Capítulo II – Chamas da Fronteira

Fronteira Norte de Eldravia com Harland – Acampamento de Linha Avançada – Ano 1262 D.C.

Nael Einsenhart – 17 anos

A noite estava pesada, o céu sem estrelas, como se até o firmamento aguardasse em silêncio. O acampamento se estendia em barracas ordenadas e trincheiras cavadas às pressas, a menos de dois quilômetros da fronteira com o Reino de Harland. O som constante das pás, o estalar das botas na lama e o farfalhar das mantas úmidas criavam uma melodia incômoda — um prelúdio à desgraça.

Nael se encontrava sentado em uma caixa de munições, com o rifle apoiado entre os joelhos. A madeira da coronha ainda cheirava a verniz, mal usada. Suas mãos tremiam, apesar do esforço para mantê-las firmes. Era seu primeiro dia em posição de combate. Até ali, só havia marchado, cavado, e escutado histórias dos veteranos.

A carta da irmã estava guardada no bolso interno do casaco. Ele não a relera. Não conseguia. A simples lembrança dos olhos dela o enfraquecia mais que a ideia de enfrentar o inimigo.

— Einsenhart — chamou um sargento, a voz baixa, mas tensa —, fique atento. Os batedores relataram movimentação de tropas harlandesas na colina sul.

Nael assentiu, engolindo seco. O coração martelava no peito como um tambor de guerra.

Minutos depois, o som veio.

Primeiro, o galope abafado de cavalaria inimiga contornando a floresta. Depois, os disparos — secos, coordenados, como se cada bala tivesse um nome. Os oficiais de Eldravia gritaram ordens, e os jovens soldados correram para suas posições atrás dos muros improvisados de sacos de areia.

A batalha começou sem aviso formal, sem toque de corneta. Era apenas caos.

Nael viu os primeiros inimigos surgirem da névoa — figuras com fardas longas, baionetas brilhando à luz das tochas. Eles gritavam algo em sua língua áspera, e abriram fogo.

O som da primeira bala passando rente à orelha de Nael foi como um trovão pessoal.

Instintivamente, ele se abaixou, puxou o gatilho — e errou.

Engatilhou, mirou de novo.

Disparou.

Alguém caiu.

Não sabia se foi ele quem acertou. Não sabia se importava.

Gritos. Explosões pequenas de granadas arremessadas com as mãos. O cheiro de pólvora e medo se misturando no ar. Os cavalos da artilharia harlandesa avançavam pela estrada de cascalho, mas as minas instaladas dias antes os deteram. Um clarão iluminou a madrugada quando um dos vagões de munição explodiu.

Nael rastejou para mais perto da linha de frente. Um camarada ao lado levou um tiro no ombro e caiu com um berro agudo. O sangue espirrou no rosto dele.

Ele não parou.

Atirou.

Recarregou.

Atirou de novo.

No fim da madrugada, os soldados de Harland haviam recuado, deixando dezenas de corpos no campo. Eldravia perdera muitos também.

O sol nasceu tímido, cortando a névoa com seus primeiros raios. Nael se sentou de novo, agora com os olhos fixos no horizonte. As mãos ainda tremiam. O rosto sujo de lama e sangue. Mas algo dentro dele havia mudado.

“Meu batismo de fogo. Não houve glória. Só sobrevivência.”

Segundo Dia – 4h37 da manhã – Linha Avançada de Eldravia

A noite mal tinha se dissipado. As cinzas da batalha anterior ainda fumegavam em crateras abertas na terra, e os corvos circulavam baixo, como se tivessem pressa em recomeçar o banquete.

Nael não dormira.

Ninguém dormira.

O silêncio era opressor. Mas então, sem qualquer sinal visível do inimigo, veio o som mais horrível que os ouvidos humanos poderiam suportar: um apito distante, crescente, como se o próprio céu gritasse.

Um segundo depois — o impacto.

O chão tremeu como se um gigante tivesse esmurrado a terra. A explosão levantou lama, pedras, pedaços de gente. O clarão se refletiu nos olhos de Nael antes mesmo de ele registrar o som. E antes que pudesse respirar, veio outro.

Whiiiiiiiiiiiiii-BRAAAAM!

— Artilharia inimiga! CUBRAM-SE! — gritou o sargento, correndo abaixado.

Nael mergulhou para dentro de uma trincheira, aterrissando sobre alguém que já estava morto — um dos novos recrutas, com o rosto esmagado.

“Eles nem estão perto. Eles nem precisam ver a gente.”

Esse pensamento o corroeu mais do que o medo de levar um tiro. A artilharia de longo alcance dos harlandesses estava bem além da linha de visão, provavelmente posicionada em colinas protegidas por floresta. E ainda assim, estavam despedaçando a linha eldreviana sem sequer sujar as botas.

