Entre o Silêncio e a Neve

A neve continuou a cair em silêncio, como se o tempo tivesse decidido pausar para observá-los. Cada floco parecia tocar o chão com delicadeza, quase respeitando o espaço sagrado entre os dois.

Jiwon segurava o copo de café com as duas mãos, ainda trêmulas — não pelo frio, mas pela presença inesperada à sua frente.

Park Seojun, abriu um guarda chuva sobre os dois e sentou-se ao lado dela, sem dizer uma palavra. Seu casaco escuro contrastava com os tons suaves do céu, e seu perfume discreto se misturava ao cheiro quente do café recém- passado.

Por um momento, nenhum dos dois disse nada.

E, estranhamente, não precisavam.

Jiwon desviou o olhar, tentando encontrar algo comum no horizonte. Mas tudo nela gritava que aquele instante era tudo, menos comum.

— Você sempre foge para a neve quando está triste? — ele perguntou com um sorriso leve, olhando para o mar à frente.

A pergunta a fez sorrir, mesmo contra a própria vontade. Era a primeira vez em dias que sorria sem sentir uma breve tensão, somente quando estava com sua amiga.

— É a primeira vez que vejo a neve cair assim… — murmurou Jiwon, com a voz baixa, quase se misturando ao vento. com as mãos abertas esperando a neve cair em suas mãos — Parece que o mundo desacelera.

Seojun assentiu, os olhos ainda fixos nas ondas distantes.

— Talvez por isso ela seja tão mágica. A neve não tem pressa. Ela só... cai. E espera que a gente perceba.

Jiwon abraçou o próprio corpo, estremecendo com o frio que começava a se intensificar. O vento que vinha do mar trazia um arrepio incômodo, cortando a leveza daquele momento.

Seojun percebeu e, sem dizer nada, tirou calmamente sua blusa de frio. Em seguida, entregou o guarda-chuva a ela.

— Segura aqui um instante — disse, com a voz tranquila.

Antes que ela entendesse o motivo, ele lançou a blusa sobre seus ombros, envolvendo-a com um gesto inesperadamente íntimo.

Jiwon ficou sem reação por um momento. A gentileza a pegou de surpresa. O coração dela acelerou sem permissão.

— Obrigada... — disse baixinho, apertando a blusa contra o corpo. — Mas não precisa... você vai passar frio.

Ele deu um leve sorriso, os olhos fixos nela.

— Eu aguento. — respondeu, simples. — E você precisa mais do que eu agora.

Enquanto segurava o café quente nas mãos, tentando se aquecer, Jiwon percebeu o olhar dele sobre ela. Intenso, mas sereno. Como se estivesse tentando decifrá-la sem pressa.

Desviou os olhos, desconcertada, o rosto levemente corado pelo frio.

— Então... o que você faz aqui sozinha ? — ele perguntou, como quem não queria invadir, apenas se aproximar.

Ela hesitou antes de responder, ainda envolvida pelo calor recém-recebido.

— Nada... hoje só... só precisava respirar.

Ele assentiu, respeitando o silêncio que veio em seguida. E então, como se lembrasse de algo, Jiwon ergueu os olhos

— A rosa... — murmurou. — A que você me deu no primeiro dia de aula... Por que fez aquilo?

Seojun inclinou a cabeça levemente, como quem revivia a cena em sua mente.

— Não teve um motivo específico — disse com um sorriso tranquilo. — Só achei que gostasse de flores.

Ela o encarou por um segundo a mais, tocada pelas palavras simples, mas sinceras.

— Eu gosto de rosas — confessou, com um leve sorriso.

Ele sorriu de volta.

— Que bom saber.

O silêncio se instalou novamente, mas dessa vez era leve, confortável. Como uma pausa entre notas musicais, necessária para que a melodia continuasse.

— E você, Jiwon... — ele perguntou, com suavidade — sempre morou em Busan?

Ela demorou um segundo antes de responder, como se tentasse se lembrar de algo que sempre escapava.

— Desde os dez anos, sim... Antes disso... — ela hesitou, olhando para o mar à frente. — Não lembro de muita coisa, na verdade. Minha infância antes disso é... um borrão.

Seojun não respondeu de imediato.

Mas sua expressão mudou.

Foi sutil — um leve apertar nos olhos, um músculo que se tencionou na mandíbula, quase imperceptível. Mas estava lá.

Por um instante, o olhar dele não estava mais no presente.

Era como se algo dentro dele tivesse sido ativado.

Mas em vez de questioná-la, ele desviou o olhar para o horizonte e assentiu lentamente, com um sorriso contido e uma expressão difícil de decifrar.

— Entendo... — disse, baixo, como se estivesse falando consigo mesmo.

Jiwon o observou de canto de olho. Aquela reação a fez franzir levemente a testa. Por quê? O que havia naquela simples frase que parecia tê-lo abalado por dentro?

Mas Seojun rapidamente retomou o tom leve.

— Bom, ainda bem que tem boas lembranças a partir daí, né?

Ela sorriu, embora ainda sentisse uma pontada de estranhamento. Era como se algo tivesse se fechado dentro dele, por um segundo, antes de se recompor.

O mistério ficou no ar — não gritante, mas presente. Como uma brisa gelada que passa e arrepia a pele antes de desaparecer.

