Ecos de Glória

O quarto do hotel cinco estrelas que Ethan havia reservado parecia um mundo à parte do que acabavam de viver no galpão abandonado. O contraste era quase absurdo. Por um lado, o cheiro de sangue seco impregnado nas paredes de concreto do galpão ainda dançava na memória de Seraphina, junto às marcas visíveis da luta recente, arranhões, amassados e manchas que não se apagariam tão cedo da pele.

Por outro, o ar doce, quase intocável, daquele ambiente sofisticado. O tapete felpudo e a mobília de madeira polida transmitiam uma sensação de conforto quase estranha para alguém acostumado a noites frias e duras sob a chuva, o cheiro de pólvora e o eco de tiros ao longe.

Ela permaneceu sentada naquela poltrona do canto, o olhar fixo na janela ampla que se abria para a movimentação pacata às margens do rio Sena, onde o sol começava a refletir a superfície da água em pontos cintilantes. A suavidade do ambiente, a maciez do tecido sob as mãos, tudo parecia um luxo que ela não reconhecia como seu, algo distante e até inconveniente para o momento.

Suas mãos, entretanto, continuavam ocupadas com um hábito automático: limpar minuciosamente os restos de pele, sangue e sujeira sob as unhas. Um gesto quase ritualístico, feito com uma precisão quase obsessiva que contrastava com a brutalidade que havia exibido horas antes. Seraphina parecia usar aquele gesto para reconectar seu corpo e mente, quase como se tentasse tirar dali o resquício de algo que não queria levar consigo para o presente.

"Bem, pelo menos essa missão não acabou em fogo e explosivos... Ainda, mais espero que prossiga assim por um tempo" Ethan quebrou o silêncio, fechando a porta atrás de si e jogando a mochila no chão com um baque abafado. Seus ombros estavam tensos, mas o tom era leve, quase brincalhão, numa tentativa clara de dissipar a tensão que pairava no ar.

Ele caminhou até ela, massageando os ombros cansados como se tentasse aliviar a rigidez que o serviço pesado e o nervosismo da operação haviam deixado em seu corpo.

Seraphina ergueu os olhos para ele, com um olhar frio e distante, sua voz soando quase monótona. "Você está decepcionado Ethan?"

Ethan sorriu, um sorriso que misturava orgulho e um pouco de melancolia.

"Talvez um pouco." Ele deu de ombros, sem esconder a admiração que sentia. "Mas não posso reclamar. Você deu um show."

Ele se jogou na cama grande, ainda com as botas calçadas, o rosto se aliviando enquanto se apoiava nos travesseiros. A expressão de quem sabia que, apesar da missão ter sido um sucesso, o custo e a tensão ainda estavam frescos.

Seraphina continuava sentada, sua postura rígida e quase impenetrável. Silêncio. Alguns segundos que pareciam minutos. Até que sua voz cortou o ambiente.

"A Ordem vai interrogar os restos. A medula deles ainda responde, mas por pouco."

O olhar de Ethan se voltou para ela com respeito e uma pitada de admiração.

"Você quebrou veias e articulações com tanta precisão que os analistas vão ter o que estudar por semanas."

Ele deu uma risada baixa, quase um sussurro, antes de erguer os olhos para encontrá-la. "Você sempre teve esse... talento especial."

O silêncio voltou a tomar conta do quarto. A luz suave da tarde filtrava-se pelas cortinas pesadas, lançando sombras que dançavam vagarosamente pela parede. Seraphina finalmente desfez o gesto mecânico de limpar as unhas e relaxou os ombros, um pouco.

"Lembra quando servíamos juntos?" Ethan retomou, a voz agora mais suave, quase nostálgica. "Ucrânia. Inverno de 2022. A bruma cobria os corpos no chão como cobertores. E mesmo assim... você marchava na frente como se fosse um belo nada."

Ela cruzou as pernas lentamente, mantendo a expressão impassível. O olhar fixo no vazio, como se revivesse uma memória distante, marcada por gelo, dor e luta incessante.

"Porque era necessário" respondeu com uma calma cortante, a verdade crua nas palavras.

"Não é isso que os soldados diziam" continuou Ethan, claramente mais descontraído, tentando puxar uma reação dela. "Eles diziam que você era uma tempestade feita carne. Quando te nomearam Marechal com apenas 17 anos, metade do batalhão ficou em choque. A outra metade... bem, tinha uma certa paixonite por você."

