O Coração do Abismo

Os corredores de Nexus Umbra pulsavam com vida, mas não com a vida comum. Era algo mais profundo. Algo antinatural. Era como se o próprio metal, os códigos que fluíam pelas paredes, e o chão que se moldava sob seus pés, sussurrassem segredos proibidos.

Seraphina andava em silêncio. Cada passo calculado. Cada curva memorizada.

“Essa base... parece mesmo estar viva. Observando. Testando.”

Ela passara as últimas sete horas mapeando mentalmente os setores possíveis a estrutura da torre central, os acessos laterais, os pontos cegos das câmeras, os campos de gravidade, as variações de EVP nos corredores e as anomalias nos códigos nas paredes. Era impossível captar tudo, mas ela absorvia o máximo que podia.

Apesar de sua vasta experiência como Arauta do Fim, ela começava a sentir... um desconforto que nunca havia sentido antes. A Nexus Umbra não era só avançada. Era anormal. Sobrenatural.

Em um dos setores subterrâneos, Seraphina passou diante de uma parede onde dados fluíam como rios brilhantes. Ela tocou de leve a estrutura respondeu ao seu toque com um tremor, como se a reconhecesse... ou a catalogasse.

"Isso não parece ser tecnologia comum. Isso é... como uma consciência." pensou.

A única vez que vira algo sequer semelhante foi dentro dos laboratórios dos Remanescentes das Ruínas onde Oblivion Sage, o homem por trás de toda a tecnologia deles, havia criado ambientes semilúcidos com matéria responsiva e criptografia viva.

E por isso, só um nome vinha à sua mente. “Elysian... sera que ele conseguiria decifrar a real natureza dessa base?”

Sabendo que não podia correr riscos, Seraphina desceu até um compartimento oculto entre as camadas inferiores da base um ponto cego que detectara há algumas horas, quando percebeu um pequeno atraso no pulso de energia dos sensores.

Ali, com precisão cirúrgica, ativou um dos dispositivos fornecidos por Elysian: um Emissor de Redução Quântica Perceptual, uma cápsula minúscula que ao ser ativada criava uma bolha de distorção cognitiva, tornando qualquer forma de espionagem visual, auditiva, energética ou até mental ineficaz.

Dentro da bolha, ela tirou o comunicador e o ativou. "Oblivion Sage. Aqui é Pandemonium. Transmissão segura."

Quase imediatamente, a tela brilhou com a silhueta calma de Elysian, o fundo de seu laboratório projetando engrenagens quânticas e fractais de dados. "Recebido, Pandemonium. Comece." A voz dele era tão precisa quanto um bisturi.

Seraphina relatou tudo com exatidão. Os detalhes do Nexus, os setores, a arquitetura, os dados vivos, as sensações estranhas cada elemento. Elysian escutava em silêncio, seus olhos azuis em constante movimento, cruzando informações, calculando.

Quando ela terminou, houve um breve silêncio do outro lado. "Interessante..." murmurou Elysian, sua voz mais baixa. "Então é isso..."

"Você já viu algo assim?" perguntou Seraphina, séria.

Elysian encostou levemente os dedos entrelaçados sobre o queixo. "Sim... e não. A arquitetura digital e a codificação quântica que você descreveu não são impossíveis para mim. A base dos Remanescentes das Ruínas possui estruturas comparáveis, especialmente os setores que você nunca visitou. Eu poderia criar um desses a hora que eu quiser. Mas há algo aqui... peculiar. Uma assinatura que não reconheço. O que significa apenas uma coisa: alguém no mundo possui um intelecto comparável ao meu."

Seraphina estreitou os olhos. "Você nunca mencionou alguém assim."

Elysian manteve o olhar firme. "Porque nunca encontrei ninguém que se aproximasse. Durante todos os anos de desenvolvimento, pesquisa e... reconstrução do que fui, ninguém me desafiou no campo do intelecto. Até agora."

Ele recostou-se lentamente. "Mas não me surpreende. O mundo sempre se esconde atrás de véus. E agora, descobrimos um novo véu. Um inimigo que, pelo menos, não deve ser subestimado nem superestimado."

Seraphina permaneceu em silêncio. Elysian continuou. "Ainda assim, Pandemonium, você não deve temer. Eles podem ter paridade tecnológica... mas nós temos propósito. Eu farei o necessário para quebrar o código de acesso dessa dimensão. Já estou elaborando três modelos teóricos de infiltração."

Seraphina então questiona Elysian sobre isso. "Quanto tempo até conseguir algo concreto?"

Elysian então responde calmamente. "Isso dependerá das informações que você continuar reunindo. Quanto mais detalhes me fornecer, mais rápido poderei construir uma chave de decodificação da dimensão Nexus Umbra. Enquanto isso... mantenha vigilância. Especialmente em Specter."

Seraphina assentiu. "Você acha que ele sabe quem eu sou de verdade?"

Elysian hesitou por um momento. Então, com voz precisa "Não ainda. Mas ele desconfia. E se Specter não souber, alguém acima dele saberá. Por isso... cuidado dobrado. E se cruzar com qualquer um dos Quatro Primevos que mencionou... cuidado dez vezes maior."

O silêncio voltou, e por um momento, o brilho do escudo ilusório tremeluzia nas bordas.

Antes de desligar, Elysian disse em tom mais baixo, quase humano. "Você fez bem em me informar disso. E... você foi eficiente como sempre, Pandemonium."

Seraphina deu um leve sorriso. Pequeno. Quase imperceptível. "Apenas cumprindo meu dever." A chamada foi encerrada.

