Nunca pensei que fosse viver pra ver minha mãe fazendo contas com sorriso no rosto.
Ela olhava o tablet com o cenho franzido, os dedos passando devagar pela tela — mas era diferente. Não era desespero. Era cuidado. Planejamento. Meu pai tava na outra ponta da mesa, com o cartão da Bravion na mão, ainda tentando acreditar que era real.
“— Eles ofereceram isso tudo mesmo?” — ele perguntou, sem tirar os olhos do papel brilhante.
Assenti. “— Sim. Bolsa integral pros gêmeos. Casa em São Paulo. Auxílio mensal.”
Theo e Lucas tavam no canto da sala, brincando com bonequinhos de papel holográfico que ganharam no shopping. Uma versão de mim com capa tava enfrentando um robô gigante. Eu nem sei usar capa.
“— E você vai morar... lá dentro da academia?” — minha mãe perguntou, como se a ideia ainda doesse um pouco.
“— No campus. Mas posso visitar nas folgas. Só que, olha... cês deviam descansar um pouco. Pela primeira vez a gente tem como viver bem. De verdade.”
Eles não responderam de cara. Mas o silêncio deles não era negação. Era alívio tentando se disfarçar de dúvida.
Antes que alguém falasse de novo, a campainha tocou. E ali, na porta da nossa casa simples em Atibaia, tava a família M’Bala. Eduardo, sério como sempre. Lívia com aquele olhar que te examina por dentro. E... uma mulher que eu nunca tinha visto, mas que parecia carregar o mundo nas costas com leveza.
“— Boa tarde,” disse Eduardo, com aquele tom que soa respeitoso, mesmo sem abaixar o queixo. “— Podemos entrar?”
Meu pai abriu espaço. E eles entraram como se já conhecessem o lugar.
A mulher se apresentou com um aperto de mão firme.
“— Ayana M’Bala,” ela disse. “— Sou coordenadora e financiadora da Associação Equinox, uma rede independente que mantém quatro guildas sob sua proteção. E mãe da Lívia, claro.”
A mulher tinha uma presença absurda. Firme sem ser fria. Elegante sem parecer distante. E o jeito como olhou pra mim... não era julgamento. Era cálculo. Visão.
“— Não vim aqui como recrutadora,” disse ela, sentando na sala com a naturalidade de quem já mandou reformar lugares assim. “— Vim como alguém que aposta no que ainda não foi revelado.”
Ela me entregou um pequeno estojo. Dentro, um celular escuro, moderno, sem marca. O tipo de coisa que parece simples, mas carrega mundos.
“— Contato seguro,” disse ela. “— Entre nós. Entre vocês. E entre possibilidades.”
Lívia sentou ao meu lado, quase sorrindo. A gente começou a conversar. Assuntos soltos. Cartas. Treinos. Teorias sobre a Phoenix. Descobri que o humor dela é ácido, o tipo que bate de frente com o meu. E, estranhamente, isso me fez sorrir.
As semanas passaram voando. Enquanto eu separava as roupas pra viagem, testava meu novo uniforme e me despedida dos vizinhos, as mensagens entre mim e Lívia viraram rotina. Conversas longas, memes estranhos, piadas internas. Às vezes eu abria o celular só pra ver se ela tinha digitado algo. E quase sempre... tinha.
No dia da partida, o céu tava meio nublado — mas a cidade tava em festa. Balões, faixas improvisadas, vizinhos batendo palma. No meio da praça, ele apareceu.
Matheus.
Do mesmo jeito de sempre: uniforme meio torto, tênis sujo, sorriso de quem tá pronto pra ser herói antes do tempo.
“— Vai mesmo me deixar com essa cidade chata toda pra mim?” — ele perguntou, fingindo drama.
“— Você sempre disse que era o protagonista. Tô só abrindo espaço.”
A gente se abraçou. Forte. Como dois irmãos que não têm o mesmo sangue, mas dividem a mesma alma.
“— Se cuida lá, beleza? Não vira estatística. E se der ruim... me chama.”
“— Você vai me alcançar,” respondi. “A gente ainda vai lutar lado a lado.”
Ele assentiu. E aí fez o que Matheus sempre faz: abriu a boca e estragou o momento bonito.
“— E quando você e a Lívia assumirem, me convida pro casamento. Cês formam um casal top.”
“— Cala a boca.”
“— Só tô dizendo o que todo mundo tá pensando,” disse ele, dando aquele sorrisinho safado.