Ela arqueou uma sobrancelha, sem a menor mudança no tom ou na expressão. "Soldados patéticos. Fracos. Eles queriam uma deusa no campo de batalha e confundiram isso com desejo. Não me impressiona."

Ethan riu, um riso caloroso que parecia iluminar o quarto.

"Ah, que fria" provocou, virando-se de lado para encará-la diretamente. "Você nunca teve nem um pouquinho de interesse em alguém naquela época?"

"Não" respondeu com a mesma rapidez, como se aquela fosse a única verdade imutável. Depois, com sarcasmo. "Não era meu tipo. Sujos, barulhentos e com cérebros do tamanho de um mosquito afogado."

Ethan estreitou os olhos, preparando seu contra-ataque verbal. "Humm... E o Seo Min-kyu?"

A rigidez quase imperceptível nos ombros dela e o breve desvio do olhar não passaram despercebidos. "Ele é apenas... um velho amigo" disse, a firmeza em um tom tão ensaiado que quase não parecia genuína de fato. "Alguém em quem eu confio."

"Só isso?" Ethan sorriu maliciosamente, claramente se divertindo com a situação. "Porque da última vez que sugeri que ele poderia ser um bom nome para a Ordem, você me lançou um olhar que quase me fez mijar nas calças. Literalmente."

"Foi porque ele não tem perfil para lidar com tipos como você, e muito menos com a Ordem De Érebo." retrucou, seca, sem deixar o sarcasmo desaparecer.

"Claro, claro." Ethan zombou, com um brilho provocador nos olhos. "Nada a ver com o fato de que você age como se fosse uma viúva silenciosa quando ele tá por perto. Sempre com aquele ‘ele é só um amigo’ na boca, mas os olhos... Choi, os olhos contam tudo."

Ela se levantou lentamente, cada movimento carregado de autoridade e desdém. "Você está delirando" disse, fria. "E se continuar, vou arrancar sua língua enquanto você dorme, e garanto que vou fazer questão de ser absolutamente perfeccionista."

Ethan recuou com as mãos levantadas, o suor frio escorrendo pela testa. "Tá, tá, calma, marechal" disse, rindo nervosamente. "Já entendi. Tópico proibido."

Ela caminhou até a cama, se posicionando no lado oposto do quarto. "Boa noite, idiota."

"Boa noite, amor da tropa" provocou ele, provocando um sorriso quase imperceptível dela.

"Cale a boca, antes que eu decida usar os métodos que eu aprendi em você também" respondeu em coreano, virando-se para o banheiro. O silêncio voltou a reinar.

Na manhã seguinte, a rotina cruel começou com um banho de realidade literalmente. Um balde d’água gelada caiu sobre a cabeça de Seraphina sem aviso.

Ela saltou da cama como uma sombra em movimento, já com as mãos carregando a aura pesada do EVP, pronta para transformar em violência quem ousasse o incomodar naquele instante.

"BOM DIA, SOLDADO!" Ethan gritou, imitando a voz dura e estridente de um sargento exagerado. "Saudades dos velhos tempos, hein?"

Ela levantou-se num segundo, molhada, ainda em pijama, o olhar carregado de ameaça. "Você realmente quer morrer antes do café da manhã seu pedaço de estrume de cavalo?" perguntou, a voz carregada de uma mistura de cansaço e ironia.

Ethan deu um passo para trás, levantando as mãos em rendição. "Eu tô tentando reforçar a moral da equipe" explicou. "É o que eu fazia com você no acampamento quando você tava de mau humor lembra?!"

Seraphina cruzou os braços, um sorriso torto se formando no canto da boca.

"E eu lembro de ter quebrado seu nariz por isso" disse, avançando com rapidez, desferindo um chute certeiro nas partes mais íntimas e vulneráveis dele.

O som do golpe foi seco, a dor imediata. "AGH!" Ethan caiu no chão, se contorcendo em silêncio. "Você ainda... não perdoa...!"

Ela se afastou, caminhando com calma para o banheiro, como se aquela pequena revanche matinal fosse apenas uma formalidade. "Isso foi por todas as manhãs do inverno de 2023" declarou. "Agora prepare-se. Temos trabalho."

O cheiro de ferro e carne ainda impregnava o ar no galpão abandonado, mesmo que eles estivessem agora a quilômetros de distância dali, no conforto ilusório do hotel.