Sozinha novamente, Seraphina guardou o comunicador, desativou a bolha ilusória e se fundiu de volta às sombras vivas de Nexus Umbra. Ela agora sabia que o inimigo era algo além do que jamais haviam enfrentado. Mas também sabia de outra coisa. Ela não estava sozinha.

O tempo parecia fluir de maneira diferente em Nexus Umbra. Seraphina caminhava por corredores que se desdobravam em ângulos impossíveis, curvando-se em direções que a lógica arquitetônica não explicava. Os sensores nas paredes emitiam luzes suaves quando ela se aproximava mas nunca em alarme. Era como se a base a tivesse aceitado.

"Isso não faz sentido." Sua mente se agitou.

"Não sou uma de verdade. Eles não sabem quem eu sou. Sabem?"

Ela respirou fundo e passou por uma porta que se abriu sem resistência. Do outro lado, uma sala hexagonal se revelou, com terminais circulares suspensos no ar, dados flutuando em espirais lentas.

Na entrada, uma identificação foi projetada em uma parede negra como obsidiana viva:

> Choi Eun-kyung

Rank: VULTO

Classificação: Operativa Recrutada

Genoma Indexado

Acesso de Nível 1 liberado.

Os olhos de Seraphina se fixaram naquelas palavras. Seu nome falso. Um que ela usava há anos. E então a frase “Genoma Indexado.”

“Eles... mapearam meu código genético.” Um arrepio percorreu sua espinha. "Foi durante o teleporte. O transporte para cá... o Nexus Umbra não é só um domínio artificial ele funciona como um gigantesco organismo parasítico. Ele absorve, analisa e classifica tudo o que entra."

Ela se aproximou de um terminal flutuante. A tela leu automaticamente sua presença e desbloqueou dados superficiais arquivos incompletos sobre os setores da base, registros de movimentação e estatísticas de treinamento. Nada profundamente confidencial, mas... já era informação demais para uma “recruta”.

"Eles não apenas me aceitaram. Me incorporaram. Como uma peça que encaixa perfeitamente." Ela fechou os olhos por um instante, respirando fundo. "Mesmo estando aqui a poucas horas, entendi muito bem que esse lugar é mais do que uma base. É uma mente. Um sistema que opera em sincronia com os cérebros dos seus agentes. Isso... é o futuro. Ou talvez, o fim."

Saindo da sala, ela retornou a um dos corredores principais. As paredes pulsavam com padrões hexagonais brilhantes pulsos de luz que ecoavam como batimentos cardíacos de uma entidade viva. Ela caminhava como uma sombra, discreta, mas atenta.

Mais à frente, avistou três soldados que aparentemente também eram membros "Vultis" da Ordem de Érebo. “Hey... você é a garota do veneno, não é?”

Era um dos recrutas alto, de cabelos escuros presos em um coque e olhos escarlates. Um dos que havia lutado ferozmente durante a última prova.

Seraphina ergueu o olhar levemente e respondeu com calma “Depende de quem está perguntando.”

O rapaz soltou uma risada abafada. “Nome de campo: Ardent. Antes que pergunte, não, não é meu nome real. Só achei justo me apresentar como todos aqui parecem esconder algo.”

“Você não é o único.” respondeu uma garota que se aproximava, pele morena, olhos âmbar e tatuagens tribais que pareciam vivas sob a pele. “Nome de campo: Kvara.”

Seraphina respondeu apenas com um aceno discreto. "Melhor não criar laços. Mas... conhecê-los é necessário."

“E você?” perguntou Ardent. “Choi, né? A base nos mostrou seu nome na entrada. Rank Vulto, igual a nós. Eles adoram dar títulos pomposos.”

“Aparentemente.” respondeu Seraphina. “Vulto. Soa como... sombra descartável.”

Kvara sorriu com sarcasmo. “Ou lâmina nas sombras. Vai depender de como jogarmos este jogo.”

Seraphina os observou por mais alguns segundos, mapeando seus comportamentos. Ardent parecia impulsivo, mas com boas intenções. Kvara, fria, analítica talvez a mais próxima de alguém com potencial real.

Eles falaram por mais alguns minutos sobre o treinamento que viria, sobre os boatos dos “Quatro Primevos” os agentes lendários da Ordem. Ninguém sabia quem eles eram, mas todos os sobreviventes sentiam a mesma tensão, estavam sendo observados. Testados ainda.

Antes de se despedir, Ardent comentou. “Aposto que a base ainda vai revelar muita coisa. Só espero que a gente não vire só mais... dados pra ela.” Seraphina se afastou sem responder, mas a frase ecoou em sua mente.

Horas depois, já longe de olhares, Seraphina entrou em outro setor. Era como um laboratório... ou melhor, um santuário de engenharia viva. Máquinas orgânicas, códigos genéticos sendo processados em tempo real, inteligências artificiais parcialmente conscientes flutuando em tanques de luz.

E no centro, uma estrutura circular, onde múltiplas vozes digitais sussurravam entre si, em línguas que ainda não haviam sido decodificadas por nenhum ser humano comum.

Seraphina permaneceu imóvel por longos minutos. Apenas... observando. "Essa tecnologia... Isso é décadas talvez séculos à frente do que o mundo conhece. É algo que só conheci vindo de Elysian. Só ele seria capaz de criar um sistema tão... transcendental. E agora, alguém fez o mesmo."

Ela se sentia pequena ali. Mas ao mesmo tempo, mais determinada. "Eles acham que estou dentro. Que sou deles. Isso me dá uma vantagem. E me dá tempo." Ela se virou e caminhou de volta pelos corredores infinitos, com uma nova certeza que queimava como brasas em sua mente. “Eu não posso falhar. Não aqui. Não agora.”