A câmara de observação do Setor Obscuro de Lapidação era silenciosa, mas repleta de tensão. Fileiras de telas etéreas flutuavam diante dos avaliadores, mostrando leituras de EVP, registros mentais e projeções das salas onde os recrutas enfrentavam suas provações. Uma névoa densa preenchia os cantos da sala, distorcendo levemente a visão mas o clima ali era de atenção absoluta.
Specter cruzava os braços diante da projeção principal, os olhos analisando cada mínima variação energética com precisão cirúrgica. Ele estava acostumado a ver talentos desmoronarem sob o peso do próprio passado, mas o que testemunhara com Choi Eun-kyung ou melhor, o que não havia conseguido entender por completo lhe causava um desconforto inquietante.
“Essa projeção de EVP…” murmurou ele, quase para si mesmo. “Não é compatível com o nível registrado dela até o início do Setor. Isso é uma ruptura, e das grandes.”
“Não é apenas uma mera ruptura Specter.” disse uma voz calma, vinda do canto mais escuro da sala. Coberto por um manto de bruma negra, o observador se mantinha imóvel. Ele era um dos Quatro Primevos os pilares silenciosos da Ordem de Érebo, mas sua identidade era vedada mesmo ali, entre os avaliadores de elite.
A névoa ao redor dele pulsava levemente, como se respirasse. Nenhum dos outros ousava dirigir-lhe a palavra diretamente. Specter assentiu. “Está certo... mas é como se algo além dela própria tivesse se manifestado. Uma camada profunda, enterrada sob camadas de controle.”
Um dos outros avaliadores, uma agente de análise chamada Riven, sussurrou: “Nunca vi alguém confrontar a própria essência com tamanha violência interna... e ainda assim se reerguer de tal maneira brilhante.”
Todos voltaram a olhar para a imagem congelada no monitor central, Choi Eun-kyung de pé, no centro da sala, envolta por uma aura lilás que ainda ecoava mesmo após o fim do teste. Seus olhos estavam firmes. Mas havia algo neles algo antigo, como se ela carregasse eras dentro de si.
“Ela declarou algo no final,” comentou Riven. “Mas os sistemas não captaram som. A frequência cerebral dela atingiu um pico tão agudo que interferiu na captação externa por milésimos de segundo.”
Specter franziu a testa. “Algo que ela disse... apenas para si. Ou para alguém dentro dela.” Ele então se virou para o Primevo encoberto. “Acha que devemos mantê-la sob observação prolongada meu senhor?”
Houve uma breve pausa antes que a bruma ao redor do Primevo se agitasse sutilmente. “Não, isso não é necessário Specter” a voz sussurrou como fumaça raspando contra vidro. “Ela será útil mais cedo do que imaginam.”
E então, no silêncio que se seguiu, o Primevo recebeu uma mensagem não verbal, mas clara como o toque do vento antes de uma tempestade. Uma transmissão mental direta, vinda de apenas uma origem possível, a/o líder da Ordem de Érebo. “Choi Eun-kyung demonstrou aptidão. A partir de hoje, ela receberá sua primeira missão em campo. Detalhes serão transmitidos somente a você. A missão é confidencial e estratégica. Prepare o caminho.”
O Primevo permaneceu em silêncio por longos segundos após a mensagem. A sala pareceu congelar, como se o ar esperasse uma ordem para se mover. Enfim, ele falou. “Choi Eun-kyung será destacada agora.”
Os outros avaliadores se entreolharam, surpresos. “Missão externa? Mas ela acaba de sair da segunda fase do Setor Obscuro... sem falar que faz menos de 2 dias que ela se juntou a Ordem De Érebo” murmurou Riven, quase como uma queixa velada.
“Ordem direta, vindo do pódio” disse o Primevo. “Nenhuma contestação será aceita.”
Specter não disse nada de imediato. Mas sua mente, afiada e desconfiada, girava com velocidade. A liderança não se move à toa... algo muito maior está em jogo.
Ele virou-se para a tela uma última vez. A imagem de Choi Eun-kyung ou seja lá quem ela fosse realmente permanecia ali, como uma cicatriz luminosa sobre a escuridão.
A sala de provação havia se desfeito em sua totalidade. As paredes de metal orgânico recuaram, revelando os corredores escuros da Nexus Umbra. Seraphina caminhava com passos firmes, os olhos ainda ofuscados pelos ecos do passado. A luz fria banhava seu rosto, mas não escondia a intensidade nos olhos nem o cansaço que queimava sob a pele.
Ao virar um dos corredores curvos, deu de cara com Vladimir Kaine novamente, que a esperava encostado à parede, os braços cruzados. Ele a analisou de cima a baixo, o corte recente no supercílio ainda sangrando levemente.
“Você demorou, mesmo em?” disse ele, com um meio sorriso sarcástico. “Tava ocupada revivendo traumas ou só curtindo um colapso nervoso de luxo?”
