A adrenalina corria como fogo líquido pelas veias de Seraphina. Seus olhos, afiados como lâminas recém-forjadas, analisavam cada movimento dos três alvos que surgiram diante dela nas ruínas da antiga estação subterrânea. O ar era pesado, úmido e saturado pelo cheiro penetrante de ferrugem e mofo. As sombras pareciam se mover com vida própria entre os pilares corroídos e os trilhos abandonados, criando um ambiente onde cada passo ecoava como um aviso.
Ela manteve-se imóvel por um breve segundo, apenas o suficiente para alinhar sua respiração com os batimentos do coração. O foco era absoluto. Sentia o peso de cada presença hostil como se fossem pulsações vibrando no chão rachado sob seus pés. Ainda que a escuridão dominasse o lugar, sua percepção treinada via muito além dos limites visuais. Cada variação de som, cada mudança na corrente de ar, informava mais do que qualquer feixe de luz.
"Calma... respira... lembra do que ele disse," pensou, seus pés se movendo com leveza felina. Assumiu uma postura defensiva — não tensa, mas fluida, moldável, como a água num riacho em constante adaptação. A lição estava gravada em sua mente.
A memória veio como uma lâmina cruzando a consciência. "Seraphina," dizia Elysian, com a voz controlada, como um bisturi cortando o ar, enquanto ela ainda arfava após um treino exaustivo em uma das salas de gravidade variável. "Eu não sou o mais forte fisicamente entre os Remanescentes das Ruínas. Mas se estivermos falando de técnicas de luta... bom, até Nyx tem problemas diante da minha precisão."
Ele se aproximou, o olhar clínico avaliando cada detalhe da postura dela, e bateu suavemente no centro de seu peito com dois dedos. "Seu potencial é absurdo. Se treinar com foco, pode ultrapassar qualquer um. Mas não tente copiar. Aprenda, absorva... e transforme isso em seu próprio estilo."
Ela exalou lentamente, sentindo o ar frio entrar pelas narinas. O primeiro inimigo, o mais alto, avançou com um grunhido. Seus movimentos eram largos e descuidados, confiando em força bruta mais do que técnica. Um erro fatal.
Seraphina desviou com um giro elegante, deixando o golpe rasgar o ar a centímetros de seu rosto. Ela percebeu de imediato: o homem era um brawler urbano, sem formação refinada. Ninjutsu. Seus músculos se moveram com precisão. Seu cotovelo encontrou o maxilar dele com um estalo surdo, interrompendo o ímpeto do ataque. Em seguida, um chute direto com o calcanhar acertou a articulação do joelho em ângulo diagonal. O som seco da ruptura foi acompanhado por um grito cortante. O corpo do homem desabou como uma marionete sem cordas, mas ela já se movia para o segundo.
Este era mais cauteloso. Tinha postura. Guarda alta. Ex-militar, talvez? Krav Maga, ela deduziu pela forma como os pés estavam posicionados, preparados para deslocamentos curtos e rápidos. Ele avançou com um golpe direto à traqueia, uma tentativa de neutralização rápida. Mas ela já estava dentro da zona cega dele.
Desviou com o mínimo de movimento, torcendo o corpo como uma serpente, e respondeu com um soco preciso no plexo solar. O homem arquejou, instintivamente levando os braços ao estômago. Era o que ela queria. Girando, ela prendeu a mão dele e aplicou um golpe de Line, uma técnica de ruptura em articulação. Os dedos da mão do inimigo cederam sob a força aplicada, quebrando-se com um som grotesco.
A lembrança da voz de Elysian cortou o campo de batalha em sua mente: "Linhas e quebras. Nunca lute por impacto. Lute por finalização. Economize força, maximize eficiência."
O terceiro homem hesitou. Diferente dos outros, usava uma faca improvisada, feita a partir de um pedaço de trilho. Os olhos dele estavam arregalados, mas ainda havia coragem em seu semblante. Era o mais perigoso. Desespero aliado à arma.
Seraphina sorriu. Não um sorriso de escárnio, mas um de reconhecimento. Ela respeitava aquele tipo de oponente. Decidiu usar Rough and Tumble, combate desestruturado, adaptativo, criado para brigas reais. Jogou-se propositalmente no chão, levando o inimigo junto no impacto. O choque reverberou pelos trilhos, espalhando poeira.
Durante o rolamento, prendeu o braço armado dele entre os joelhos e empurrou o cotovelo para trás em um ângulo antinatural. O grito do homem cortou o ar abafado, mas ela já estava em movimento, finalizando com um golpe de Muay Thai na clavícula. Outro estalo. Outra fratura.
A missão era clara: capturá-los vivos. E assim ela fizera. Vivos, sim. Inteiros? Nem tanto.