“— Você e esse seu radar de novela mexicana...”
“— Tá vendo? Já tão brigando como um casal de verdade.”
A buzina do ônibus da Phoenix cortou a conversa. Era hora.
Subi com a mochila nas costas e o coração apertado. Me despedi dos meus pais com um abraço longo. Dos meus irmãos, com um beijo na testa e a promessa de que eu ia voltar.
E ali, pela janela, vi Matheus acenando. Os gêmeos correndo atrás do ônibus. Minha mãe com os olhos marejados. Meu pai firme, mas com as mãos tremendo.
Fechei os olhos por um instante.
A Phoenix me esperava.
Mas o que eu carregava comigo... era bem mais do que poder.
Era uma história inteira.
E ela ainda tava só começando.
Meu nome é Ademir Salles. Pai do Noah, do Lucas e do Theo. Marido da Lorena — a mulher mais forte que eu já conheci, embora ela diga que sou eu quem tem as costas largas. A verdade é que ela é o cimento. Eu só sou o tijolo.
A vida mudou muito nos últimos meses.
Antes, nossa maior meta era pagar o aluguel e manter o tanque cheio até sexta. Agora... temos uma casa em São Paulo. E não foi milagre. Foi esforço, sim. Mas também teve uma dose generosa de gente poderosa nos bastidores.
A Phoenix cuidou da maior parte. A Bravion, escola dos gêmeos, entrou com o resto.
Disseram que queriam os meninos por “potencial raro”. Mas foi só semanas depois que descobrimos: havia um benfeitor anônimo por trás. Um nome que ninguém falava. Só um cartão branco, deixado discretamente no processo de matrícula, com um brasão dourado que lembrava um olho entre galhos de árvore.
Não fazia sentido. A gente era só uma família do interior. Mas, por algum motivo, alguém lá em cima acreditava nos nossos filhos.
A casa que escolhemos era bonita. Não era mansão nem palácio. Mas era casa. Com piso limpo, janelas grandes, uma varanda pequena e um quintal com espaço pra correr. Um quarto pro Lucas e outro pro Theo — do jeitinho que eles queriam: com adesivos de heróis nas paredes e cortina do mesmo time. O quarto da gente, simples, mas com armário grande, coisa que a Lorena sempre sonhou. E um quarto só pro Noah. Decorado por mim e pelos meninos. A gente queria que ele sentisse que ainda tinha lugar aqui.
Mesmo que estivesse longe.
Na primeira manhã na casa nova, sentei no degrau da varanda com uma xícara de café na mão e pensei em como tudo isso começou.
Pensei no Quebra-Mundo.
Vou te contar direito. Porque tem coisa que o povo fala como se tivesse acontecido num só dia. Como se o céu tivesse aberto um buraco, monstros tivessem saído, e pronto: mundo novo.
Mas não foi assim. Foi mais lento. Mais assustador por causa disso.
Começou com notícia pequena, daquelas que a gente passa o olho no jornal da manhã e esquece até a hora do almoço.
“Fenômeno atmosférico incomum é registrado no Chile. Especialistas apontam reflexos solares.”
Depois veio uma foto que viralizou: uma espiral esquisita no céu da Noruega, no meio da noite. Parecia photoshop, mas tava nos sites sérios. Um círculo azul, no ar, girando devagar, como se tivesse abrindo. Mas ninguém sabia o quê.
Aí começaram as quedas de sinal. Aviões fazendo desvios. Satélites desligando do nada. E uns relatos estranhos: gente que viu "sombras flutuando no meio do mato", ou ouviu barulhos de estática vindo de cima das árvores.
O governo disse que eram anomalias eletromagnéticas. O pessoal da internet, claro, falou de invasão alienígena. Mas a maioria seguiu a vida. Porque a vida continua. Até não continuar.
Eu tava em Bragança Paulista, fim de janeiro, trabalhando numa casa que ainda nem tinha telhado. O rádio tava ligado quando veio a primeira notícia séria:
“URGENTE: colapso em rede de energia no interior de Minas. Vídeos mostram luzes azuis no céu e sons estranhos registrados por moradores.”
Nesse dia, o céu tremeu.
Eu lembro porque o barulho não foi de trovão. Foi mais grave. Como o som de uma pedra gigante rachando. E então... a luz.
Uma fenda no céu, ali, bem no centro da cidade. Parecia um risco no papel, mas em três dimensões.
As primeiras criaturas saíram de lá três dias depois.