— Eles querem enfraquecer a moral antes de atacar de novo — disse um tenente, com o rosto coberto de fuligem. — E estão conseguindo.

Os soldados corriam como ratos em meio ao bombardeio. Não havia como responder. As poucas baterias eldrevianas ali estavam desmontadas e sem ângulo. Cada explosão era um lembrete cruel da impotência.

— Fique comigo, Nael — disse um soldado mais velho, o rosto endurecido por campanhas passadas. — O pior não é o barulho, garoto... é o silêncio entre eles.

E o silêncio veio. Longo o suficiente para que alguns respirassem aliviados.

Longo o suficiente para gerar esperança.

Longo o suficiente para o próximo disparo parecer ainda mais mortal.

Nael apertou os olhos, o corpo encolhido atrás de uma barreira de madeira e terra. Um clarão explodiu ao lado e ele sentiu a pressão surda da onda de choque atravessar seus ossos. O rifle havia sumido da mão dele. Seu ouvido zunia. A boca estava cheia de terra.

Por um momento, achou que tinha morrido.

Mas não. Estava ali. Respirando. Tremendo.

E a guerra ainda não tinha acabado.

Quando os bombardeios cessaram por volta das 6h, um novo avanço da infantaria harlandesa foi iniciado. Mas agora, Eldravia estava fraturada. Muitos bunkers haviam sido destruídos. Parte das defesas estava em ruínas. Vários comandantes haviam morrido.

Nael, mancando, sem seu rifle, com um caco de baioneta em uma das mãos, seguiu com outros sobreviventes para segurar o flanco norte.

A guerra, agora, tinha rosto, cheiro, som.

E era o inferno.

O acampamento de fronteira de Eldravia estava coberto por uma neblina pesada, densa, que cheirava a pólvora vencida, tabaco queimado e ferrugem. Nael apertava os dedos contra o cabo do rifle como se este pudesse desaparecer a qualquer momento — ou pior, falhar. O chão era barro, misturado com palha, sangue seco e o que restava de cavalos mortos semanas atrás. Ele ainda não sabia se o som distante era trovão ou canhões inimigos.

Havia algo podre no ar. Não apenas o cheiro — era o silêncio forçado. O tipo de silêncio que só acontece antes de uma tempestade. Ou de uma guerra.

Nael era só mais um entre dezenas de recrutas eldravianos, alinhados como bonecos em trincheiras rasas, com casacos pesados demais e botas que mal cabiam. Ele mal conhecia os rostos ao lado — todos com a mesma expressão: medo disfarçado de foco. Ele tinha dezoito invernos e nunca havia disparado contra nada vivo além de um coelho.

Ao seu lado, um rapaz franzino, cabelo castanho bagunçado e uma cicatriz recente no queixo, ajustava o cinto do uniforme com mãos trêmulas. Olhou de relance para Nael e tentou um sorriso.

— Taren Voska. — estendeu a mão, como se aquilo fosse um encontro casual, e não a véspera de um banho de sangue.

Nael apertou a mão dele, sentindo o suor frio.

— Nael Einsenhart

— Bom... tomara que a gente esteja no lado certo da artilharia.

Eles riram, nervosos. Era a única coisa que podiam fazer.

Na manhã seguinte, a realidade estalou como um chicote.

A primeira salva de tiros não foi ouvida — foi sentida. O chão estremeceu como se um deus bêbado tivesse tropeçado sobre o mundo. A primeira linha de infantaria já havia sido enviada ao campo aberto quando os tiros curtos dos mosquetes começaram a pipocar à distância. Então o barulho aumentou. Um uivo agudo, depois um impacto devastador.

— Artilharia! — gritou alguém, mas era tarde.

O céu explodiu em vermelho e barro. Pedaços de madeira, metal e carne voaram ao redor de Nael. Ele caiu de lado, os ouvidos zumbindo, o sangue de outro homem salpicando seu rosto.

— Levanta! — a voz de Taren veio, grave, urgente. — Vem comigo! Se ficar aí, vira adubo!

Nael se ergueu sem saber como. Seguiu Taren instintivamente até um pedaço de trincheira semi-destruída. As artilharias harlandesses — malditos bastardos, como todos passaram a chamá-los — haviam começado seu ataque antecipadamente no segundo dia. Com precisão cruel, bombardeavam a retaguarda eldraviana para impedir reforços. Era um massacre. E eles sabiam.

Taren puxou Nael para dentro da cobertura. Havia três corpos ali. Dois ainda se mexiam.

— Eles disseram que a gente ia marchar até a cidade de Altjed... — Taren falava enquanto recarregava o rifle com mãos calejadas pela lama — ...e tomar a colina antes do entardecer. Não disseram nada sobre sermos transformados em sopa.

