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Capítulo 002 - Quando o Mestre do Trovão Estendeu a Mão

A limusine desapareceu no trânsito da avenida, deixando para trás mais do que promessas: dúvidas, pressões, medo. A família Salles entrou no carro, um modelo antigo de pintura desbotada e vidros manuais. O estofado rangia levemente a cada movimento, mas ali dentro havia um conforto que nenhum laboratório da A.R.G.O.S podia oferecer.

Noah se sentou no banco de trás, espremido entre os gêmeos. Lucas cochilava com a cabeça encostada em seu ombro. Theo cantarolava baixinho, distraído com o reflexo do vidro.

“— Acho que merecemos uma comemoração, não é? —” disse seu pai, ajustando o retrovisor com um sorriso. “— Vamos naquele restaurante que você adora, Noah. Já tá mais do que na hora de gastarmos um pouco daquelas economias, né, amor?”

“— Eu topo —” disse sua mãe. “— Hoje é um marco. Nosso filho é um Keyer agora.”

Noah tentou sorrir, mas algo em seu corpo parecia… travado.

Não era só o cansaço. Era uma ausência.

“— Obrigado, mas... eu não tô com fome —” murmurou.

Seu pai olhou pelo espelho, franzindo o cenho. “— Nem um pouquinho? Nem pra dividir aquele hambúrguer grandão com os seus irmãos?”

Lucas, sonolento, abriu um olho. “— Eu como por você, então!”

A mãe riu. Mas Noah não.

Não era só sem fome. Ele não estava com sede. Nem cansado da forma que esperava estar. Seu corpo estava leve, alerta... até demais. Como se estivesse ligado a uma tomada invisível. Como se não precisasse de descanso. Como se estivesse funcionando fora do que era humano.

“— Filho? —” perguntou sua mãe, preocupada. “— Tem certeza que tá tudo bem? Você tá meio pálido…”

Ele hesitou.

Como explicar que não era apenas uma falta de apetite?

Era como se o corpo estivesse desligado de necessidades básicas. Como se o despertar tivesse apagado algo… ou colocado outra coisa no lugar.

Ele encarou as próprias mãos por um instante.

Elas pareciam as mesmas. Mas ele sabia que não eram.

“— Eu só... preciso de um tempo. Pra pensar.”

A voz saiu baixa, quase engolida pelo barulho do motor.

Noah recostou-se no banco, sentindo a inquietação ferver por dentro. O silêncio da carta. A ausência de sinais. A energia da orbe...

E agora, isso. A fome que não vinha. A sede que não existia.

Algo dentro dele havia mudado.

E ele ainda não sabia o que era.

A loja Sigma K era menor do que eu esperava, mas exalava aquele ar de "coisa importante", com cheiro de plástico novo e metal limpo. Vitrines iluminadas exibiam cartas seladas como se fossem joias raras.

Algumas realmente eram.

Meus irmãos sumiram na primeira fileira de monitores. Theo estava hipnotizado com um simulador de batalha e Lucas já tentava convencer um atendente a deixá-lo segurar uma carta de classe prata — o que obviamente não ia acontecer.

Eu fiquei perto da entrada, olhando tudo de longe. Meus pais falavam com o balconista. Eles não entendiam muito desse universo, mas estavam tentando. Tentando demais, até.

“— Filho,” chamou meu pai, com aquele jeito de quem quer parecer casual. “— Vem aqui um instante. A moça aqui sugeriu um negócio interessante.”

Fui até eles. A atendente — uma mulher de cabelo preso, olhos atentos e uma postura de quem já tinha visto muito Keyer quebrar a cara — sorriu pra mim com gentileza.

“— Você parece meio perdido,” ela disse. “É normal. Muitos Keyers jovens passam por isso. Mas podemos fazer um teste rápido de perfil — nada invasivo — só pra saber pra que tipo de carta você tem mais afinidade.”

Assenti, meio sem acreditar que ia funcionar, mas deixei que ela prendesse o bracelete de leitura no meu pulso. A luz azul acendeu, piscou... e então:

[Análise de Energia K]... Resultado: 1/100. Status: Estável. Sem fluxo.]

A atendente franziu a testa. Mexeu no visor. Me entregou uma pulseira de amplificação simples.

“— Vamos tentar de novo, com reforço.”

Segunda medição. Mesmo resultado.

1.

Silêncio. Ela me olhou como quem procura uma rachadura na parede.

