Primeira missão

O quarto de Choi Eun-kyung estava envolto por uma calmaria tão intensa que chegava a sufocar o silêncio. Era aquele tipo de tranquilidade acompanhada por uma tensão suave a antevisão do caos que a qualquer instante se desdobraria. Seraphina permaneceu assentada na beirada da cama, os dedos atravessando as fivelas das botas com precisão quase ritualística. O uniforme da Ordem de Érebo jazia sobre seus joelhos, resistente, discreto, tingido de tons escuros que mesclavam perfeitamente com os becos urbanos pela qual transitariam mais tarde. Uma braçadeira preta, com o símbolo esbranquiçado da Ordem, repousava sobre a mesa. Ela a encarava brevemente, ciente de que aquele acessório pequeno simbolizaria sua legitimidade em uma missão oficial.

Enquanto prendia o cabelo num coque firme, respirou fundo, ouvindo o friccionar do material da luva contra a pele. Então seus olhos pousaram no anel de contenção de EVP, repousando sobre a palma estendida, uma criação de Elysian que lhe permitia domar sua energia com segurança. A princípio, o artefato funcionava como um medidor quando bravas emoções ameaçavam extravasar, liberava impulsos cortantes e neutros ao fluxo da magia sombria. Agora, pela primeira vez oficialmente em campo, aquele anel seria sua âncora, uma proteção contra si mesma e contra o desenrolar imprevisível dos eventos.

Uma batida murmurante soou na porta. Seraphina suspirou. “Ethan.” Conseguiu conter o tom nervoso quando pronunciou atitude firme, apesar dos nervos à flor da pele por saber quem estava atrás da porta. “É você, não é?”

A porta se abriu, revelando a figura despojada e confiante de Ethan. Como sempre, encostado no batente com postura relaxada, cabelos castanhos levemente bagunçados, o sobretudo escuro pairava sobre o terno de inspetor da Ordem. Ele sorriu, casual, e disse no inglês arrastado pelo sotaque americano que ela insistia em corrigir. “Good morning, rookie.”

Seraphina ergueu uma sobrancelha, embora fosse evidentemente nervosa aquela era a sua primeira missão real. “Ethan, já falei... meu inglês não é bom. Faz um favor pra mim e fala direito merda.”

Ele riu, mudou o tom para algo mais reconfortante. “Eu sei disso. Mas criar esse clima de equipe é parte do negócio não é?” Passou por ela e entrou no quarto como se estivesse em casa. “Você tá tensa. Essa missão é só para medir seu desempenho em campo? nem muito fácil, nem impossível.”

Ela virou o rosto, cruzando os braços. “Se não era nada demais, por que me mandam com você para me ‘inspecionar’?”

Ele parou no centro do quarto, virou-se meio para trás, deu de ombros. “Bom a liderança lá em cima ainda não sabe se você é um cavalo de corrida ou uma bomba-relógio. E eu fui quem te trouxe pra Ordem, lembra? Então me mandaram aqui pra garantir que você não exploda nada no literal ou no figurado, óbvio.”

Seraphina engoliu o aperto no peito, respirou profundamente, o ar gelado do quarto parecia intensificar seu nervosismo. Ajustou a braçadeira, simples gesto de memorização inconsciente. “Então me observe”, declarou, olhando-o nos olhos. “Mas sem atrapalhar. Entendido, Ethan?”

Ele assentiu, rindo. “Claro. Eu nunca te atrapalhei na vida minha querida Marechal. Vamos?”

Duas horas depois, o jato da Ordem de Érebo cortava as camadas superiores da atmosfera sobre o sul da França. Do lado de fora, nuvens cintilavam compondo desenhos que jamais se repetiriam, e os motores ressoavam com a promessa de uma missão iminente. Seraphina sentou-se diante de uma mesa dobrável, ligada a um tablet que exibia mapas, rotas, trajetos alternativos e documentos forjados. Era o arsenal técnico que lhes daria vantagem. Ela ajustou a braçadeira, firmou a postura: o peso da responsabilidade a fazia vibrar.

Ethan, em frente a ela, cruzou os braços e explicou a missão, cada detalhe era carregado de precisão militar. “Nosso destino é Marselha. Identificar e interceptar um carregamento de tecnologia arcana modificada. Esse pacote parte do porto velho, percorre rotas subterrâneas, chega à fronteira Itália. Temos que parar antes disso.” Ele pausou, olhando o painel do avião. “Equipe mínima. Zero contato com civis. Essa é a prova de fogo, quase sem margem de erro.”