Nael tentou rir, mas vomitou. Não pelo cheiro, nem pela visão dos corpos. Mas pela sensação de que ele não pertencia àquilo. De que não devia estar ali, segurando um rifle contra homens que provavelmente sentiam o mesmo que ele.

Do alto da colina, um capitão apareceu, gritando ordens em meio à fumaça. Uma carga frontal. Eles estavam recuando. E precisavam manter posição.

Nael e Taren correram. O fôlego queimava os pulmões, os joelhos afundavam no barro, os olhos ardiam com a fumaça. Ao lado deles, soldados gritavam, caíam, explodiam em estilhaços. Um projétil rasgou o ar a centímetros de sua cabeça.

Então veio o momento.

Nael, deitado entre sacos de areia rasgados, viu um homem com uniforme inimigo correndo. Jovem. Mais novo que ele. Os olhos arregalados. Sem fôlego.

Instinto. Tiro.

O disparo ricocheteou contra o ombro do garoto, que caiu gritando. O som não saiu da cabeça de Nael. Ainda não sairia por muitos anos.

— Você fez o que precisava. — disse Taren, encostado ao seu lado. — O que qualquer um de nós teria feito.

Nael não respondeu.

Ele apenas olhou para o céu, agora coberto por fumaça preta, e sentiu que algo dentro dele havia mudado. Algo se partira e jamais voltaria ao lugar.

O céu amanheceu enforcado em nuvens de chumbo, abafado, como se o próprio mundo houvesse prendido a respiração. Nenhum canto de pássaro ousava soar sobre o campo devastado. A terra, antes dourada de trigo, era agora um pântano espesso e encharcado de sangue, pólvora e ossos partidos.

Nael Einsenhart mal sentia as pernas. Estava ajoelhado há minutos — ou horas, já perdera a noção — diante do que restava de seu pelotão. Membros sem corpos. Capacetes virados ao contrário. Olhos abertos encarando o nada. Os tiros cessaram na madrugada do terceiro dia, mas o horror ainda vibrava no ar, nos nervos, no cheiro azedo da morte fresca.

— Aqui… — disse uma voz baixa ao seu lado.

Era Taren Voska, tão sujo e exausto quanto ele. Carregava um pano ensanguentado onde havia enrolado metade de um braço humano — um gesto quase automático agora. A compaixão se tornara mecânica.

— Era o cabo Frens… acho. — completou, olhando para o retalho de farda preso à carne.

Nael apenas assentiu, o olhar fixo num ponto indefinido do solo. Era difícil pensar. Mais difícil ainda era lembrar do que acontecera.

A artilharia harlandesa. Ela veio como uma maldição sobre o segundo dia de combate. Vozes nos acampamentos diziam que eles jamais ousariam — mas ousaram. Os canhões de longo alcance começaram a cantar na alvorada, e antes que o primeiro comando de retirada fosse gritado, dezenas já haviam sido arrancados da existência.

O medo ancestral dos generais eldravianos se realizara. E Nael o viu acontecer. Sentiu o solo tremer sob seus pés, a pressão arrebentando os tímpanos, o cheiro de ferro e carne. Viu soldados explodindo como bonecos de trapo. E sobreviveu.

Ele não sabia como. Mas estava ali. E Taren também.

A maioria não teve a mesma sorte.

O som que quebrou o silêncio daquela manhã não foi o da artilharia, nem o dos urubus que já circulavam. Foi o galope. Tenso. Preciso. A marcha ritmada de cavalos disciplinados e botas polidas contra a lama.

Nael e Taren se viraram ao mesmo tempo.

O Exército Pessoal do Kaiser surgia do leste, vindo da estrada, como uma sombra organizada. Um destacamento pequeno, mas perfeitamente alinhado, montado em cavalos negros cobertos com armaduras cerimoniais, seus estandartes traziam o símbolo imperial eldraviano: a águia de duas cabeças, prateada sob fundo azul-escuro.

Liderando-os, um homem de armadura leve, rosto sério, olhos ocultos sob um capacete refinado. Carregava uma presença que não precisava de palavras — era a autoridade encarnada.

Ele desmontou com um gesto contido e se aproximou do oficial sobrevivente mais graduado, um tenente curvado pela dor, que mal conseguia manter-se de pé.

Após uma troca curta de palavras, o homem — cujo nome ninguém ousava dizer em voz alta — passou os olhos pelo campo, avaliando cada detalhe com a frieza cirúrgica de quem já vira cem batalhas… e vencera todas.

Seus olhos pararam em Nael. Depois, em Taren.

Ele caminhou até eles, botas afundando na lama espessa.