“— Isso é incomum. Com esse nível, é como se a sua Energia K não existisse. Nem mínima, nem passiva. Só... um ponto. Como se o sistema tivesse detectado que você é um Keyer, mas o canal de energia estivesse completamente... fechado.”

Olhei para meus pais. Minha mãe engoliu em seco, mas manteve o sorriso. Meu pai ajeitou o boné, preocupado.

“— Mas isso quer dizer que ele não pode ser um Keyer de verdade?”

A voz do meu pai saiu carregada demais. Ele tentava esconder a tensão, mas era impossível.

“— Não necessariamente,” respondeu ela. “Energia não é tudo.”

Ela mostrou o visor. Meus dados físicos estavam ali, numa barra laranja quase atingindo o vermelho.

“— Seus atributos físicos são altos. Acima da média, na verdade. Força, tempo de reação, estabilidade. Você pode trabalhar com isso.”

Ela se afastou e voltou com uma carta selada num invólucro reforçado.

Era simples. Nada holográfico. Nenhum brilho chamativo.

Aparador de Golpes

Tipo: Defesa Física – Classe Bronze

Custo Energético: Zero.

“— Essa carta é da velha guarda. Permite que você execute defesas com máxima eficiência física. O Keyer sente o impacto, mas consegue aparar ou desviar com precisão quase sobre-humana.”

“— E por que ela não é mais usada?” perguntei.

“— Porque hoje todo mundo quer escudo de energia, mitigação automática, proteção passiva. Essa aqui... te obriga a estar lá. No impacto. Na linha de frente.”

Meu pai pegou a carta nas mãos, como se segurasse algo sagrado.

“— E quanto custa?”

A atendente hesitou por um segundo antes de responder:

“— Mil e oitocentos. Já com o selo de ativação e o chip de compatibilidade incluso.”

Mil e oitocentos.

Não era impossível. Mas não era leve.

Minha mãe puxou a bolsa sem dizer uma palavra. Meus pais trocaram aquele olhar silencioso que só adultos entendem. Um acordo mudo entre o ‘a gente se vira depois’ e o ‘ele precisa disso agora’.

“— A gente leva,” disse meu pai, firme.

Engoli seco. Não era o valor. Era o gesto. O que ele representava.

“— Pai... Mãe... vocês não precisam—”

“— Precisamos, sim,” cortou minha mãe, sorrindo. “— Você sempre deu o máximo sozinho. Agora deixa a gente fazer um pouquinho por você.”

A atendente preparou os papéis e ativou a transferência para o meu slot livre. A carta não brilhou. Não vibrou. Só se encaixou, fria e silenciosa. Mas ali, naquele momento... foi como se eu finalmente tivesse algo concreto nas mãos.

Não era mágica.

Não era poder cósmico.

Era só... esforço.

E às vezes, era tudo o que a gente tinha mesmo.

A carta recém-instalada ainda pesava na minha mão quando um burburinho começou perto da entrada da loja.

Primeiro, foram os sussurros.

Depois, os olhares.

Por fim, o silêncio respeitoso que invadiu a Sigma K como uma onda.

Virei o rosto. Era impossível não notar.

Um homem havia acabado de entrar acompanhado de uma garota que eu jurava ter visto mais cedo, na A.R.G.O.S. Talvez uma sala ao lado, ou cruzando um dos corredores. Mas não era ela que fazia a loja parar. Era ele.

Vestia um terno escuro perfeitamente ajustado, com uma camisa clara e luvas de couro pretas. O cabelo loiro, bem penteado, e a postura reta davam a ele uma presença quase militar, mas era o olhar — firme, elétrico — que congelava o ar ao redor.

Um atendente murmurou quase sem som:

“— É o Trovão de Santana...”

Trovão de Santana.

O apelido de combate.O nome de guerra.

Mas eu sabia o nome verdadeiro: Eduardo M’Bala. Um dos Keyers mais conhecidos de São Paulo. Classificação A. Um dos melhores em combate urbano. Um Âncora.

Pra quem não conhece:

Pioneiros são os que entram nas anomalias — os mundos quebrados, as realidades paralelas, os lugares onde tudo pode dar errado.

Âncoras, como Eduardo, são os que ficam aqui, no nosso lado. São eles que sustentam a linha de defesa, que enfrentam as aberrações que escapam dos portais, que protegem cidades e zonas instáveis. Eles são... os que mantêm o mundo de pé.