Os corpos dos três homens que haviam interrogado estavam vivos, mas apenas tecnicamente. A precisão cirúrgica com que Seraphina havia quebrado veias e articulações deixava os corpos numa condição que beirava o insuportável. Membros deslocados, ossos partidos e girados em ângulos antinaturais, veias estouradas e expostas como teias sob a pele translúcida, tudo mantido com cuidado para que não houvesse sangramentos externos excessivos, para que o sofrimento fosse constante e controlado.

Foi nesse cenário macabro que Ilyas Durov entrou. Ele era um membro respeitado da Ordem de Érebo, de nível equivalente a Ethan, conhecido por sua frieza inabalável em campo, sua capacidade de manter a cabeça fria diante do caos.

Mas, ao ver a cena, até mesmo ele cambaleou levemente. "...Pelo sangue de..." Ilyas levou a mão à boca, engolindo a náusea que ameaçava transbordar. "Isso aqui... parece que uma legião de demônios dançou aqui dentro."

Ethan, ainda se recuperando do chute matinal e da dor que ainda latejava, apenas cruzou os braços, encostando-se a uma pilastra com um sorriso torto. "Você chegou tarde. Ela já terminou o serviço" comentou com desdém.

Ilyas virou o rosto, misto de respeito e terror estampado na expressão. "Ela fez isso? A novata?"

"Choi Eun-kyung" Ethan respondeu, indicando com o queixo para Seraphina, que permanecia ao fundo, limpando as mãos com uma toalha úmida, calma e distante como alguém que acabara de sair de uma consulta médica, e não de um interrogatório brutal.

"Por... por Érebo..." Ilyas engoliu seco, depois se inclinou para perto de Ethan e sussurrou, os olhos arregalados de admiração e medo. "Me lembra de nunca, nunca, deixar essa garota irritada, Ethan."

Ethan deu um sorriso torto e nostálgico. "Anotado. É meio nostálgico, já perdi a conta de quantas pessoas me pediram exatamente isso. Acho que dá pra estampar esse pedido numa camiseta até"

Ilyas se recompôs e chamou ambos para perto. "Muito bem, soldados. Agora que temos respostas... temos um novo destino."

Seraphina se aproximou, o rosto inexpressivo, o corpo relaxado como se não tivesse passado as últimas duas horas torcendo o corpo e a mente de três homens até a beira da morte.

"Os dados que você extraiu, Choi Eun-kyung" disse Ilyas, "Apontam para uma base escondida nas catacumbas da antiga estação de trem de Marseille. Um setor abandonado da rede ferroviária. Ninguém entrou lá em anos oficialmente."

Ethan franziu o cenho, descrente. "Base subterrânea em uma estação de trem francesa? Parece roteiro de filme B."

"Parece" concordou Ilyas "Até que você percebe que mais de 40 toneladas de armamento experimental desapareceram nos últimos seis meses na França. E nenhuma câmera pegou absolutamente nada."

Seraphina permaneceu em silêncio, absorvendo a gravidade da informação. A superfície brilhante de uma civilização europeia moderna escondia sombras profundas e traiçoeiras.

"Vocês dois vão investigar o local" continuou Ilyas. "Levem equipamentos de detecção e mantenham o EVP oculto. Se encontrarem qualquer anomalia, comuniquem imediatamente. A Ordem não pode se dar ao luxo de perder uma soldada tão... singular quanto você, Choi Eun-kyung."

Ela o encarou por um segundo, não com orgulho, mas reconhecendo a delicadeza da palavra. Um reconhecimento velado, livre de bajulações. "Entendido" respondeu, firme.

Ilyas se afastou, já falando em seu comunicador. "Vocês partem em duas horas. A equipe de coleta cuidará dos... resíduos."

Quando ele saiu, Ethan olhou para Seraphina, o rosto se iluminando num sorriso irônico. "Resíduos. Que termo delicado pra três caras com as vértebras trocadas de lugar."

Seraphina não respondeu, o olhar perdido na janela do galpão. Lá fora, a luz tênue da manhã começava a dourar o céu de Marselha, tingindo de laranja as construções e as árvores esparsas, criando uma ilusão momentânea de normalidade.

Porém, sob aquele brilho ilusório, ela e Ethan sabiam exatamente o que os aguardava, o subterrâneo frio, escuro e esquecido, onde o cheiro de ferrugem e mofo se misturava ao de corpos que carregavam segredos doentios. O lugar onde a podridão do mundo real se escondia, longe dos olhos do mundo. Eles estavam prontos.