— Vocês dois. — disse. Sua voz era firme, pausada, sem traço de cansaço. — Recrutas?

— Recruta Nael Einsenhart. — respondeu Nael, de pé, ainda que os joelhos tremessem.

— Recruta Taren Voska. — disse o outro, com voz rouca, mas determinada.

O homem os encarou por alguns segundos, olhos penetrantes como lâminas.

— Vocês permaneceram. Quando outros correram. Quando outros caíram. Isso… é notável.

Ele se virou para um de seus subordinados.

— Anote os nomes. Einsenhart e Voska. Ambos serão encaminhados à capital. Direto. Sob recomendação imperial.

— Senhor? — perguntou o subordinado.

— Ordem direta do Kaiser. Precisamos de soldados que conhecem o medo… e permanecem em pé.

Sem dizer mais, ele voltou ao cavalo. O destacamento partiu como havia chegado: rápido, silencioso, letal.

Taren virou-se para Nael, o rosto ainda sujo de sangue seco, mas com um leve brilho nos olhos.

— Direto pra capital? Isso é… bom?

Nael respondeu depois de um tempo, encarando o horizonte cinzento, onde a fumaça ainda subia das ruínas da colheita.

— É o começo… ou o fim.

A terra ainda cheirava a carne queimada. O silêncio da trégua era estranho, como um grito contido preso nas entranhas do mundo. O lodo havia secado, a fumaça havia subido, e os corpos — os que restaram — foram enterrados sob cruzes improvisadas feitas com baionetas, estacas e pedaços de tendas.

Nael Einsenhart estava sentado perto da fogueira do novo acampamento, a algumas léguas da linha de frente. O céu, manchado de fuligem mesmo após dias, parecia não querer se abrir. Ao seu lado, Taren Voska esculpia uma ponta de madeira com a lâmina do cinturão.

— Quantos acha que sobraram daquela trincheira? — Taren perguntou, sem erguer os olhos.

Nael demorou para responder.

— Uns vinte… talvez trinta. De um pelotão inteiro. — Respondeu baixo, como se pronunciar aquilo desse peso ao fato.

Taren assentiu. O fogo estalou entre eles. Era difícil saber se o frio vinha do vento cortante ou da lembrança do estrondo que levou seus amigos embora.

Foi quando um novo som quebrou o ar: passos pesados, seguidos de uma voz grossa e grave.

— Porra, que tipo de fogueira é essa? Vocês querem queimar lenha ou aquecer fantasmas?

Nael virou-se de leve. A figura que se aproximava parecia ter sido talhada da própria pedra. Um homem enorme, de ombros largos, barba espessa e olhos vivos, carregava nas costas uma caixa de suprimentos como se fosse um saco de pão. Sua farda, embora marcada de fuligem, ostentava medalhas e brasões que não condiziam com sua informalidade.

— Garr Voxum. — disse o homem, largando a caixa no chão com um baque surdo. — Segundo Batalhão de Artilharia Pesada. Agora, aparentemente, sou cozinheiro.

Taren ergueu a sobrancelha.

— Artilheiro e cozinheiro?

— A comida explode menos, mas o estrago de um feijão mal cozido pode ser mais cruel que pólvora. — Ele riu sozinho. — Me botaram aqui até os próximos canhões chegarem. Dizem que vocês dois são os “sobreviventes”.

Nael soltou um suspiro contido.

— Não gosto desse título.

Garr se sentou com o peso de uma árvore tombando. Pegou um caneco, mergulhou numa panela improvisada e puxou algo que parecia um ensopado de carne.

— Também não gostava quando me chamavam de “o açougueiro de Vallstein”. Mas a gente se acostuma com os nomes.

Taren franziu o cenho.

— Por que te chamavam assim?

Garr mastigou, apontou com a colher.

— Porque eu segurei uma linha sozinho por quatro horas, com um canhão avariado e munição improvisada. Vinte e sete inimigos caídos. E no fim, matei o último com uma pá. — Sorriu, como se estivesse contando sobre pescar carpas. — Mas também pode ser por causa do ensopado, não tenho certeza.

Nael não conteve um sorriso breve. Era a primeira vez desde a batalha que seus lábios se moveram por algo que não fosse dor.

— E agora está aqui… com a gente?

— Por enquanto. Disseram que vão formar uma divisão especial, alguma coisa diretamente ligada ao alto comando. Querem soldados com “instinto”. Talvez estejam formando uma força pra ir além da linha. Mas por enquanto? Eu cozinho. E vocês comem.

Garr puxou mais três canecos, encheu todos.

— Comam. Vai esquentar o que ainda tá vivo em vocês.

Taren provou e tossiu, fazendo careta.

— Tem gosto de… pólvora.

