O som metálico da porta de titânio orgânico se fechando atrás deles ecoou como o fim de uma era.
A primeira etapa do Setor Obscuro de Lapidação terminara. Um labirinto adaptativo de desafios físicos e mentais, projetado para exaurir até mesmo veteranos e Choi Eun-kyung e Vladimir Kaine haviam atravessado como lâminas afiadas. Seus corpos estavam cobertos de suor, pequenas feridas e hematomas, mas seus olhos... ainda ardiam.
Na antessala escura que separava os estágios, os dois se encaram, respirando pesadamente, os músculos tensos. O chão pulsava sob seus pés como se estivesse vivo, como se o próprio ambiente reconhecesse sua resistência.
Kaine quebrou o silêncio. “Pensava que iria me atrasar um pouco mais. Me decepcionou.”
Seraphina soltou uma risada seca, limpando um fio de sangue no canto do lábio. “Eu? Eu achei que você fosse cair naquele túnel gravitacional. Tava quase apostando nisso.”
Kaine então responde de forma desafiante. “Nunca aposte contra mim Choi. Senão vai sempre perder igual os outros que fizeram isso.”
Os dois trocaram um olhar cortante. Rivais por instinto, moldados pelo mesmo aço de tragédia e sobrevivência. Ainda assim... havia uma curiosa harmonia entre seus passos. Uma guerra silenciosa.
Antes que pudessem continuar, o som do sistema os interrompeu. Uma voz robótica feminina ressoou por todo o setor. “Fase Um concluída. Agentes Kaine e Eun-kyung, avancem para a Fase Dois: ‘Eco Interior’.”
As portas à frente se abriram em duas direções distintas. “Separados, hein?” disse Kaine, se alongando como um predador prestes a atacar.
“Sorte sua. Assim pode me evitar por uns minutos.” Disse Seraphina de forma provocativa.
Kaine sorriu com os olhos, e por um breve instante, houve um respeito mudo. E então ambos avançaram.
Np interior da sala de Seraphina “Eco Interior” a escuridão era absoluta.
Assim que passou pela porta, a luz da Nexus Umbra desapareceu como uma vela soprada por um deus cruel. Seraphina ficou parada, tentando ajustar os sentidos. Mas ali não havia som, luz, nem tempo. Apenas nada.
Até que... sussurros começaram. Baixos, íntimos, reconhecíveis. E o vazio começou a moldar formas. Primeiro, sombras dançaram em torno dela como névoas vivas, depois se condensaram em silhuetas familiares. Ela estremeceu. “...Não.”
A escuridão se transformou no vilarejo que havia queimado diante de seus olhos. As casas humildes, o riacho cristalino, os campos floridos. E entre as casas, caminhando lentamente, os vultos dos seus entes queridos. Sua mãe. Seu pai. Os avós. Os dois irmãos mais novos.
O coração de Seraphina ou melhor, Celeste Callahan se apertou fortemente. Um nó quente e cortante. “Isso é... isso é uma ilusão.”
Mas eles a olhavam com ternura. Falavam, embora sem som. Mãos estendidas, sorrisos calorosos. A cena perfeita do que havia sido arrancado dela.
Ela tentou dar um passo atrás. Mas o chão mudou. A terra se abriu sob seus pés. Um turbilhão negro a sugava para baixo. Gritou, tentou resistir mas não lutava contra o ambiente. Lutava contra ela mesma.
“Eu enterrei isso.” murmurou, os olhos tremendo. Mas ali, as memórias que havia escondido sob camadas de raiva e propósito se erguiam como fantasmas famintos. Seu verdadeiro passado, a única parte real na persona de Choi Eun-kyung. Seu vilarejo fora destruído, e seus familiares massacrados... e ela ainda ouvia os gritos.
No centro do vilarejo ilusório, sua mãe ajoelhou-se. Estava coberta de sangue. “Kyung-ah... por que nos esqueceu?”
Seraphina cambaleou, lágrimas queimando seus olhos. “Eu não esqueci... eu nunca esqueci...”
As sombras avançaram como se buscassem envolvê-la. As vozes se multiplicavam, agora um coro infernal de dor e culpa. E no meio disso, ela ouviu a voz de uma criança. A sua própria voz, anos atrás. “Eu quero ser forte... pra que isso nunca aconteça de novo...”