Seraphina inclinou-se para frente. “E se houver algum tipo de confronto?”

“Controle absoluto,” respondeu ele, firme. “Nenhuma explosão lilás ou brilhante sacudindo quarteirões. Nada de um show de luzes ornamental. Clareza e eficiência. Restrito, direto, cirúrgico.” As palavras fluíam, firmes e certeiras, moldando uma mentalidade.

Seraphina assentiu, sentindo o pulso acelerar. “Já entendi caramba”, respondeu. Respirou fundo. “Não é como se eu não soubesse manter o controle diferente de você, obviamente.”

Ethan soltou um sorriso rápido. “Certo. Mas segue meu conselho conta até três antes de ativar.”

O avião pousou suavemente no aeroporto de Marselha-Provence. Uma brisa que misturava o sal do mar e o calor mediterrâneo entrou pelas portas como se a cidade tivesse cumprimentado os novos visitantes com um sussurro. Seraphina observou atentamente cada passo. O ambiente era comum: turistas, carrinhos, vozes diversas. Mas ela havia sido treinada para encontrar negócios subterrâneos atrás das fachadas pacíficas.

Eles desceram os degraus do avião. O uniforme havia sido substituído por roupas civis comuns, um sobretudo discreto e jeans escuro para Seraphina; Ethan optou por uma calça leve e jaqueta alinhada. Tudo voltado a disfarçar. Nenhuma insígnia, nenhum brilho. Apenas dois operativos humanos, aparentemente inofensivos.

Do aeroporto, seguiram até a parte velha da cidade. O caminho serpenteou por ruas estreitas de paralelepípedos: lojas de souvenirs, cafés fumegantes, velhos toldos, ares boêmios. Ao redor, habitantes viravam a esquina com pressa; alguns funcionários trabalhavam descarregando caixas em lanchonetes. A dinâmica era agitada sinal de vida urbana. Mas para aqueles treinados, o silêncio entre os sons, os detalhes nos gestos, falava muito mais alto.

Sigilosamente, atravessaram um portal de serviço, onde encontraram um velho prédio mal iluminado: a fachada de uma loja de antiguidades fechada fazia contraste com a modernidade transitória das ruas. Lá dentro, paredes descascadas e vitrines empoeiradas. O lugar era a primeira de três bases operacionais: um canal de recepção do contrabando.

Ethan sussurrou: “Respira fundo, rookie. Hora de testar você. E esse é seu palco.” Ele empurrou a porta levemente e entraram.

Seraphina sentiu o coração disparar. O cheiro misto de mofo e madeira antiga entrou em suas narinas. Os barris de metal rangiam sob algumidade. Era uma calmaria cuidadosamente planejada para ocultar o real propósito do lugar, a tensão pairava no ambiente mesmo com luz fraca; a qualquer instante, poderia explodir.

Eles avançaram, mantendo distâncias seguras. As sombras dançavam nas paredes, lembrando que qualquer movimento brusco chamaria a atenção. Seraphina apertou a braçadeira: o símbolo da Ordem injetava força, mas também exigia responsabilidade.

Ethan afastou o capuz. “Ready?” murmurou no ouvido dela. Tentou vestir um tom mais descontraído, mas o tom ainda remetia a um formalismo rígido. Ela respirou com atenção, temperou com calma. “Pronta.”

O objetivo era simples: observar e identificar a estrutura do grupo, suas defesas, quantidade de homens, armamentos, alvos de fuga. Precisavam passar informações para a base e interceptar o carregamento. A qualquer sinal de reação adversa, Seraphina entraria em ação.

Eles seguiram pelo corredor lateral, o chão rangendo discretamente, exigia atenção. No tablet, Seraphina conferia códigos. Cada número representava peças arcana, instrumentos de decodificação, pequenos artefatos de espionagem e líquidos bioativos, alguns recuperáveis para estudo. Os traficantes tratavam aquilo como mercadoria valiosa, mas não sabiam lidar com a pura essência do EVP, a energia deles era uma ameaça tangível à produção.

O corredor desembocou em uma porta de metal enferrujado identificação “Armazém 47”. Embaixo, o número era riscado e reescrito em tinta borrada. Ethan pressionou um botão de comunicação. “Estamos posicionados. Sem confirmação visual ainda.” A voz dele foi transmitida, leve e firme.