— Então é autêntico. — disse Garr, satisfeito.

O silêncio caiu de novo, mas agora, com menos peso. O crepitar da fogueira parecia mais aconchegante com o cheiro da comida, mesmo que horrível. Três soldados, vindos de cantos diferentes, unidos por nada além da sobrevivência e do acaso, sentados num círculo onde o mundo havia parado por um instante.

Nael olhou para o céu de novo. Não chovia. Pela primeira vez em semanas, não chovia.

Talvez fosse o presságio de algo novo.

O frio da manhã era cortante como as baionetas que os soldados afiavam em silêncio. O céu, enevoado e pesado, parecia segurar a respiração junto com os homens abaixo. Uma ofensiva sempre vinha com aquele tipo de silêncio – o que precede o ruído dos gritos, das botas correndo na lama, e dos canhões cuspindo aço e morte. Nael Einsenhart estava de pé ao lado de Taren Voska, apertando o cinto do capacete de couro desgastado.

Ao longe, cobertas por camuflagem rudimentar e pelo relevo esburacado das colinas do norte, repousavam as Artilharias de Rusk. Diziam que eram monstruosidades fundidas em ferro negro, capazes de lançar projéteis do tamanho de um cavalo a distâncias absurdas. Foram elas que, no segundo dia, tornaram o solo do front uma carnificina fervente. E agora, coubera ao exército eldraviano o peso de calá-las.

— Parece que vamos visitar o inferno, camaradas. — rosnou Garr Voxum, carregando nas costas uma caixa com munição pesada e um sorriso nervoso no rosto sujo de terra. — Ou talvez bater na porta dele.

Nael não respondeu. Seus olhos estavam cravados no mapa amassado em suas mãos. As rotas traçadas indicavam um avanço em tenaz: dois flancos cobririam os lados enquanto a unidade central, composta por infantaria leve e artilheiros, avançaria pelo vale lodoso. Era suicídio calculado. Mas era a única chance.

— Lembre-se. — murmurou Taren, aproximando-se. — Não somos heróis. Só temos que sobreviver tempo suficiente pra que alguém mais importante plante a bandeira no topo.

Gritos secos de comando cortaram o ar. Os tambores começaram. O avanço começava. Homens deixaram as trincheiras com passos inseguros, mergulhando em um mundo onde cada segundo podia ser o último.

Nael correu, o rifle firmemente empunhado, a respiração embaçando o ar frio. Garr seguia logo atrás, a metralhadora desmontada dividida entre ele e um outro soldado que mal conseguia acompanhá-lo. Taren era sombra ao lado, olhos atentos a cada colina, a cada movimento suspeito entre as árvores despidas. O solo escorregadio transformava cada passo em um esforço hercúleo. Explosões isoladas soavam ao longe, como trovões pré-tempestade.

Ao alcançar a primeira elevação, o mundo pareceu explodir. Um estampido rasgou o ar, e um clarão engoliu o flanco esquerdo. Um projétil das próprias artilharias harlandessas havia caído ali, sem aviso. O impacto foi tão brutal que pedaços de terra e homens choveram sobre o trio.

Nael caiu de joelhos, os ouvidos zunindo, o peito arfando. Quando voltou a enxergar, viu Garr ajudando Taren a se levantar, o braço do companheiro cortado, mas funcional.

— Estamos perto demais pra eles mirarem com calma — gritou Garr por cima do caos. — É agora!

O avanço continuou com mais desespero que tática. Os harlandesses, entrincheirados e com metralhadoras em posição, reagiram ferozmente. Mas os eldravianos vinham com sangue nos olhos e a lembrança dos companheiros queimados vivos no segundo dia. Era uma tempestade humana, misturada a aço, pólvora e lama.

Nael viu um oficial ser varado por balas enquanto gritava ordens. Viu um garoto que mal devia ter dezoito anos empalar um inimigo com uma baioneta, soluçando. Viu Taren derrubar dois soldados com tiros certeiros e proteger Garr enquanto ele montava a metralhadora sob fogo cerrado.

A aproximação final foi corpo a corpo. As trincheiras externas foram invadidas. Gritos. Facas. Chamas. A guerra perdeu sua distância e virou suor, sangue e dentes quebrados. Quando o último harlandês nas primeiras linhas foi abatido, os três estavam cobertos de imundície, mas vivos.

E à frente, nas colinas de Rusk, as silhuetas negras das grandes artilharias ainda rugiam — mas agora, menos.

— Estamos chegando, malditas. — murmurou Nael, limpando o rosto com o dorso da mão.

Era apenas o começo da batalha por Rusk.

O segundo avanço foi diferente do primeiro.