Quando o café chegou ao fim, Jiwon ficou ali, apenas com as mãos envoltas no copo vazio, aproveitando o último calor que restava.

— Já está tarde... — ela murmurou, erguendo os olhos para o céu, enquanto a neve seguia caindo, delicada.

Seojun se levantou junto a ela, ajeitando a alça do guarda-chuva.

— Eu te acompanho — disse com naturalidade, mas firme.

Ela hesitou. Seu coração acelerou por motivos que não sabia nomear, mas a mente logo foi mais forte.

— Obrigada, mas... não é necessário, eu não moro longe daqui.

Jiwon começou a tirar o casaco que ele havia colocado sobre seus ombros minutos antes.

— Obrigada por isso, mas... acho melhor você ficar com ele. Vai passar frio.

Ele fez menção de recusar.

— Pode usar até chegar em casa. Tá nevando mais forte.

— Não, sério... — ela insistiu, estendendo o casaco de volta. — Eu agradeço muito, mas essa que estou ta ótima.

Havia um toque de timidez em sua voz, e os olhos evitavam os dele.

Seojun aceitou o casaco de volta devagar, sem discutir. 

— Tudo bem — disse com serenidade. — Mas então, pelo menos leve isso.

Ele segurava o guarda-chuva aberto sobre os dois, protegendo-os da neve que caía suavemente. fez um gesto suave com a mão, ainda segurando o guarda-chuva sobre ela.

— Fica com ele. Vai continuar nevando. Não quero que volte para casa doente.

Ela segurou o guarda-chuva com cuidado, surpresa pela gentileza dele — e mais ainda por sentir o coração acelerar novamente com aquele cuidado.

— Mas e você?

— Eu já chamei um táxi — respondeu, com um leve sorriso. — Ele tá vindo ali.

De fato, faróis surgiam ao longe, iluminando a neve tênue no ar.

Ela sorriu, sem saber como agradecer. 

— Obrigada... por hoje.

— Cuide-se, Jiwon.

Ela assentiu, segurando o guarda-chuva como se fosse algo valioso.

Quando se virou para ir embora, sentia-se diferente. Mais leve. Mais confusa. 

Seojun a observou até ela sumir na curva da rua.

Ele ficou ali por alguns segundos a mais, com o olhar fixo no caminho por onde ela havia ido.

Dentro de si, uma certeza começava a se solidificar.

A voz dela. A expressão ao falar da infância esquecida. Era ela. Tinha que ser.

A porta do táxi se abriu, e ele entrou em silêncio.

Enquanto o carro partia, ele olhou pela janela, e seus olhos escureceram com uma mistura de esperança e dor contida.

“Você está viva...”, pensou. “E eu te encontrei.”

Mas não era hora de dizer isso.

Ainda não.

A neve caía com mais intensidade agora, cobrindo a rua com uma delicadeza quase poética. O som dos passos de Jiwon abafados pela camada branca, enquanto ela se aproximava da casa, segurando o guarda-chuva que Seojun havia insistido em lhe dar.

Apesar do frio, seu peito estava aquecido — não apenas pelo café que ainda sentia no estômago, mas pela gentileza inesperada do professor, pelas palavras trocadas, pelos olhares. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro dela a deixava inquieta. A lembrança de sua própria confissão — a de que não se lembrava da infância antes dos dez anos — e a expressão que Seojun fizera logo depois... Um silêncio estranho pairou entre eles naquele momento... deixando o indecifrável.

Ela balançou a cabeça, tentando afastar os pensamentos.

Foi quando virou a esquina e avistou Minjae, parado na calçada em frente à casa. Estava com as mãos nos bolsos e os olhos fixos na direção de onde ela vinha. Ao vê-la, caminhou em sua direção, sem dizer uma palavra.

— Minjae...? — ela murmurou, surpresa.

Ele não respondeu de imediato. Com o cenho franzido e o olhar sério, retirou o próprio blusão — grosso, escuro, com o cheiro leve de algo familiar — e, sem pedir permissão, envolveu os ombros dela com o tecido quente.

— Você vai acabar doente andando por aí nessa neve — disse com a voz baixa, mas firme.

Jiwon segurou o guarda-chuva com mais força, o coração acelerando diante da atitude.

— Minjae... eu tô bem — ela tentou dizer, quase num sussurro. — Não precisava...

— Precisava sim — ele a interrompeu, com um olhar que não permitia discussão. 

Ela engoliu em seco, sem saber como reagir.

— Estava preocupado com você — continuou ele, agora mais calmo. —Eu sinto muito pelo que aconteceu mais cedo, o que minha mãe fez...

Jiwon abaixou o olhar, sentindo um peso estranho no peito.

— Tudo bem... só não quero falar sobre isso agora, por favor.

Minjae assentiu devagar, respeitando o silêncio dela.

— Vamos entrar. Você tá tremendo.

Minjae estendeu a mão para Jiwon, que, hesitante, a segurou. Os dois caminharam em direção à casa, em silêncio, lado a lado, com passos lentos e corações acelerados.

A noite os envolvia como um manto espesso, e a neve que começava a cair discretamente parecia querer apagar, por um instante, todas as dores do dia.

Eles não sabiam, mas aquela seria a última noite em que tudo ainda estaria como antes.