No início, a maioria era inofensiva — se é que dá pra chamar assim. Pequenos animais com pele de vidro, pássaros sem olhos, criaturas que se desmanchavam ao encostar em concreto. Coisa de pesadelo, mas... fraca.
A população entrou em pânico mesmo foi quando começaram os desaparecimentos.
Pessoas sumindo em áreas de floresta próximas aos portais. Objetos flutuando. Campos inteiros apodrecendo em minutos.
E a televisão tentando explicar:
“Cientistas da Universidade de Munique dizem que os portais podem ser janelas entre realidades.”
“Igrejas declaram estado de penitência global: ‘Estamos vendo a ira divina’.”
“Teóricos falam de falha na simulação. Hashtag #FimDoCódigoHumano vira trending topic.”
Mas o que realmente virou tudo de cabeça pra baixo foram os vídeos. Pessoas enfrentando as criaturas. Gente comum — algumas com pedaços de pau, outras com as mãos nuas — e, de alguma forma... vencendo.
Era real. Filmado de celular, de câmera de segurança, de drone. Um rapaz em Belém que fazia os pés racharem o chão com um soco. Uma mulher no México que transformava água da chuva em lanças. Nenhum deles tinha equipamento. Mas tinham algo mais.
A imprensa chamou de “Manifestações de Potencial”.
Nós ainda não sabíamos, mas ali estavam os primeiros Keyers.
Foi só depois, quando os portais começaram a abrir simultaneamente em vários países, que a coisa virou guerra. O mundo passou a operar com dois relógios: o das notícias e o dos portais. E a A.R.G.O.S apareceu.
No início, era só um nome em pronunciamento. "Agência de Resposta Global a Ocorrências Singulares". Um monte de sílaba difícil e gente engravatada falando de protocolos emergenciais. Mas não demorou muito até os primeiros deles aparecerem em campo. Equipamentos diferentes. Drones com sensores. Uniformes táticos. Silêncio absoluto.
E ordens. Muitas ordens.
Foi no segundo mês do Quebra-Mundo que eu conheci a Lorena.
O abrigo de Bragança já tava montado há uma semana. Era improvisado, numa escola antiga perto da linha do trem. Eu ajudava a descarregar caixas. Ela organizava os colchões no refeitório. Tava com a camisa suada, um lenço amarrado no pulso e um caderno cheio de nomes na mão.
“— Você parece perdido,” foi o que ela me disse.
Eu respondi:
“— E você parece o tipo de pessoa que manda em tudo isso aqui.”
Ela riu. Riso de quem tá cansada, mas ainda acredita que vale a pena rir.
A gente ficou ali por quase uma semana. Ajudando onde dava. Trocando comida por histórias. E tentando dormir com o som dos portais crepitando à distância, como se fossem fogueiras abertas no céu.
Depois disso... bem, o mundo nunca voltou ao normal. Mas a gente tentou.
A A.R.G.O.S ganhou poder. Os Keyers começaram a ser identificados. Os portais foram contidos, mas nunca fechados por completo. Eles seguem aparecendo até hoje, em ciclos. Como ondas. Como fôlego do outro lado.
E a gente... a gente foi levando.
Lorena e eu construímos uma vida em Atibaia. Tivemos o Noah. Depois os gêmeos. E, contra todas as probabilidades, nossos filhos nasceram com o Gene K.
Três Keyers. Numa casa feita de tijolo, suor e café coado.
Às vezes eu penso se o mundo errou de endereço...
Mas a verdade? Talvez seja exatamente esse o ponto.
O mundo mudou.
Mas a esperança ainda escolhe onde mora.
O Noah tinha só sete anos quando começou a tentar mudar o próprio destino.
Sete.
Ele não viveu o Quebra-Mundo. Já nasceu num mundo que tinha portais no céu e monstros nos livros didáticos. Cresceu ouvindo falar da A.R.G.O.S como quem fala da Receita Federal. Mas mesmo assim... parecia entender o peso daquilo tudo melhor do que muito adulto.
Quando ele fez sete, veio o resultado do teste básico no posto de saúde: Gene K positivo. A enfermeira olhou com cautela, explicou os protocolos, as restrições legais.
Disse que o Gene ainda não despertava até os quatorze, mas que o acompanhamento precisava ser constante.
A Lorena tava grávida dos gêmeos nessa época. A gestação exigia cuidado, repouso absoluto. E eu tava ralando dobrado. Serviço de sol a sol, correndo de um canteiro pra outro pra pagar aluguel, comida, remédio... o básico.
