O templo era um relicário esculpido na própria montanha, envolto por névoa e silêncio. As portas se abriram com um rangido lento, revelando um salão escuro onde as paredes estavam cobertas de inscrições antigas e tapeçarias desbotadas pelo tempo. Takashi foi o primeiro a entrar, com a mão repousando sobre o cabo de sua katana. Os outros seguiram de perto — Maigo segurando firme o bastão, Kaien com o arco pronto e Raiko olhando ao redor com cautela, os olhos atentos às sombras. O ar ali dentro parecia mais denso, como se cada passo perturbasse um segredo enterrado. As chamas das tochas acesas ao longo das colunas tremulavam, como se reagissem à presença do grupo, dando ao ambiente um brilho espectral. Cada respiração ecoava, cada palavra parecia desrespeitar o silêncio sagrado do lugar.
— Não abaixem a guarda
Disse Takashi, com a voz baixa e firme.
— Algo aqui não está certo.
Maigo caminhou até uma das paredes, passando os dedos pelas inscrições entalhadas.
— São mantras de selamento... escritos em dialetos que desapareceram há séculos. Este templo não é apenas um refúgio… é uma prisão espiritual.
Raiko avançou, fitando um enorme portão de pedra que parecia selado com símbolos sagrados.
— Vocês ouviram isso?
Todos pararam. Um som surdo, quase como uma batida de tambor abafada, veio do outro lado do portão. Seguido por um sopro... como uma respiração grossa, contínua, viva. Kaien recuou um passo, erguendo o arco.
— Seja o que for, não está morto. Está esperando.
De repente, o portão se iluminou com runas douradas, e os selos começaram a se romper lentamente, como se uma força por trás os estivesse corroendo. Takashi avançou.
— Preparem-se!
Sem pensar, Raiko puxou sua máscara oni vermelha e a colocou. Seu corpo foi tomado pela energia ancestral e envolvido pela armadura samurai, suas duas katanas surgindo nas mãos. Takashi fez o mesmo, e em um instante sua máscara azul se fundiu ao rosto, e sua armadura reluzente se moldou a cada movimento. Maigo ergueu o bastão e traçou um círculo no ar com a ponta. Uma luz violeta cortou o salão, e quando a energia desceu sobre ele, sua armadura de guerreiro apareceu, junto da lança firme em suas mãos.
Do outro lado do portão, as runas se apagaram de vez, e as rochas começaram a se mover. Quando a entrada finalmente se abriu, a criatura que surgiu não rugiu, não correu, apenas saiu
Uma sombra viva, com olhos feitos de fumaça e garras que raspavam o chão de pedra. Era alta, humanoide, feita de energia sombria, com marcas que pulsavam em vermelho, como se tivesse sido esculpida em puro ódio. Takashi deu um passo à frente.
— Isso não é uma criatura comum…
Murmurou ele.
— É um fragmento de oni. Um dos enviados por Ryuma.
A sombra se moveu num borrão e atacou. A luta começou ali, no coração do templo, entre os ecos do passado e as chamas do presente. A criatura se dividia, desaparecia e surgia atrás deles. Raiko a enfrentava de frente com cortes em redemoinho, enquanto Kaien disparava flechas encantadas que atravessavam a escuridão. Maigo tentava cravar sua lança no centro das runas que se moviam pelo corpo da entidade, percebendo que talvez ali estivesse o ponto fraco. Takashi, com seus movimentos fluídos, atacava as aberturas da criatura, sentindo a espada vibrar em sua mão a cada impacto com aquela essência distorcida.
A criatura rugiu, e por um instante, suas palavras ecoaram pela câmara:
— Ele… vê… tudo.
Um silêncio caiu quando, ferida e instável, a criatura se dispersou em sombras que evaporaram no ar. O grupo ficou em silêncio, ofegante, tentando entender o que haviam enfrentado.
Maigo olhou ao redor.
— Ele sabia que viríamos. Esta criatura foi deixada aqui para nos impedir de encontrar Hayato.
Takashi assentiu.
— Mas falhou.
Kaien caminhou em direção a uma escadaria atrás do altar principal, agora visível.
— E o caminho até o monge está aberto.
O grupo desceu em silêncio, os ecos da batalha ainda vivos no ar, prontos para encontrar aquele que selou o poder de Ryuma… e que talvez pudesse ensinar como derrotá-lo.
A escadaria descia em espiral, esculpida direto na rocha. Cada degrau parecia mais antigo que o anterior, coberto por musgo e pequenas fissuras que deixavam escapar um sutil calor do interior da montanha. As tochas nas paredes se acendiam sozinhas conforme o grupo passava, revelando símbolos esquecidos pela história — serpentes enroladas em espadas, máscaras partidas ao meio, monges de olhos vendados cercando onis em correntes feitas de luz. Takashi sentia cada símbolo pulsar levemente dentro do peito, como se os ecos do passado conversassem diretamente com sua alma. Ninguém dizia uma palavra. Mesmo Raiko, geralmente sarcástico, mantinha os olhos fixos à frente, atento a qualquer movimento. Maigo ia logo atrás de Takashi, o bastão nas costas, estudando os murais com uma concentração inquieta. Já Kaien descia devagar, com uma flecha entre os dedos, pronto para atirar no menor sinal de perigo.