Eduardo caminhava com elegância, como se nada ali fosse estranho pra ele. A garota — sua filha, eu imaginei — vinha logo atrás, em silêncio, analisando os painéis com atenção.

Devia ter passado pelo Despertar hoje também. A ficha batia.

Ao lado dele, vinha sua filha — e eu me lembrava vagamente dela na A.R.G.O.S. Talvez no mesmo dia. A mesma idade que eu, talvez um pouco mais nova. Cabelo castanho claro, ondulado, e um olhar agudo, treinado. Ela não parecia deslumbrada por estar ali. Já estava acostumada a esse mundo.

“— Dois slots irrestritos,” dizia Eduardo enquanto caminhava direto até a seção das cartas protegidas. “— Nada dourado. Melhor do que esperávamos, na verdade.”

Meus olhos se arregalaram.

Slots irrestritos. O tipo mais raro, mais versátil. Permite a vinculação de qualquer tipo de carta — desde que se tenha sabedoria, controle e força pra dominá-las.

Melhores até que os dourados, que têm limitações de sinergia.

Eduardo tinha um slot irrestrito e um dourado — esse último ocupado pela carta Céu Trovejante, uma variação poderosa, mas mais limitada, da carta lendária que ele procurava agora. A outra carta dele... era quase um mito.

Academia Antiga. Uma carta de suporte mental de grau máximo, que reduz drasticamente o consumo de energia em habilidades complexas. Inteligência refinada. Concentração absoluta. Combinar isso com controle elétrico era o que fazia dele o Trovão.

E agora, sua filha havia despertado com dois slots irrestritos — e a mesma carta.

Academia Antiga. De novo.

Pai e filha. Dois prodígios. Dois monstros em construção.

“— Com dois irrestritos e uma base energética como a sua, podemos mirar alto,” ele dizia, com calma. “— A próxima carta precisa te levar além. Não sustentar — ampliar.”

Ele olhou para o atendente da loja.

“— Quero saber se têm em estoque a Martelo do Deus dos Raios. Grau máximo. Suporte ofensivo. Preferência por versão vinculável.”

O atendente quase tropeçou ao se virar. Um misto de pânico e reverência. Ele sumiu nos fundos em segundos.

Eu fiquei ali, parado. Me sentindo invisível e, ao mesmo tempo, enraizado naquele momento. Meus pais também assistiam em silêncio. Minha mãe apertava minha mão de leve, como se dissesse: "Não se compara. Seu caminho é outro."

Eduardo analisava os hologramas com precisão clínica. Nenhuma hesitação. Sabia exatamente o que queria.

A filha ficou em silêncio, observando tudo. Não contestava. Não precisava. Era treinada para confiar no instinto do pai — e o instinto de Eduardo era praticamente uma ciência.

De repente, os olhos dele encontraram os meus.

Só por um segundo.

Mas aquele olhar era diferente. Não de comparação.

De avaliação.

Ele sabia o que estava vendo. Talvez lembrasse de mim. Talvez só visse um garoto diferente. Mas naquele instante, eu senti algo que não esperava:

Reconhecimento.

Eduardo assentiu. Um gesto mínimo, mas direto.

Respondi com a cabeça, engolindo o peso que me tomava por dentro.

Minha mãe percebeu. “— Você conhece ele?”

“— Só de nome,” respondi. “Ele é um Âncora. Um dos grandes.”

Meu pai ficou sério. “— Eles são tipo... os generais disso tudo?”

“— São os que seguram o mundo pra ele não cair de vez.”

Meus pais continuavam ao meu lado, observando em silêncio. Meu pai chegou a comentar, de leve:

“— Será que esse tipo de carta aí... é pra gente algum dia?”

“— Pode ser,” respondi. “Mas custa mais que um carro usado.”

Minha mãe riu, baixa, e me abraçou de lado.

“— A gente começa com o que dá. Depois, você constrói o que quiser.”

Olhei para a carta na minha mão.

Aparador de Golpes.

Não era nada chamativo.

Não brilhava. Não flutuava.

Mas... era minha.

Eu ainda observava os dois quando eles mudaram de direção.

Eduardo e sua filha vieram direto em nossa direção.

Meu corpo travou. Não de medo — mas de não saber o que dizer. E meus pais, coitados, estavam tão surpresos quanto eu. Meu pai até ajeitou a gola da camisa, sem saber muito bem por quê.