Não havia mais o frio da manhã, nem o silêncio tenso dos minutos que antecedem uma ofensiva. Agora o ar era denso, abafado pela pólvora e pelo cheiro agridoce de carne queimada. Os gritos, antes isolados, se fundiam em um coro grotesco de dor e determinação. Nael, Taren e Garr estavam cobertos de terra, sangue seco e suor. Haviam rompido as trincheiras externas de Rusk. O coração do inferno batia logo à frente.

O terreno se estreitava conforme subiam a colina. Rochas e crateras formavam um labirinto natural. Acima deles, as silhuetas das grandes artilharias tremiam no horizonte, cuspindo projéteis a intervalos regulares. Cada disparo sacudia o chão. Um rugido mecânico de mil toneladas. Monstros de aço.

Nael se movia abaixado, o fuzil rente ao corpo. Taren cobria os flancos, olhos atentos, arma em punho. E Garr... Garr era um espetáculo à parte.

Ele havia cansado de montar a metralhadora estática, de depender de posições fixas, de se esconder.

Agora, carregava a peça inteira nos braços — um trambolho de aço e munição que dois soldados normalmente operariam juntos — como se fosse um rifle reforçado. Um cinturão de balas pesadas pendia do ombro até o peito, e suas mãos seguravam a metralhadora como um messias da destruição.

— Vocês avançam, eu cubro! — rugiu Garr, já erguendo a arma.

E então ele disparou.

O som era ensurdecedor. Um trovão contínuo, ritmado, que reverberava pelas pedras. O recuo violento teria jogado um homem comum no chão — mas Garr mantinha os pés cravados como uma árvore milenar. Cada rajada fazia os harlandesses mergulharem em desespero. Era como se a própria terra estivesse cuspindo fogo.

Nael e Taren avançaram sob essa tempestade de cobertura. Jogaram granadas nas escotilhas, arremessaram-se contra barricadas, lutaram contra soldados apavorados. Os gritos em harlandês soavam mais como orações — ou maldições — enquanto os projéteis de Garr varriam as trincheiras como se fossem folhas secas.

Quando Nael pulou para dentro da primeira casamata de controle, encontrou dois operadores em fuga. Abateu um com um tiro seco. O segundo tentou sacar uma pistola, mas Taren o interceptou com uma baionetada firme no estômago.

— A gente tá perto. – ofegou Taren. — Os cabos de alimentação vêm daqui. As peças principais não tão longe!

— O monstro ainda cospe fogo. – retrucou Nael. — Mas por pouco tempo.

Eles subiram os degraus da estrutura central, passando por corredores apertados, repletos de mapas, barris de munição e cadáveres. Ao sair no topo da plataforma, viram uma das grandes artilharias de Rusk em toda sua magnitude.

Era uma besta de ferro fundido, apoiada sobre trilhos grossos. Seus operadores tentavam recarregá-la, desesperados, mas o caos já havia rompido a ordem. Um deles virou-se para atirar nos intrusos — e foi nesse momento que Garr surgiu.

— HORA DE DERRUBAR UM DEUS! — berrou, surgindo no flanco como um urso ensandecido.

A metralhadora cantou. Homens foram varridos do convés da artilharia. O operador do canhão tentou acionar o disparo — mas Garr pulou sobre ele, esmagando-lhe o braço com a coronha da arma. Então, apontou o cano para o mecanismo de alimentação da peça e abriu fogo. Faíscas, fumaça, engrenagens estouradas.

O coração de Rusk teve uma parada súbita.

— Temos que sabotar as outras! – gritou Taren. — Antes que fujam com os projéteis!

E então, a operação virou um ataque de retaliação. Explosivos roubados foram plantados nas bases, e nas próximas horas, mais duas grandes artilharias seriam destruídas pela ofensiva eldraviana.

A moral do exército subiu como um estandarte ao vento. Pela primeira vez desde o início da guerra, Eldravia havia feito o mundo ouvir sua resposta. Rusk ruía.

E entre os três — Nael, Taren e Garr — uma chama havia sido acesa. Eles não eram mais apenas soldados. Eram irmãos de sangue e sobrevivência.

Nael ainda sentia o tremor dos próprios passos ecoando nas tábuas queimadas da colina de Rusk. O céu estava manchado de fumaça negra, e a bandeira eldraviana havia sido fincada no topo da plataforma de comando destruída. Soldados celebravam nas trincheiras, médicos arrastavam os feridos com urgência contida, e alguns até sorriam — pela primeira vez em dias.

Eles haviam vencido.

Tomado o monstro.

As Artilharias de Rusk, que devastaram o segundo dia de combate, agora jazeriam caladas, desmontadas, suas bocas fundidas ou cheias de granadas inativas. A vitória era real. Táctica, moral, simbólica.

E então, veio o som.