Ela gritou. Mas a sala não respondeu. Apenas o silêncio, a escuridão, e o peso do passado tentando esmagá-la.
Enquanto isso, do outro lado da Nexus Umbra, em sua própria sala de provação, Vladimir Kaine enfrentava seus próprios demônios. Mas nada sobre ele era revelado. E o sistema continuava a avaliar, observar... e julgar.
A luz tênue da sala em que Choi Eun-kyung ou melhor, Seraphina se encontrava desapareceu completamente. De repente, tudo ao seu redor foi engolido por uma escuridão líquida, densa. Sem paredes, sem teto, sem chão. Era como se estivesse flutuando dentro do próprio vazio.
Uma voz sussurrou, suave como o vento. “Quem é você?” Seraphina fechou os olhos. O mundo desapareceu por completo.
Glenmore, seu lar, um vilarejo escondido entre colinas verdejantes e brumas eternas nas Terras Altas da Irlanda. Um lugar simples, quase intocado pelo tempo, onde o mundo ainda parecia inocente.
Ela se recordava da manhã em que nasceu ou, pelo menos, das histórias contadas por sua mãe, Aisling Callahan. "Você nasceu num dia onde o céu tinha a cor da lavanda, minha florzinha", dizia com carinho, os dedos sempre passando pelas mechas douradas de Celeste. "E você já gritava como uma guerreira", acrescentava o pai, Finn Callahan, rindo enquanto balançava seu cachimbo artesanal.
Havia uma velha árvore no centro da aldeia, onde seus três irmãos mais velhos, Darragh, Conor e Eoin passavam as tardes treinando com lanças e espadas de madeira. "Vai brincar com as bonecas, Celeste!" Exclamou Darragh. "Ela luta melhor que tu, Darragh!", provocava Conor, arrancando risadas.
Celeste se lembrava dos passos cambaleantes dos gêmeos mais novos, Liam e Sean, correndo atrás dela com ramos e risadinhas descompassadas. "Cece, Cece, olha, somos monstros!" "Vocês são é dois gremlins", ela dizia, rindo com os braços abertos, esperando o abraço desajeitado dos dois.
Mas talvez o que mais aquecia seu peito era a voz do avô, Padraig, e da avó, Moira, sentados à beira da lareira. "Os antigos diziam que algumas crianças nascem com a alma feita de fogo azul", sussurrava Padraig. "E essas almas, mesmo quebradas, se recusam a apagar", completava Moira com olhos brilhantes, os dedos enrugados costurando mais uma manta.
As noites eram repletas de contos sobre guerreiros celtas, deuses esquecidos e espíritos das florestas. Celeste escutava tudo deitada no colo da mãe, o coração palpitando de emoção, nunca de medo. Essas eram suas raízes.
Mas as raízes estavam para virarem cinzas naquele dia. Celeste tinha 7 anos quando tudo mudou. O dia estava quente demais. Um zunido sutil invadia seus ouvidos, algo que só ela parecia perceber. Uma vibração.
O cheiro de grama molhada e pão fresco invadia seus sentidos pela manhã, como qualquer outro dia. O calor de um lar verdadeiro a envolvia. Seus pés descalços corriam pelo campo. “Celeste! Não corra sem os sapatos, menina!” gritou sua mãe, rindo, as mãos cobertas de farinha.
Ela se virou e riu de volta, seus cabelos ruivos balançando como chamas ao vento. E seus olhos dourados brilhando como uma aurora. “Mas tá quente! A grama faz cócegas!”
Um dos irmãos mais velhos, Aidan, a alcançou com facilidade, levantando-a do chão. “Você é uma pluma, sabia?” disse ele, girando com ela nos braços. “Um dia, vai voar pro mundo!”
“Eu nunca vou embora!” respondeu Celeste, firme. “Todos vão um dia, minha pequena.” disse o avô, sentado debaixo de uma árvore, fumando um cachimbo enquanto observava os netos com olhos serenos. “Mas levamos o lar conosco.”
A avó se aproximou, carregando um livro de capa de couro. “Hora da história?” perguntou Celeste, animada. A avó respondia com um sorriso calmo e gentil “Hora da lenda, mo cailín.”