“— Boa tarde,” disse Eduardo, com um tom firme, mas respeitoso.

Sua filha deu um passo à frente. O olhar dela era direto, mas não arrogante.

“— Oi. Eu sou Lívia M’Bala,” ela disse. “—

Acho que você não me viu, mas eu estava na sala ao lado durante os despertares. Eu... vi sua orbe quebrar.”

Meu coração pulou no peito.

Ela viu aquilo?

“— Ah,” foi tudo o que consegui dizer.

“— Deve ter sido defeito de fabricação,” completou ela, com um encolher de ombros.

“— A R.G.O.S vive cortando custos. Aquele modelo já era usado em exames de reforço, não para leitura inicial. Aposto que o sensor não aguentou a carga.”

Eduardo olhou pra ela, de lado.

Um daqueles olhares de pai que diz muito com pouco.

“— Ou talvez... não tenha sido só isso.”

Lívia franziu levemente a testa, mas não respondeu.

Ele continuou:

“— Às vezes, certos tipos de manifestação ultrapassam o protocolo. E os aparelhos, por mais modernos que sejam, são apenas aparelhos.”

Não sabia como reagir àquilo. Um dos Âncoras mais respeitados do país estava sugerindo — de maneira sutil — que talvez meu Despertar tenha sido maior do que o que a A.R.G.O.S consegue medir.

Antes que eu tentasse dizer algo, minha mãe entrou na conversa.

“— Foi tudo muito rápido, sabe? A gente nem entendeu direito o que aconteceu. Mas aquela moça... Valéria Montenegro? Ela apareceu logo depois e convidou o Noah pra estudar na tal Academia Phoenix, lá no Rio de Janeiro.”

Eduardo se virou com lentidão, como se precisasse de um segundo a mais para processar.

Seus olhos ficaram presos em mim, e depois nos meus pais.

E então ele assentiu, como quem encaixa a última peça de um quebra-cabeça.

“— A Phoenix...” ele murmurou. “— Então ela veio até vocês pessoalmente.”

“— Veio sim,” confirmou meu pai, cruzando os braços, talvez tentando parecer mais calmo do que estava. “— Disse que o Noah era especial. Que podia treinar com eles.”

Os olhos de Eduardo brilharam. Não de inveja. Nem de surpresa exagerada. Mas de algo que eu não sabia se era respeito, curiosidade, ou as duas coisas juntas.

“— A diretora não faz isso com frequência,” ele disse, olhando de volta para mim. “— A Phoenix tem um padrão próprio. Eles não escolhem pelos números. Escolhem pelo que não dá pra medir.”

Antes que pudesse continuar, o atendente voltou do fundo da loja — suando mais do que antes.

“— Senhor M’Bala,” ele disse, ofegante. “— Encontramos uma unidade da carta, sim. O Martelo do Deus dos Raios. Mas… está em outra filial. Esta aqui já está reservada para o senhor. Devemos iniciar o processo de transferência?”

Eduardo olhou para a filha, depois para mim.

E então falou, direto para mim, mas alto o bastante para todos ouvirem:

“— Vá para a Phoenix, Noah.”

Minhas sobrancelhas se ergueram, sem que eu conseguisse impedir.

“— É sério. Vá. Aproveite. Se eles te ofereceram essa chance, é porque viram o que você ainda não viu. E minha filha...”

Ele se virou para Lívia, firme, mas sem perder a ternura.

“— Você vai ser amiga dele. Desde já. A gente aprende muito com quem começa de outro lugar.”

Lívia hesitou um segundo, depois assentiu. “— Claro.”

Eduardo estendeu a mão para meu pai, e depois para minha mãe.

Ambos apertaram, ainda um pouco em choque.

Então ele se afastou, indo até o balcão com o atendente, enquanto Lívia deu um último olhar para mim.

“— Até a Phoenix, Noah,” ela disse com um meio sorriso.

“— Até,” respondi.

E então eles se foram. Eduardo, o Trovão de Santana, e sua filha — como uma tempestade que passou sem destruir nada, mas deixou tudo diferente.

O som da porta da loja se fechando atrás de Eduardo e Lívia parecia encerrar um capítulo por si só. Meus pais ainda estavam processando o que acabara de acontecer. E eu… bom, eu também. Uma parte de mim ainda não tinha absorvido que o Trovão de Santana acabara de me dizer, com todas as letras, que eu devia ir para a Phoenix. E que sua filha devia ser minha amiga.

