O céu estava limpo, claro demais para uma segunda-feira.
Pássaros voavam em círculos perfeitos — e aquilo incomodava Akira.
Ele abriu os olhos às 6:06 da manhã. Sem despertador. Sem barulho.
O mesmo teto branco. O mesmo som do mundo em pausa.
Se sentou na cama como quem emerge debaixo d’água.
“Outra vez…”
Já não tentava mais se convencer de que era um sonho.
Akira Yotsume sabia: o mundo reiniciava toda manhã, exatamente nesse horário.
E ele era o único que se lembrava.
Sua mãe, como sempre, bateu na porta do quarto com o mesmo timing robótico de sempre:
— Akira, você vai se atrasar.
— Eu sei…
Sua voz saiu mais fraca hoje. Como se falar sugasse um pedaço da alma.
Ele se olhou no espelho do banheiro. As pupilas continuavam cobertas por uma névoa cinza-clara. Isso era novo.
No primeiro dia, seus olhos eram normais. No vigésimo, começaram a embaçar.
Agora, no loop número 463, estavam quase opacos.
Ele passou o dedo pela pele do braço: cinzas escorriam de seus poros como poeira de livro velho.
— Estou me apagando… — murmurou.
Mas não havia tempo pra desespero. Havia tempo pra entender.
Vestiu o uniforme da escola, pegou o relógio de bolso, e saiu.
O sol ardia em um ângulo que não fazia sentido. Estava alto demais praquele horário.
Na rua, tudo era igual. Mas tudo era diferente.
A menina da padaria estava mais pálida.
O cão que latia atrás da grade agora estava em silêncio, encarando Akira com olhos... humanos.
E o senhor do guarda-chuva vermelho, aquele que sempre andava devagar, hoje corria como se fugisse de algo invisível.
A cidade não sabia, mas estava adoecendo.
Na escola, ninguém notava nada.
Professores repetiam as mesmas piadas.
Colegas riam dos mesmos memes.
Mas quando Akira olhou para o relógio de parede da sala 2-C, sentiu o gelo escorrendo pela espinha:
6:06.
De novo.
O relógio havia dado um giro completo e voltado ao mesmo horário.
O tempo, naquele instante, reiniciou no meio do dia.
O chão tremeu.
As paredes se distorceram.
E por um segundo, a sala inteira se encheu de um sussurro profundo — como vozes de mortos falando debaixo d’água.
Só Akira ouviu.
E alguém mais.
No fundo da sala, no lugar onde sentava um aluno que nunca falava, havia um bilhete em cima da carteira.
Akira pegou. A caligrafia era familiar. Era a dele mesmo.
Mas ele nunca escrevera aquilo.
“A cada loop, você esquece uma parte de si.
Quando restar só a casca, o mundo te aceitará como parte da mentira.
Encontre o homem de chapéu branco.
Ele lembra do ontem também.”
Akira leu aquilo uma, duas, três vezes.
E, como se o tempo o escutasse, uma sombra branca passou pela janela.
Alguém o observava.
E pela primeira vez, em 463 dias idênticos, ele não estava sozinho.