E foi ali, no meio desse turbilhão, que o Noah começou a estudar por conta própria. Sem alarde. Sem pedir ajuda.
Mas o que ele não fez sozinho — e isso eu faço questão de lembrar — ele fez com o Matheus.
Os dois tinham a mesma idade, sete anos, e pareciam almas gêmeas de batalha.
Andavam juntos o dia inteiro. Estudavam juntos. Treinavam juntos. Ajudavam um ao outro. E o Matheus, com aquele jeito esquentado e teimoso, era o único que conseguia fazer o Noah rir quando ele ficava sério demais.
A gente não sabia, mas eles estavam treinando como se o mundo já tivesse escolhido eles. Usavam apostilas da internet, vídeos de análise de energia passiva, técnicas de respiração, até tentavam simular situações de combate usando bonecos e vassouras.
Eles sonhavam com as escolas preparatórias, aquelas que formavam os futuros Keyers antes do Despertar oficial.
Aqui em Atibaia, a mais disputada era a tal da Escola Horizonte. A mensalidade era absurda. Mas existia uma chance: as três melhores notas na prova de admissão ganhavam bolsa integral.
Então os meninos se prepararam.
Eu achava que o Noah tava brincando.
Achava que era só curiosidade. Mas ele acordava antes da gente. Ficava no canto da cozinha, estudando. Ouvia áudios no celular antigo que o Matheus tinha ganhado do tio.
Dividiam tudo: comida, caderno, lápis.
No dia da prova, os dois foram juntos.
Roupinha simples, mochila gasta, e uma coragem que nenhum dos engravatados na fila tinha. E olha... ninguém esperava.
Duas semanas depois, a carta chegou. O nome do Noah: primeiro lugar. O Matheus: terceiro. Os dois conseguiram. Bolsa integral.
A Lorena chorou na hora. Eu abracei o Noah e quase quebrei ele no meio, de tanto orgulho. O Matheus apareceu mais tarde, e os dois só trocaram um soquinho no ombro — como se dissessem “missão cumprida”.
Eles tinham sete anos.
E naquele dia, eu soube.
O mundo pode até estar quebrado...
Mas dois meninos de mochila rasgada e sonho grande tinham acabado de consertar um pedaço dele.
Sete anos. Foi isso que se passou desde aquele dia em que o Noah, com só sete anos, decidiu lutar contra um destino que já parecia traçado.
Sete anos de caminhada.
Sete anos de batalha diária, de prova atrás de prova, de um menino que cresceu sem esperar pelo futuro.
Sete anos vendo ele conquistar o mundo com o mesmo caderno velho, o mesmo tênis surrado e a mesma vontade que só os grandes carregam no peito.
Todos os anos ele fazia questão de repetir o processo — refazer o caminho — como se tivesse algo a provar não pros outros, mas pra ele mesmo.
E ele provou.
Não uma, nem duas, mas sete vezes.
Sete anos seguidos sendo aprovado na bolsa integral da Escola Horizonte.
Até que, nos últimos três, a própria escola reconheceu:
“A vaga agora é sua. Fique o tempo que quiser.”
Mas o mais bonito é que ele nunca afrouxou o passo. Nunca relaxou.
Mesmo com a vaga garantida, continuava acordando cedo, estudando com afinco, se preparando como se ainda estivesse tentando entrar. Como se estivesse começando do zero todos os dias.
E esse esforço... mudou tudo.
Mudou a mim. Mudou a Lorena. Mudou a nossa casa.
Porque não é todo dia que um filho inspira os pais. Mas o Noah fez isso.
Com o esforço dele, eu tive coragem de aceitar obras maiores.
Com o exemplo dele, a Lorena encontrou força mesmo nos dias mais difíceis.
Com a persistência dele, a gente deixou de apenas sobreviver... e começou a construir.
Foi assim que conseguimos, aos poucos, conquistar aquelas coisas que pra muita gente parecem pequenas — mas pra gente sempre foram gigantes.
Conseguimos construir o quarto dele.
Do jeito que ele queria. Um espaço só dele. Estante pro material, mesa de estudos, uma parede que ele mesmo pintou com os irmãos.
Depois veio o carro da família — usado, simples, mas nosso. Com ele, dava pra buscar a Lorena no posto, levar os meninos pra escola, visitar a família aos domingos.
Coisas pequenas. Mas que só aconteceram porque um menino de sete anos decidiu não aceitar o que o mundo tinha reservado pra ele.
