“— Filho, está tudo bem? —” perguntou minha mãe, com os olhos marejados.

“— O que aconteceu lá dentro? —” completou meu pai, com um tom preocupado.

Antes que eu pudesse responder, uma limusine preta parou ao nosso lado. A porta se abriu e dela saiu a mulher de cabelo branco e terno vermelho. Atrás dela, o homem de terno preto e o de terno cinza.

“— Boa tarde, Sr. e Sra. Salles. Noah —” disse a mulher, com um sorriso charmoso. ” — Meu nome é Valéria Montenegro, e estes são meus colegas, Sr. Ito e Sr. Silva. Somos representantes da Academia Phoenix.”

Ela estendeu a mão, e meu pai, hesitante, apertou-a.

“— Academia Phoenix? —” perguntou minha mãe, com curiosidade.

“— Uma das academias de treinamento de Keyers mais conceituadas do mundo —” respondeu Valéria, com um tom de orgulho. “— E, após observarmos o desempenho do Noah hoje, ficamos extremamente impressionados.”

— Impressionados? — questionei, com sarcasmo. — A orbe explodiu. Fui classificado como "C -". Não me parece motivo para impressionar alguém.

Valéria riu, um som suave e divertido.

“— Meu caro Noah, você tem um potencial bruto que a A.R.G.O.S sequer consegue mensurar. E é por isso que estamos aqui. Queremos convidá-lo para estudar na Academia Phoenix, no Rio de Janeiro.”

Meus pais trocaram olhares surpresos.

“— Rio de Janeiro? —” repetiu minha mãe, incrédula.

— A Academia Phoenix oferece uma bolsa integral para o Noah, com todas as despesas pagas — continuou Valéria. — Além disso, oferecemos um auxílio e moradia para que sua família possa se mudar para o Rio e ficar perto dele.

A oferta era tentadora. Uma oportunidade única para mudar a minha vida e a da minha família. Mas algo não me cheirava bem. Por que tanto interesse em mim, depois daquele fiasco na sala de avaliação?

— Qual é o problema? — perguntei, desconfiado. — O que vocês querem em troca?

Valéria sorriu, revelando dentes brancos e perfeitos.

“— Queremos apenas dar a você a chance de se tornar o Keyer que você está destinado a ser. E, claro, garantir que a Academia Phoenix tenha em seus quadros um talento tão promissor.”

Ela se aproximou, baixando a voz.

“— E, para ser sincera, Noah, sei que a A.R.G.O.S não vai te dar a atenção que você merece. Eles são burocráticos, lentos, e têm medo do que não entendem. Na Academia Phoenix, você terá liberdade para explorar o seu potencial, para descobrir os seus limites. E, quem sabe, para se tornar um dos maiores Keyers do mundo.”

Ela me olhou nos olhos, transmitindo uma intensidade que me intimidou.

“— Pense nisso, Noah. Pense no futuro da sua família. Pense no seu futuro. E pense em tudo o que você pode se tornar.”

Valéria se afastou, sorrindo para meus pais.

“— Deixarei meu cartão com vocês. Entrem em contato quando tiverem uma decisão.”

Ela entrou na limusine, que partiu em silêncio.

O silêncio tomou conta do ambiente. Meus pais me encaravam, com os olhos cheios de perguntas. Lucas e Theo me puxavam pela camisa, curiosos.

Eu estava no meio de uma encruzilhada. Uma decisão que poderia mudar a minha vida para sempre.