Um assobio profundo, gutural. O tipo de som que não deveria existir, que parecia rasgar o próprio ar como uma navalha nos pulmões. Não era um disparo comum. Não vinha do solo.

Taren foi o primeiro a perceber. Seus olhos se arregalaram enquanto virava a cabeça para o oeste, em direção ao vale.

— Nael... eles vão fazer o impensável.

Nael ainda tentava entender, quando Garr largou a metralhadora e caiu de joelhos, olhando para o horizonte como se tivesse visto um fantasma.

— Eles tão mirando... em Rusk. Eles tão mirando... na própria colina...

E então, o céu caiu.

Os projéteis não vinham de canhões leves ou intermediários. Eram artilharias pesadas, maiores que as de Rusk, posicionadas muito além do alcance das linhas avançadas. Harland havia recuado — e agora, disparava contra sua própria posição recém-perdida, sem hesitar. Uma resposta cega, vingativa. Um aviso.

A explosão jogou Nael longe. Ele não ouviu o impacto — apenas sentiu o corpo ser lançado, as costas arderem, e o mundo virar uma mistura de cinzas e ferro. O som, por um instante, sumiu. Era como estar debaixo d'água. Como se a realidade tivesse sido apagada.

Taren o puxou por baixo de uma tábua quebrada. Sangue escorria de sua testa, e os olhos estavam cheios de terra.

— Eles tão bombardeando a posição inteira! TEMOS QUE SAIR DAQUI!

Nael mal conseguia responder. A cabeça girava, os pulmões ardiam, e cada nova explosão sacudia os escombros como trovões de deuses furiosos. Lá fora, soldados gritavam. Muitos haviam ficado para trás. Feridos. Sem chance.

— Isso não é estratégia. – murmurou Garr, enquanto carregava um sargento inconsciente sobre os ombros. — Isso é ódio. Eles querem nos enterrar junto com a vitória.

A fumaça começou a sufocar o abrigo improvisado. As colinas de Rusk tremiam, como se estivessem prestes a se despedaçar. Os projéteis acertavam tudo: casamatas, hospitais de campanha, postos de munição. Tudo pegava fogo.

Nael, cambaleando, puxou a dog tag no pescoço e olhou para ela. “Einsenhart”. Um nome que parecia distante agora. Como se já fosse outro homem.

Eles escaparam com o que puderam. Taren, Nael, Garr, e uma meia dúzia de soldados. Correndo pelos barrancos queimados, enquanto o chão rachava sob os pés e a chuva de metal os perseguia. A bandeira eldraviana caiu, queimada, soterrada na poeira.

Não havia vitória.

Não ali.

Apenas a lembrança de que, para Harland, a terra era descartável — e a vida, uma moeda a ser queimada se significasse negar o triunfo ao inimigo.

Três dias haviam se passado desde que os sobreviventes da Colina de Rusk foram retirados. Os corpos ainda eram carregados em carroças cobertas de lona, e os cheiros da carne queimada e do metal oxidado se recusavam a deixar as narinas dos soldados. Mas o comando já havia avançado. O que para muitos foi um trauma, para os estrategistas eldravianos foi um dado — uma revelação.

Harland havia bombardeado sua própria artilharia.

O general responsável pelo setor sul, Helmuth Dreiss, lançou a sentença que ecoou como ordem de execução em todo o Estado-Maior:

— “Eles podem substituir Rusk. Isso significa que têm fábricas em funcionamento, com logística rápida e linhas férreas intactas. Se deixarmos isso prosperar, a próxima colina será nossa capital.”

Assim nasceu a Ofensiva de Altfeld, uma operação de captura direta à cidade industrial mais próxima da linha de frente: Altfeld, localizada a 45 quilômetros ao norte das antigas posições de Rusk. Uma cidade-fortaleza, cheia de fábricas, depósitos e estações de trem, protegida por bastiões antigos e regimentos de infantaria.

O campo agora era de preparação.

Nael já não era mais um soldado inexperiente. Ao lado de Taren, ajudava a montar as linhas de suprimento. Garr, que ainda tratava de feridas leves no ombro, organizava o armamento pesado em cima de caixas de munição, como se estivesse em casa. O acampamento fervilhava de atividade: engenheiros mapeavam estradas, oficiais passavam gritando, e granadas eram carregadas aos montes em carroças puxadas por bois.

— Acha que dessa vez a gente chega vivo até o fim? — perguntou Taren, sentado em um caixote, com as mãos trêmulas.

Nael não respondeu de imediato. Estava limpando o cano do rifle, olhando para o próprio reflexo manchado na baioneta.

— Depende do que a gente vai encontrar. E se eles tiverem mais do que Rusk lá?

Garr bufou, abrindo um barril de comida com uma faca de baioneta improvisada.