Agora, tô aqui. Sentado na varanda da nossa nova casa em São Paulo.
O café tá quente. O céu tá limpo. E tudo ao redor parece mais leve.
Ouço o som da porta.
Lorena aparece.
Tá linda. Como sempre. Com aquele sorriso que ela guarda só pros dias especiais.
Vestido novo, cabelo preso com cuidado.
E logo atrás dela, Lucas e Theo.
Meus meninos.
Uniforme passado, tênis limpo, as mochilas novinhas nas costas. O brilho no olho é o mesmo que eu via no Noah quando ele partia pra mais um dia na Horizonte.
Eles estão prontos pra ir pra Bravion.
Os filhos mais novos seguindo os passos do irmão mais velho.
O caminho que o Noah abriu com luta e coragem agora é estrada pra eles caminharem de cabeça erguida.
Lorena me dá um beijo. Os meninos também. Me olham como se dissessem:
“A gente entendeu, pai. Pode deixar.”
E eu fico ali, sentado, vendo eles atravessarem o portão.
Olho ao redor. A casa. A mesa. O café.
Minha família.
E penso:
É isso que o Noah construiu.
Ele não foi só o primeiro a vencer.
Ele foi o primeiro a acreditar.
E agora, quando olho pra essa cena — minha mulher sorrindo, meus filhos de uniforme pronto, minha casa com cheiro de futuro — eu entendo que, no fim das contas...
…o mundo pode ter se quebrado oito anos atrás.
Mas aqui em casa, quem manda é a esperança.
E ela veste camisa limpa, tênis de corrida e atende pelo nome de Salles.
O ônibus da Phoenix parou com um chiado suave bem diante do portão da academia. Eu já esperava algo grande, mas o que vi me pegou por dentro.
A Academia Phoenix se erguia entre o verde da serra e o cheiro do mar. Os muros baixos não escondiam os prédios modernos, todos em concreto liso e vidro fosco, com detalhes em vermelho queimado nas janelas e nos pilares. Nenhuma ostentação — só firmeza. Precisão. Como se tivessem desenhado aquilo com uma espada.
Paraty era diferente de tudo que eu conhecia. O calor era úmido, e o ar parecia mais pesado, como se o lugar estivesse sempre pronto pra chover ou pra explodir. E ali, diante do portão principal da academia, alguma coisa no peito me dizia: “Agora começa de verdade.”
Comecei a recolher minhas coisas do bagageiro quando vi uma figura conhecida parada não muito longe, ao lado de uma Mercedes preta.
Lívia.
O uniforme preto com detalhes em vermelho e laranja queimado encaixava nela como parte do corpo. O brasão da Phoenix no ombro parecia ter nascido ali.
Ela estava encostada na lateral do carro, de braços cruzados, o rosto voltado na minha direção, como se estivesse esperando.
E, pelo jeito, estava mesmo.
Me aproximei, curioso.
“— Você tava me esperando?” perguntei, sem enrolar.
Ela apertou os lábios, quase impaciente. Um brilho surgiu por um instante na ponta dos dedos — um quase raio, contido.
“— Não viaja,” respondeu seca. “Você não é tão importante assim.”
Mas o jeito como cruzou os braços de novo, o leve desvio no olhar... me entregou a resposta real.
Ela tava ali por mim.
Lívia se afastou por um instante e voltou com algo nas mãos.
Ela carregava a Carta do Martelo do Rei dos Raios.
Ainda no mesmo invólucro resistente da loja onde tínhamos nos conhecido semanas antes. O papel firme, a textura marcada com o selo de ativação, o nome gravado com tinta fosca. Nada chamativo. Nada exagerado. Mas todo o peso estava ali.
Ela parou à minha frente, estendeu a carta.
“— A gente devia trocar,” disse.
“— Trocar?” repeti, franzindo a testa. “Por quê?”
“— Porque importa,” ela disse, sem rodeio. “Não por função. Por significado.”
Fiquei quieto.
As cartas não eram colecionáveis. Não eram substituíveis.
A dela era rara, cara, poderosa — escolhida por ninguém menos que o próprio Eduardo M’Bala, o Trovão de Santana.
A minha... era a mais simples da loja.
Aparador de Golpes.
Defesa física, zero custo energético. Exigia estar presente, no impacto, no risco.
Não protegia você. Te obrigava a se manter firme. A segurar o mundo com o próprio corpo.
Lembrei da loja.
Da minha mãe puxando a bolsa sem hesitar.