Quando finalmente estávamos prestes a sair da loja, o atendente que tinha voltado com a carta lendária correu em nossa direção.

“— Com licença... senhor Salles?”

Meu pai olhou pra ele, confuso. “— Sim?”

O atendente ajeitou os óculos digitais no rosto e abriu um sorriso profissional, mas nitidamente animado.

“— Parabéns pela aceitação na Academia Phoenix,” disse ele, como se o anúncio já tivesse sido oficializado. “— O senhor M’Bala deixou orientado que sua família fosse encaminhada para o quarto andar do shopping, onde temos uma loja parceira especializada em trajes e equipamentos para Keyers em formação.”

“— Como é?” minha mãe perguntou, surpresa.

“— Ele pediu discrição,” continuou o atendente, “— mas foi claro: deseja que o senhor Noah inicie sua jornada com a dignidade e o preparo que merece.”

Eu congelei.

Ele fez o quê?

“— Lá vocês vão receber um uniforme padrão da academia, claro —” continuou o atendente com naturalidade, como se falasse sobre comprar pão “— mas também um kit personalizado: traje de treino adaptado às especificidades físicas do Noah, e um traje de combate baseado em seu estilo.

“— Baseado no quê?” soltei, surpreso.

Meu pai abriu a boca. Fechou. Abriu de novo.

“— Ele já mandou fazer tudo isso?”

“— Sim, senhor,” respondeu o atendente, sorrindo. “— E pediu que comparecessem hoje mesmo, se possível, para as medições. Os alfaiates da Phoenix gostam de fazer tudo no corpo, com escaneamento dinâmico. É coisa de outro nível.”

Minha mãe segurou meu braço, meio perdida entre emoção e dúvida.

“— Mas... a gente ainda nem decidiu se ele vai.”

O atendente inclinou a cabeça, simpático, mas seguro. “— Eu acho que o senhor M’Bala acredita que vocês já decidiram. E, sinceramente... quem recusaria um gesto desses vindo dele?”

Fiquei quieto.

O peso da gratidão me caiu sobre os ombros como um casaco inesperado.

Eduardo não disse nada. Não pediu nada.

Só... fez.

Meus pais se entreolharam.

Meu pai respirou fundo, depois sorriu de lado.

“— Vamos ao quarto andar, então.”

E foi assim que, sem que eu dissesse uma palavra a mais, meu futuro começou a tomar forma no corpo de um uniforme que eu ainda não tinha vestido.

Subimos pela escada rolante em silêncio. O quarto andar do shopping tinha um ar diferente dos outros níveis — como se fosse reservado para um público que sabia exatamente o que estava fazendo. As luzes eram mais suaves, o chão mais polido, e os letreiros das lojas trocavam o neon gritante por hologramas elegantes que se desdobravam no ar com suavidade.

Passamos por vitrines com equipamentos táticos, suportes de cartas protegidas por campos de segurança, e manequins exibindo trajes de Keyers de academias variadas. Havia um cuidado especial em como tudo era exibido — não era marketing agressivo. Era quase cerimonial.

Foi então que vimos. No fundo do corredor, ocupando toda a fachada com um brilho discreto mas imponente, estava a loja:

“FORJA PHOENIX — Unidade Oficial da Academia”.

E bem acima da entrada, projetada num painel translúcido com fundo escuro e traços escarlates, estava ela:

Valéria Montenegro.

A diretora da Phoenix.

A imagem dela pairava com os braços cruzados, trajando um uniforme de combate escuro com detalhes em vermelho. Cabelos brancos puxados para trás, expressão firme. E ao lado, uma frase que parecia fazer parte de uma propaganda:

“Precisão. Foco. Corte limpo.”

E, em letras menores:

“A Lâmina Imortal.”

A Lâmina Imortal, li em silêncio. Nunca tinha ouvido aquele apelido antes… mas fazia sentido.

Valéria era conhecida por um único talento — embora ninguém soubesse exatamente como ela o manifestava: Retalhar.

O nome parecia simples, mas o efeito não era.

Ela era rápida. Rápida demais.

Capaz de executar centenas de cortes em segundos, desferindo golpes em múltiplos alvos antes mesmo que soubessem que estavam sendo atacados. Havia relatos de que sua velocidade era tanta que os sensores mal captavam seus movimentos.

Mas o que mais impressionava era sua estamina absurda — como se seu corpo não reconhecesse o conceito de limite.