— Se tiverem mais do que Rusk, a gente enterra com mais força. A gente sobreviveu à maldita colina. Não tem cidade que vá quebrar a gente agora.

As palavras saíram firmes, mas seus olhos denunciavam o cansaço. Todos sabiam: a próxima batalha não seria apenas uma disputa de território — seria um soco direto na garganta da máquina de guerra de Harland. Se Altfeld caísse, Eldravia teria respiro. Se falhassem, outro Rusk viria. E depois outro. Até que nada restasse.

Nael olhou para o céu. Nuvens baixas cobriam o sol como véu de chumbo. Não havia pássaros. Nem esperança visível.

Mas havia ordem. Havia missão.

E na manhã do quinto dia, os tambores de marcha começaram a bater. Regimentos inteiros começaram a mover-se como rios de aço e couro, sob gritos de comandantes e o ruído pesado dos tambores de transporte.

Eles estavam indo para Altfeld.

E Nael, com a dog tag fria contra o peito, não sabia se voltaria inteiro.

As botas afundavam no barro grosso da trilha principal. O chão, molhado pelas chuvas da noite anterior, tornava a marcha lenta, pesada e exaustiva. As carroças de suprimentos se arrastavam rangendo, puxadas por cavalos magros e soldados que dividiam o esforço. O vento cortava baixo pelas copas das árvores, trazendo o cheiro de pinho, podridão e pólvora seca.

O avanço em direção a Altfeld havia começado há dois dias, e até então, o inimigo não dera sinal de resistência significativa. Mas todos sabiam: o silêncio era o prenúncio de um rugido.

— Eles tão preparando alguma coisa. — murmurou Taren, enquanto caminhava ao lado de Nael, os olhos atentos à trilha e às encostas ao redor. — Muito silêncio. Muito tempo.

Nael assentiu, os dedos firmes ao redor de seu rifle. Desde Rusk, ele dormia pouco. Sonhava com trovões metálicos e homens gritando sem rosto. Agora, cada pedra no caminho parecia esconder uma emboscada.

— Tem um vale logo à frente. — disse um batedor, retornando a galope leve pela trilha estreita. — Denso, com encostas nos dois lados. Se eu fosse Harland, colocaria atiradores ali.

Eles não estavam errados.

O 3º Regimento de Infantaria, ao qual Nael, Taren e Garr estavam integrados, foi o primeiro a entrar no Vale Sombrio, uma depressão entre colinas altas e árvores secas. A luz do sol mal tocava o chão. E antes que o som do primeiro tiro ecoasse, o inferno já havia sido preparado.

Crack!

O som do disparo foi seco e certeiro. Um oficial, dois passos à frente de Nael, caiu como se tivesse sido puxado por fios invisíveis. Sangue espirrou da têmpora, e o caos começou.

— TIROTEIO! COBERTURA! — gritou alguém.

Os eldravianos se jogaram no chão, atrás de pedras, raízes e carroças tombadas. O som seco das rifles ecoava das encostas, como se o vale inteiro estivesse cuspindo morte.

— ATIRADORES NAS COLINAS! — gritou Taren, puxando Nael para trás de um tronco caído. — PRECISAMOS FLANQUEAR AGORA OU VAMOS SER CARNES DE ABATE!

Garr, que carregava sua metralhadora pesada como se fosse um rifle comum, tombou o tripé no chão e abriu fogo na direção do flanco esquerdo. O som era ensurdecedor, e o recuo fazia os músculos de seus braços vibrarem como cordas tensionadas. Cartuchos quentes choviam no barro.

— Fiquem atrás de mim! EU SOU A COBERTURA! — rugiu ele, a voz trovejando sobre os disparos.

Nael e Taren, aproveitando a brecha criada por Garr, avançaram entre os troncos, escalando lentamente a lateral da colina sob fogo esparso. Lá em cima, encontraram duas posições de tiro improvisadas — buracos rasos com sacos de areia. Os atiradores harlandesses não esperavam um contra-ataque tão rápido. Foram abatidos sem piedade.

Em menos de uma hora, o vale foi tomado.

O chão ficou pontilhado de corpos. O sangue escorria em pequenos riachos misturados com lama. Um corvo bicava o rosto de um cadáver, indiferente ao horror ao redor.

Nael respirava com dificuldade, o suor escorrendo pela nuca, as mãos tremendo. Ele olhou para Taren, que estava agachado, limpando a baioneta com um pano sujo.

— Foi só um posto avançado, — murmurou Taren. — Se isso é o que guardava a entrada... imagina o que tem dentro de Altfeld.

Nael não respondeu. Mas pensou no mesmo.

Eles sabiam: a cidade estava perto. E com ela, a verdadeira guerra começaria.