Do meu pai dizendo “a gente leva” com os olhos firmes.
De como aquilo me ensinou o que era amor sem precisar de palavra.
A carta não brilhava. Não se destacava.
Mas carregava o esforço de uma vida inteira.
Olhei pra ela.
“— Por que você quer mesmo fazer isso?” perguntei, baixo.
Lívia encarou minha carta como se visse mais do que só papel.
“— Porque quando eu vi você pegando essa carta... eu entendi o que ela significava. Não é sobre poder. É sobre tudo o que te trouxe até aqui. E trocar com você agora é minha forma de dizer... que eu reconheço isso.”
Demorei um segundo.
Então estendi minha carta pra ela.
Ela a pegou com cuidado, como se estivesse segurando algo precioso demais pra ser apressado.
Não sorriu. Mas algo nos olhos dela mudou.
Ela valorizava aquilo. Entendia aquilo.
E eu, segurando a carta dela, me dei conta — mesmo sem entender direito no começo — que aquele gesto não era vaidade. Não era cerimônia.
Era respeito.
O tipo de respeito que se conquista. Que se constrói.
Lívia ainda segurava minha carta quando a voz surgiu atrás dela.
“— Isso aí é sério mesmo?”
O tom era debochado. E falso. Aquele tipo de provocação que não precisava ser alta pra ser irritante.
Um garoto parou ao nosso lado. Mais velho, mais alto, com o uniforme da Phoenix perfeitamente ajustado, como se estivesse posando pra alguma propaganda. O cabelo preso num coque baixo, e um sotaque gringo arranhando o português como quem nunca precisou se esforçar pra ser entendido.
Ele olhava pra carta. Não pra mim.
Mas a frase era pra mim.
“— Carta de treino? Pensei que aqui só entrava gente de verdade.”
Sem pedir, ele puxou a carta da mão da Lívia com um gesto seco.
Girou entre os dedos com desprezo.
Lívia deu um passo à frente, mas não disse nada.
Eu me movi.
“— Devolve,” falei, direto.
Ele sorriu, como quem vê um cachorro latindo.
“— Vai fazer o quê? Me enfrentar com isso aqui no bolso?”
Levantei o pé pra dar um passo. Ele não se mexeu.
Me encarou com aquele olhar de superioridade mole.
Mas antes que qualquer um de nós fizesse alguma coisa, uma voz veio por trás de mim:
“Se não quiser que eu te arrebente todo no primeiro dia, eu devolveria.”
O garoto olhou devagar, por cima do ombro.
Não pra mim.
Não pra quem ele estava peitando.
Olhou pra Matheus, que vinha caminhando, o uniforme da Phoenix todo torto, mochila pendurada num braço só, sorriso despreocupado no rosto.
Mas não foi Matheus que o fez hesitar.
Foi quem estava atrás dele.
O garoto travou quando viu.
Seu olhar vacilou.
Ali, imóvel sob a sombra de uma árvore, braços cruzados e olhar de pedra, estava Eduardo M’Bala.
O Sr. M’Bala.
O Trovão de Santana.
Ele não disse uma palavra.
Só observava. Silencioso. Firme. Como uma muralha.
O garoto engoliu em seco, devolveu a carta para Lívia — com um gesto rápido, quase automático — e saiu do local sem dizer nada.
Não correu. Mas também não olhou pra trás.
Matheus soltou o ar com força, como se tivesse acabado de encarar um monstro.
“— Uau. Ainda tenho presença, hein?”
Sorriu, abriu os braços como quem esperava aplausos.
“— Foi o Sr. M’Bala,” eu disse, secando o suor da mão na calça.
“— É, eu vi,” murmurou ele. “Mas deixa eu acreditar que fui eu, só um pouquinho.”
Lívia ajeitou a carta na mão, com o olhar sério, e olhou de um pra outro.
Então, sem tirar os olhos de mim, perguntou:
“— Ele?”
Assenti, com um meio sorriso.
“— Lívia, esse é o Matheus,” eu disse. “Meu melhor amigo.”
Matheus estendeu a mão, mais formal do que o normal.
“— Sou o outro problema da vida dele,” disse. “A parte barulhenta. E às vezes genial.”
Ela aceitou o aperto, firme, mas sem deixar escapar o sorriso no canto da boca.
Ali, naquele instante, os três juntos pela primeira vez, sob o sol quente da costa e o olhar distante do Sr. M’Bala, eu entendi.
A Phoenix podia ser um desafio novo. Mas eu não estava entrando sozinho.