Ela permanecia ali, ofegante, mas firme. O suor escorria pela têmpora, misturando-se ao sangue dos oponentes e à poeira do ambiente. Os três estavam no chão, gemendo de dor, impossibilitados de qualquer reação. Articulações comprometidas, vasos afetados. O suficiente para garantir que não fugiriam nem sob adrenalina.
Enquanto ajustava os cabelos com um movimento rápido e limpava o sangue das luvas com um lenço interno do casaco, um arrepio percorreu sua espinha. Não de medo, mas de instinto. Ela sabia que não estava sozinha.
Ethan a observava das sombras, o corpo fundido à penumbra como um predador cauteloso. Ele não havia interferido. Era o combinado.
"Not bad..." murmurou ele em inglês, um leve sorriso escapando-lhe os lábios. Sem tirar os olhos dela, ativou o comunicador com um gesto quase imperceptível. "Alvo 1, 2 e 3 neutralizados. Agente Choi Eun-kyung... excedeu as expectativas."
Mas Seraphina não relaxava. As pulsações ainda estavam altas, como se algo estivesse por vir. O som da luta reverberava em sua mente. As técnicas usadas, os momentos precisos. Tudo se entrelaçava. Ela queria mais. Queria aperfeiçoar.
"Ainda não está perfeito..." murmurou para si mesma. "Mas estou chegando lá."
Ela se virou devagar, o olhar varrendo o cenário. O combate havia terminado, mas a missão mal começara. E a estação, com seus trilhos enferrujados e pilares trincados, parecia esconder muito mais do que apenas três inimigos.
As luzes do galpão piscaram fracamente, projetando sombras instáveis nas paredes. Seraphina, sob o disfarce de Choi Eun-kyung, abaixou-se ao lado dos corpos inconscientes, examinando-os um por um com a precisão de uma médica de campo. Suas mãos moviam-se rápidas, mas calculadas, verificando sinais vitais, removendo itens pessoais, inspecionando por transmissores escondidos.
Ethan encostou-se a uma parede próxima, cruzando os braços. Observava-a com um olhar que mesclava respeito e uma inquietante nostalgia. A forma como ela se movia... não era a de uma novata. Era o olhar e a postura de uma veterana. Ele já tinha visto aquilo antes, em zonas de guerra, entre soldados marcados por perdas e cicatrizes.
"Limpe tudo," disse ele, voltando à postura fria e eficiente. "Nada de rastros. Não somos fantasmas, mas temos que parecer."
Seraphina assentiu com um leve movimento de cabeça. Puxou um pano embebido em neutralizador químico de dentro do casaco e começou a apagar suas pegadas, limpar o sangue e remover qualquer vestígio que pudesse ser rastreado. Seu corpo doía, mas ela não parava.
Com precisão cirúrgica, queimaram documentos encontrados, destruíram dispositivos eletrônicos e aplicaram os neutralizadores nas superfícies onde haviam tocado. Ao final, os três homens estavam algemados, sedados e colocados no porta-malas de um carro modificado, camuflado para infiltrações de campo.
Horas depois, já estavam em um hotel reservado por Ethan. Um edifício antigo nos arredores de Lyon, França, em uma área esquecida pelo tempo. O quarto era espaçoso, com cortinas pesadas e isolamento acústico reforçado, feito sob medida para agentes em missão.
Seraphina se jogou em uma poltrona, exausta. O combate havia cobrado seu preço, mas havia mais por vir. Ethan ajustava os dispositivos de vigilância e monitoramento com a destreza de alguém que fizera isso cem vezes.
"Você não vai descansar?" perguntou ela, erguendo uma sobrancelha.
"Só depois que você cumprir o que falta," respondeu Ethan sem virar-se. "A Ordem exige provas de que você é boa em todas as áreas, não só em combate."
Seraphina já sabia. Mas ouvi-lo em voz alta endureceu ainda mais seu semblante. "Interrogatório," murmurou, levantando-se.
Ethan assentiu. "Mostre pra eles que você sabe fazer isso. Mostre que não está aqui pra brincadeira."
A sala improvisada para o interrogatório parecia ter sido esculpida da própria decadência. As paredes de concreto bruto estavam cobertas por manchas antigas de infiltração, o teto baixo criava uma atmosfera claustrofóbica, e o único ponto de luz era uma lâmpada pendurada por um fio exposto, balançando suavemente com o vento que escapava por uma fissura na janela trancada. Cada oscilação da luz projetava sombras instáveis nos rostos presentes, como espectros à espreita, atentos ao que viria.
Os três capturados estavam dispostos em cadeiras de aço enferrujado, as mãos algemadas às costas e as pernas amarradas. A sedação começava a perder o efeito. Um deles tossia com dificuldade, cuspindo saliva misturada a sangue. Os outros dois ainda tentavam manter alguma dignidade, os olhos semicerrados, vasculhando o ambiente por uma saída que sabiam não existir.