Ninguém sabia ao certo quais cartas ela usava, nem a combinação de slots que carregava. Mas os resultados estavam aí: campos de batalha vencidos em silêncio, missões completas em minutos e uma academia inteira construída sob sua visão estratégica.

Meu pai soltou um assobio baixo quando viu o painel.

“— Essa mulher é uma máquina.”

Eu só consegui assentir.

E era ela que havia vindo pessoalmente me convidar para a Phoenix.

A porta da loja se abriu com um sussurro mecânico. Lá dentro, o ambiente era quase clínico — minimalista, limpo, com paredes de luz branca e uma recepção pequena onde um funcionário já nos aguardava com um tablet em mãos.

“— Senhor Salles? Bem-vindos à Forja Phoenix. Aguardávamos vocês.”

Enquanto meu pai e eu entrávamos, vi minha mãe ficando com os gêmeos no corredor lateral, onde havia um espaço interativo com simulações de combate e jogos holográficos. Lucas já corria atrás de um dragão digital, e Theo puxava a mãe pela mão, pedindo para tentar “só uma vez”.

Sorri de leve.

Mesmo em meio ao caos que era minha vida agora, eles continuavam... eles mesmos.

Enquanto meu pai e eu éramos guiados para dentro da loja, minha mãe ficou com os gêmeos em uma área interativa no mesmo andar. A entrada do setor era ampla, cheia de luzes e sons holográficos — o tipo de coisa que faz criança esquecer que está no mundo real.

“— Vamos com calma, Theo, calma!”

Ela os segurava pelas mãos como se fosse controlar dois furacões.

“— Senhora Salles?” perguntou um funcionário simpático de terno leve, com um crachá reluzente pendurado no bolso. “— Podemos escanear as crianças para os jogos?”

Ela sorriu, gentil, mas cansada.

“— Me chame de Lorena,” respondeu. “E eles só vão olhar, por enquanto. Muito novos ainda pra começar a treinar de verdade.”

Lucas e Theo protestaram em uníssono, os olhos brilhando ao verem um holograma de um Keyer gigantesco enfrentando uma criatura feita de chamas.

“— A gente já é forte!” disse Lucas.

“— Igual o Noah!” completou Theo.

Lorena soltou uma risada baixa, mas seu olhar passou rapidamente para a entrada de uma sorveteria próxima.

“— Que tal um sorvete antes de qualquer revolução, senhores heróis?”

“— SIM!” gritaram juntos.

Enquanto atravessavam o corredor, foram interrompidos por um homem magro, de blazer bege e sorriso treinado.

“— Me desculpe interromper, senhora,” disse ele, estendendo um cartão metálico. “Sou Vítor Rains, da escola preparatória Bravion, aqui mesmo em São Paulo. Estava observando seus filhos... e, sinceramente, eles têm algo especial.”

Lorena parou, cautelosa. “— Bravion?”

“— Isso mesmo,” ele respondeu, já em modo apresentação. “Focamos em talentos precoces. Não para ativar poderes antes da hora, claro, mas para lapidar desde cedo.

Conhece os heróis canadenses Frostbyte e Snowtrail?”

“— Os gêmeos do gelo?”

Ela conhecia. Todo mundo conhecia.

“— Exatamente. Criados juntos, treinados juntos. Hoje são um dos pares de Âncoras mais fortes do continente. Seus filhos me lembram muito eles — mesma sintonia, mesma energia.”

Lorena ergueu uma sobrancelha.

“— Eles têm sete anos.”

“—Justamente. É quando o brilho começa a aparecer,” disse ele, entregando o cartão com cuidado. “Não precisa decidir nada agora. Só... pense no potencial. A gente adoraria recebê-los em uma visita.”

Ela pegou o cartão com educação.

“— Agradeço. Mas não estou comparando meus filhos com heróis internacionais ainda. Eles são só crianças.”

O recrutador sorriu, entendendo a mensagem, e fez um gesto discreto de despedida antes de se afastar pelo corredor.

Na sorveteria, os três se acomodaram em uma mesa pequena perto da vitrine. Theo escolheu um copo gigante com três sabores. Lucas, um milkshake azul que mudava de cor. Lorena, como sempre, ficou com nada

— só olhando.

“— O Noah foi muito forte hoje, né?” comentou Lucas, entre uma colherada e outra.