Seraphina avançou até o batente, os sentidos afinados. EVP formigava sob a pele. Podia sentir uma leve distorção no espaço, talvez campo de camuflagem, talvez mágica rudimentar mal estabilizada. Respirou devagar. Inchou o peito, mas controlou o ímpeto. Era como conter um vulcão interno que só esperava um sinal para rugir.

Ethan a observava do canto, pronto para intervenir. “Sentiu alguma coiss aí Choi?”

Ela respondeu sussurrando: “Sim. Há distorção, talvez camuflagem no perímetro. Nada muito forte, mas significa tecnologia arcana ou falha. Posso abrir passagem com o meu EVP.” Ele assentiu silencioso.

Com precisão, Seraphina sustentou o EVP na palma da mão, concentrou a energia curta e aguda. Deslizou o punho contra o metal frio. Um tremor vibrou no ar por alguns segundos fazendo as paredes tremeram levemente. A ilusão pra fora se partiu como vidro e permitiu vislumbrar três figuras dentro do galpão: homens manipulando caixas, equipamentos eletrônicos, vidros com líquidos pulsantes em cores fracas. Se mantivessem quietos, pensariam estar protegidos. Eles não estavam.

“Contato visual confirmado.” Seraphina sussurrou. “Três alvos. Dois parecem não ter EVP, um pode estar canalizando casualmente.” Seus olhos dourados captavam cada detalhe, cada gesto.

“Segue o plano.” Ethan respondeu. “Você entra, e eu entro logo atrás. Se houver reação, eu dou cobertura.”

Ela respirou fundo. Fechou os olhos por um breve instante, recitando mentalmente os ensinamentos de Elysian, nenhuma ação desnecessária. Use o mínimo de manifestação arcana possível. Evite danos colaterais. Se quiser acabar com isso rápido, controle emocional e ataque cirúrgico.

A porta escancarou-se lenta e silenciosamente. Um corredor de sombra e luz bruxuleante esteve entre seus olhos e os traficantes. Em sua mente, cada segundo era câmera lenta. Ela entrou, corpo leve, quase flutuante, e se postou no centro do cômodo. Os homens ergueram os rostos ao mesmo tempo.

O primeiro ergueu uma arma rudimentar, parecia uma garrucha adaptada. Antes que pudesse disparar, um estalo ígneo lilás cruzou o ar, a arma escapou de sua mão com uma faísca curta e sumiu no chão. Seraphina avançou com graça letal. Seu primeiro ataque foi invisível: um soco seco, bracelete girando, o segundo alvo cambaleou. O som abafado do impacto fez o galpão estremecer.

Enquanto isso, o terceiro se lançou para o painel de alarme. Sua mão tocou o botão, mas uma lâmina de energia partiu o painel no meio. Um corte limpo, sem faíscas, sem alarme. O susto foi maior que a gravidade da cena.

Ethan observa do corredor, pronto. Pensava: Diferente. Ela parece mais distante, mais controlada. Continua feroz como no treinamento, mas agora há elegância nervosa.

Tudo parecia resolvido, mas o embate estava camuflado entre as colunas de metal. Um silêncio tenso pairava. Então, uma quarta figura emergiu de um compartimento escondido atrás das caixas: alta, imponente, vestindo exoesqueleto rústico. Veias metálicas pulsavam ao longo dos braços; um brilho frio percorria suas íris modificadas. Ele rosnou. "Vocês sempre mandam novatos para essas missões?"

O olhar dele se fixou em Seraphina, luz sintética a percorrer as lentes dos olhos. Ela sentiu o EVP borbulhar sob a pele como se uma tempestade interna se formasse, prestes a romper a contenção. "Se é luta que você quer... vai ter." ela respondeu, em tom súbito, firme, deixando o sindicato arcano fluir.

O homem lançou-se em direção a ela e a terra tremeu. EVP explodiu como uma onda interior o ambiente vibrou. Os contornos da realidade se flexionaram por um instante, e o espaço celular ao redor se contorceu. As luzes bruxuleantes piscaram. A brisa vinda da rua encontrou correntes artificiais.

Ela ergueu os braços, princípio do combate propiciado ao exoesqueleto. Uma rajada sutil, invisível, empurrou o inimigo para trás. Pilares estremeceram. O campo desta estrutura se tornou palco, dois corpos, tecnologia e técnica, se confrontando balançando caixilhos.

Ethan entrou, mas irá cruzar o limiar dinamizado apenas quando julgar necessário. Sabia que estava prestes a testemunhar o desfecho do embate, sua aposta era que Seraphina sairia vitoriosa, mas faltava a passagem final.