Celeste se aninhou entre os irmãos mais novos, enquanto a avó abria o livro. “Hoje, vou contar sobre os Tuatha Dé Danann... e sobre como alguns escolhidos nascem com luz demais no coração para o mundo comum.”
Celeste sentia que, naquele instante, era feliz, incondicionalmente. Mais um tempo depois sentiu algo estranho e saiu correndo em direção a sua casa onde estavam seus pais e outros irmãos.
“Mamãe... papai... tem algo errado.” sussurrou, entrando na cozinha onde os pais jantavam com os irmãos. “Você só está cansada, filha.” disse sua mãe, sorrindo. “Vá deitar com seus irmãos.”
Mas Celeste não obedeceu. Correu devolta até o campo, sentindo a vibração crescer. O céu foi rasgado por explosões. Não havia sirenes. Não havia alarme. Apenas a morte, vindo do alto.
Bombas caíram em silêncio. Quando o impacto começou, ela tentou correr de volta, mas já era tarde. O gás se espalhou. Invisível. Ardente. Silencioso. Letal.
Ela caiu no chão. Tossia. Os olhos ardiam. Gritava pelos pais, pelos irmãos, mas ninguém respondia. Apenas os corpos... e o cheiro. Aquele cheiro. Que jamais esqueceria. “Não... por favor...” murmurou, engasgando. “Aidan... Mamãe... Papai.... por favor, levanta...”
Seraphina caiu de joelhos na ilusão da sala mental. Estava ali de novo. No meio dos corpos. O vestido infantil coberto de sangue e terra. As mãos pequenas tremendo. “Por que eu?” sussurrou. “Por que eu sobrevivi?”
As vozes dos irmãos ecoavam ao redor dela. Risos que viraram gritos. Gritos que viraram ecos vazios. “Você não pertence a lugar nenhum.” “Você está sozinha.” “Você é um erro.”
Seraphina apertou os olhos com força. Mas então... Uma outra voz surgiu, clara, firme. Fria. “Celeste Callahan. Não esqueça quem você é.” Era ele. Oblivion Sage.
As palavras que ele havia dito no parque voltaram à sua mente: “Eu jamais esquecerei o dia em que a encontrei. Você sangrava por dentro, mas ainda se arrastava em direção à vida.” Seraphina ergueu lentamente o rosto. O EVP começou a se agitar em suas veias. “Você não é fraca, Celeste.”
“Não sou.” ela murmurou, agora de pé. “Não sou aquela menina perdida. Eu sou o resultado da destruição deles. E também... o instrumento da queda deles.”
O EVP explodiu em sua pele. Uma aura lilás rasgou as trevas. Os vultos foram despedaçados. As memórias violentamente desfeitas pela força da convicção. Seraphina ficou no centro da clareira mental, com os olhos firmes.
“Meu nome... é Celeste Callahan.” declarou na sua mente como uma afirmação para os céus. “E eu me tornarei a ruína de quem tirou tudo de mim.”
E então a realidade voltou. Ela estava de pé, na sala de treinamento da Nexus Umbra. Respirando fundo. O suor na testa. O coração acelerado. Mas estava mais viva do que nunca.
E eram essas memórias que ela vizualizou que a protegiam agora. Mesmo sendo moldada pelo sofrimento, mesmo tendo se tornado Pandemonium, havia algo nela que permanecia intacto. Um eco. Um lembrete de quem ela foi.
Durante um curto intervalo, enquanto Kaine estalava os dedos e resmungava sobre a dificuldade da nova simulação gravitacional, ele comentou: “Você é mesmo de ferro, Choi. Os outros caem e você segue em pé.”
Seraphina apenas lançou um olhar lateral, com um pequeno sorriso contido.
“Não sou feita de ferro. Sou feita do que resta depois que tudo vira cinzas.”
“Poético. E dramático. Mas ainda assim irritante,” respondeu Kaine, tirando o suor da testa.
Na parede de vidro opaca, ela viu seu reflexo... e por um instante, o rosto de Celeste estava ali. A garotinha de Glenmore. A irmã. A filha. A que ria sob o sol entre colinas esmeralda. Ela fechou os olhos e sussurrou mentalmente, como um juramento para seus parentes que partiram naquele dia. “Vocês vivem em mim. Sempre.”