“— A orbe dele quebrou,” disse Theo, com orgulho nos olhos. “— Só acontece com os especiais.”

Lorena sorriu com ternura. “— Ele é forte, sim. Sempre foi. Mas vocês também vão ser.”

Os gêmeos se olharam com um brilho difícil de explicar. E naquele instante, ela viu algo neles que conhecia bem: a mesma faísca que viu em Noah, anos atrás, quando ele disse que queria entrar para a Escola Preparatória Horizonte, lá em Atibaia.

Disseram que era impossível.

Mas ele entrou.

E agora estava prestes a ir além do que qualquer um imaginava.

Lorena estendeu os braços e puxou os dois para perto, ainda com o cartão de Bravion fechado na mão.

Talvez fosse cedo.

Mas o futuro... não esperava por ninguém.

Nos reencontramos perto da praça de alimentação, pouco antes do fim da tarde. A luz do sol atravessava as vidraças do shopping, tingindo o chão de dourado suave.

Lucas e Theo vieram correndo com os rostos sujos de sorvete e folhas de papel holográfico nas mãos, rindo como se o mundo estivesse leve. Theo mostrou um desenho meio torto de um dragão que “o Noah venceu com um chute só”. Lucas entregou um cartão interativo onde o bonequinho deles lutava ao lado do irmão mais velho, todos usando capas esvoaçantes.

“— Esse é o Noah Ultra Mode,” disse Lucas, apontando com orgulho.

“— Ele tem mil pontos de defesa e dá soco de raio,” explicou Theo, empolgadíssimo.

Meus pais riram, e eu também. Pela primeira vez no dia, o riso veio fácil.

Ali, juntos, com as mãos cheias de papel lambuzado e a boca manchada de chocolate, a gente riu como família. Riu de verdade. Por um instante, não havia cartas, academias, classificações ou responsabilidades.

Só nós.

Meu pai segurou a mão da minha mãe. Ela encostou a cabeça no ombro dele, e os dois se olharam em silêncio. Mas eu sabia o que aquele olhar dizia.

Que todo sacrifício valeu a pena.

Cada hora de trabalho extra, cada noite mal dormida, cada centavo guardado e cada escolha difícil. Tudo. Por isso ali.

Por nós.

A estrada de volta até Atibaia foi mais silenciosa do que o normal — mas não de cansaço. Era aquele silêncio bom, preenchido por pensamentos leves. Aquela paz rara que vem depois de um dia grande.

Quando viramos a última curva e entramos na cidade, o cenário mudou de vez.

Balões simples estavam pendurados em uma das ruas. Havia amigos, vizinhos, colegas da Escola Preparatória Horizonte esperando na frente da casa da minha tia, onde o pessoal tinha se reunido. Nada formal, nada grande — só o calor das pessoas certas.

Alguns Keyers locais estavam ali também. A maioria deles não era famosa. Nenhum tinha ranking internacional ou poder de manchete.

Mas eram os protetores da cidade, os que estavam sempre por perto. Gente como o Toninho da oficina, que usava uma carta de manipulação magnética para levantar carros; ou a Dona Cecília, que usava telepatia leve para ajudar a escola a manter a ordem entre os alunos mais bagunceiros.

Esses eram os Keyers de verdade pra quem vivia ali. Gente grande no que importa.

Também estavam meus colegas da escola — vários tinham feito seus próprios despertares em outras regiões no mesmo dia. Havia sorrisos nervosos, trocas de histórias, olhos brilhando com possibilidades.

Mas o que chamou atenção mesmo foi a chegada do Mateus Alencar.

Ele desceu da van com aquele andar que só ele tem — confiante sem ser arrogante, sorriso largo no rosto. Tinha sido avaliado com nível A em seu despertar, um feito enorme. E quando me viu, ergueu a mão no ar, gritando:

“— NOAAAAAH! Me disseram que você quebrou a orbe! Foi sem querer ou já tá fazendo drama de protagonista?”

A galera riu. Eu também. E fui até ele. A gente se abraçou daquele jeito meio rival, meio irmão — como dois lados de uma moeda que sempre caía em pé.

“— Se prepara, Alencar,” falei. “Agora o jogo virou.”

O céu sobre Atibaia começava a se tingir de vermelho, e as luzes da rua já ganhavam vida.

Ali, entre amigos, família, e o futuro chegando a passos largos, eu soube: o próximo capítulo já estava começando.

E eu... estava pronto para ele.