Seraphina adentrou o cômodo com passos lentos, mas firmes. O casaco escuro balançava suavemente em seu corpo esguio. Já não era a soldada da estação subterrânea, era agora o instrumento frio e meticuloso que a Ordem esperava. Mas por trás dos olhos castanhos, o espírito ferido de Celeste Callahan ainda pulsava, moldando cada escolha com uma fúria silenciosa, precisa, calculada.
Ethan posicionou-se ao fundo, ao lado do monitor onde uma câmera registrava tudo. A missão não era apenas extrair informação, era um teste. Eles estavam sendo assistidos por olhos invisíveis. A Ordem queria ver se Choi Eun-kyung sabia fazer aquilo com eficiência… ou crueldade.
Ela puxou uma cadeira simples e a posicionou diante do primeiro prisioneiro, o mais jovem, o que empunhava a faca improvisada. Sentou-se lentamente, cruzando as pernas com elegância, e encarou-o em silêncio por longos segundos. A tensão era um fio esticado até o limite. Nenhuma palavra. Apenas o som do relógio no pulso de Ethan, marcando o tempo com uma cadência quase cruel.
“Nome,” disse ela por fim, a voz neutra, quase monótona. O homem riu, mesmo com a mandíbula deslocada. Um som grotesco. “Vai se foder vadia de merda.”
Ela suspirou. Levantou-se sem pressa, andou até a mesa improvisada ao lado da parede e pegou um alicate. Não disse nada. Apenas voltou e ajoelhou-se diante dele, observando atentamente suas mãos presas. O silêncio era tão opressor que os dois outros prisioneiros contiveram a respiração.
“Você acha que sou como eles,” disse ela, girando lentamente a ferramenta nos dedos. “Que vou gritar, bater... fazer escândalo. Mas escute bem...”
Ela olhou nos olhos dele. “O que mais me ensinaram foi a entender os limites humanos. Os seus, especificamente. Sei até onde sua dor vai antes de você desmaiar. E sei como impedir que isso aconteça.”
E então, com precisão clínica, ela prensou o alicate no dedo mindinho do prisioneiro, um estalo seco, um grito estrangulado, e logo em seguida o silêncio forçado por um lenço enfiado em sua boca. Ele se contorcia, suando frio, enquanto ela apenas limpava o sangue da ferramenta com um lenço branco. “Agora vamos de novo.” Ela retirou o lenço da boca dele com delicadeza. “Nome.”
“…T-Tarek…” arfou ele. “Tarek Khaled…” Ela assentiu levemente. “Boa escolha.”
Nas duas horas seguintes, Seraphina foi uma orquestradora meticulosa de dor e alívio. Não havia pressa, nem caos. Era tudo uma dança silenciosa, tortura psicológica entrecortada com doses medidas de estímulo físico. Cada resposta era anotada mentalmente. A base que eles vigiavam, os turnos, as rotas de suprimento, os nomes dos supervisores, tudo foi sendo exposto como um mapa sangrento.
O segundo capturado desabou depois de ver o que ela fizera com o primeiro. Um homem alto, ex-militar, que mantinha os olhos frios até o momento em que Seraphina sussurrou algo em seu ouvido, palavras que Ethan não conseguiu captar, mas que fizeram o homem empalidecer como se tivesse visto um espectro.
O terceiro resistiu por mais tempo. Mas o tempo era um luxo que ela possuía. E a paciência era uma arma que aprendera com os melhores.
Ao final do interrogatório, Seraphina lavou as mãos no lavabo do quarto, a água misturada a sangue e suor escorrendo pela pia de porcelana rachada. O reflexo no espelho tremia levemente sob a oscilação da lâmpada. Seus olhos estavam escuros, mas serenos. Não havia culpa. Havia foco.
Ethan, parado na porta, observava sem dizer nada. Quando ela se virou, ele ergueu um leve sorriso. “Se fosse um teste... você passou.”
“Não foi um teste,” respondeu ela, secando o rosto. “Foi necessário.” Ele assentiu, reconhecendo não apenas a resposta, mas a mulher diante dele. Seraphina não era uma recruta qualquer. Era o tipo de guerreira forjada por tragédias e esculpida em propósito.
Pouco depois, os dados extraídos foram codificados e enviados para os canais internos da Ordem de Érebo. Ao mesmo tempo, uma mensagem telepática era recebida diretamente no centro da mente do Primevo. “Missão concluída. Interrogatório finalizado. Informações extraídas com sucesso. Choi Eun-kyung será útil.”
O Primevo não respondeu, mas um leve movimento nos olhos denunciou algo a mais. Ao lado dele, em um ponto isolado do quartel da Ordem, a/o líder suprema cuja presença era tão poderosa quanto etérea, observava silenciosamente o relatório.
Sem dizer palavra, ela apenas estendeu a mão sobre o símbolo negro da Ordem de Érebo esculpido no metal da mesa. Choi Eun-kyung daria seu próximo passo. E eles estariam observando.