Seraphina parou diante dele, estreitando os olhos. “Ah, desculpa se não terminei minha provação gritando e quebrando o que via pela frente como um primata com raiva.”
Kaine exclama um pouco incomodado. “Talvez porque você não tenha coragem de encarar o que tem lá dentro. Eu fui direto ao ponto.”
Ela deu um passo à frente. “Ou talvez você só seja um tolo impaciente com complexo de mártir. Quem grita mais nem sempre é quem sente mais, Kaine.”
Ele sorriu, aquele sorriso torto e desafiador que fazia os outros quererem socá-lo ou acompanhá-lo em batalha. “Vai ver. Mas no fim, eu saí primeiro. Como sempre.”
Seraphina respirou fundo, a rivalidade entre os dois se incendiando em silêncio. Mas mesmo com as faíscas, havia algo mais: uma simetria nas cicatrizes, uma similaridade na dor não dita. Rivais, sim mas de um tipo que apenas os sobreviventes reais compreendiam.
Antes que qualquer um pudesse acrescentar mais farpas, uma figura encapuzada surgiu da penumbra adiante, passos meticulosamente calculados. Specter. “Chega vocês dois, agora!” A voz dele cortou o ar. “Avaliamos o suficiente por hoje.”
Kaine recuou levemente, mas sem baixar a guarda. Seraphina manteve o olhar firme.
Specter olhou diretamente para Seraphina e então falou. “Choi Eun-kyung. Você está dispensada por hoje. Ordens superiores.”
“Dispensada? Mais por qual razão?” Seraphina franziu levemente o cenho desconfiada.
“Descanso obrigatório,” completou Specter. “Amanhã, você receberá sua primeira missão em campo. Prepare-se. Ela será real.”
O silêncio caiu por um momento. Kaine arqueou uma sobrancelha, surpreso. “Missão já? Que interessante Choi...” murmurou ele, com um leve tom de inveja contida.
Specter virou-se e desapareceu pelo corredor oposto, sem esperar respostas. A decisão era final.
Seraphina permaneceu imóvel por alguns segundos. Então, com um último olhar para Kaine que a observava com uma mistura de desafio e curiosidade, virou-se e seguiu para seus aposentos.
O quarto era minimalista, quase espartano. As paredes cinzentas eram lisas, e a iluminação era fria e constante, sem janelas, sem relógios. Era fácil esquecer o tempo ali.
Seraphina fechou a porta e se aproximou da mesa onde o anel de contenção de EVP ainda em repouso permanecia ao lado de um pequeno transmissor criptografado. Ela se sentou, respirou fundo e ativou o canal oculto.
A tela holográfica surgiu com estática, até que uma figura encapuzada se materializou: Elysian. Ou como ela sempre o reconhecia, Oblivion Sage. “Está inteira?” ele perguntou com sua voz calma, analítica mas carregada de algo mais profundo que preocupação, conexão.
Seraphina assentiu levemente. “Sim. A provação foi... mais profunda do que esperava.” Elysian a observava com atenção, mas não perguntou detalhes. Ele sabia que ela contaria o que quisesse no tempo dela.
“Eles me designaram para uma missão amanhã. Primeira operação em campo. Ainda sob a identidade de Choi Eun-kyung.” Houve um breve silêncio.
“Isso é cedo,” disse ele, olhando para o lado como se calculasse dezenas de variáveis ao mesmo tempo. “Eles estão testando seus limites... ou tentando te lançar como isca.”
Seraphina apertou os punhos. “O Primevo estava presente. Mas não revelou a identidade. A bruma ao redor dele... parecia responder à minha presença.”
Elysian franziu levemente o cenho. “Seja quem for, não subestime. E nunca revele seu nome verdadeiro Seraphina. Eles ainda não o ouviram... e isso precisa continuar assim.”
Seraphina concorda completamente sabendo que quanto menos a Ordem saber, melhor suas chances de permanecer sem vigilância reforçada “Sim.”
Elysian então depois de um tempo refletindo acrecentou. “Dependendo da natureza da missão, pode ser o momento ideal para observar a movimentação de outros alvos, infiltrar dados... ou deixar uma semente para as Ruínas.”
“Entendido.” A voz dela era firme, mas carregada de peso. “Eles acham que me moldaram. Mal sabem que estou afiando a lâmina.”
Elysian com uma leve expressão de satisfação, como um professor vendo sua aluna tirando a melhor nota. “Durma, Seraphina. Amanhã será o primeiro ato de um jogo mais perigoso. E você sabe como jogar.”
A transmissão caiu. Seraphina se recostou na cadeira, os olhos no teto. Estava cansada. Mas não quebrada. Nem um pouco. Ali, no silêncio metálico da Nexus Umbra, ela sentia que o mundo começava a se mover e que, quando o tabuleiro virasse, o nome “Choi Eun-kyung” não seria lembrado. Mas Seraphina Chaos... se tornaria o legado que engoliria todos os pilares do velho mundo que sobrariam da Ordem de Érebo.