Quando chegaram ao fim da escadaria, encontraram uma porta de madeira antiga, sem tranca nem puxador. No centro dela, havia apenas o símbolo de um olho fechado. Takashi ergueu a mão para tocar, mas antes que seus dedos encostassem na madeira, a porta se abriu sozinha, revelando um corredor estreito, banhado por uma luz azul suave que parecia vir do próprio chão. O silêncio lá dentro era profundo. Tão absoluto que o grupo podia ouvir os batimentos de seus próprios corações. Conforme caminhavam, perceberam que estavam atravessando um santuário. Paredes cobertas por pergaminhos selados, altares com máscaras quebradas, frascos com fragmentos de onis presos em líquidos escuros. E no centro do corredor, uma enorme pintura em tinta negra mostrava um oni de três olhos sendo selado por um monge de olhos fechados — com o mesmo bastão que Maigo agora carregava.
— Esse é Hayato?
Sussurrou Raiko, admirado.
Maigo assentiu lentamente.
— Ele era o único monge do norte capaz de selar um oni maior sozinho. Dizem que, depois de Ryuma, ele jamais falou outra palavra.
Takashi parou diante da pintura. Por um instante, a memória o atingiu como uma lâmina: a noite da destruição, as chamas engolindo sua vila, os olhos de Ryuma reluzindo através da máscara, e aquela espada. A mesma que agora era selada. Ele apertou o punho.
— Se alguém pode nos dizer como derrotar Ryuma… é ele.
De repente, uma brisa gelada percorreu o corredor, apagando as luzes de trás, como se algo estivesse os empurrando adiante. Kaien olhou por cima do ombro.
— Não estamos sozinhos.
A frente deles se abriu em um salão circular. Ao centro, havia um pedestal de pedra, com uma tigela vazia e um selo brilhando embaixo. Nas paredes, sinos dourados pendiam de correntes, imóveis. No alto, um buraco na rocha deixava entrar um feixe de luz que iluminava exatamente o centro do selo.
— Isso é um ritual de invocação…
Murmurou Maigo.
— Ou de despertar.
Takashi se aproximou da tigela, e sem saber o porquê, tirou de sua bolsa um pequeno frasco com água sagrada. Uma das últimas oferendas do templo destruído de sua vila. Ele despejou a água devagar, e assim que o líquido tocou o fundo da tigela, os sinos nas paredes começaram a tilintar sozinhos, todos ao mesmo tempo, com um som suave e grave, como se o próprio templo estivesse acordando.
O selo brilhou intensamente, e um círculo de luz azul se formou no chão. No instante seguinte, o som cessou. Uma porta oculta se abriu lentamente atrás do pedestal, e uma presença antiga, densa como a própria montanha, invadiu o salão.
Maigo engoliu em seco.
— Está vindo.
Takashi firmou os pés.
— Hayato está aqui.
E do portal aberto, passos lentos ecoaram, seguidos de uma sombra que caminhava com a cabeça baixa, envolta em mantos brancos cobertos de runas antigas…
Hayato surgiu da escuridão como uma sombra viva, os pés descalços não fazendo som algum sobre o solo sagrado do templo. O capuz cobria seu rosto até o nariz, mas os olhos eram visíveis. Olhos brancos, vendados por uma faixa envelhecida. Mesmo cego, ele caminhava com precisão, como se enxergasse mais que qualquer outro ali. O grupo o observou em silêncio, sentindo a energia densa que emanava dele. Takashi deu um passo à frente, tentando conter o nervosismo em sua voz.
— Você é… Hayato?
O monge parou diante deles e assentiu lentamente. Sua voz saiu grave, como se ecoasse por dentro de uma caverna esquecida.
— Vocês carregam a presença do oni selado... e do sangue derramado. Vieram pelo que não pode ser desfeito.
— Nós precisamos saber como derrotar Ryuma
Disse Maigo, direto, sem rodeios.
Hayato virou levemente o rosto na direção de Maigo, como se o analisasse.
— Ryuma não pode ser derrotado… da forma como vocês imaginam.
Raiko franziu o cenho.
— Então há uma forma?
Hayato permaneceu em silêncio por alguns segundos, depois passou por eles lentamente, com as mãos cruzadas nas mangas.
— Há sempre um preço. E o preço para selar novamente um oni maior… é maior do que qualquer um de vocês está disposto a pagar.
— E o que você sabe sobre a espada dele?
Questionou Kaien.
— A lenda diz que você mesmo selou o oni nela.
— Eu não selei um oni
Corrigiu Hayato, virando-se para eles
— selei uma parte de mim mesmo junto com ele. Para impedir que Ryuma fosse consumido por completo. E fracassei.
Takashi deu um passo à frente.
— Você viu o que ele fez… com minha vila. Com meu povo.
Os olhos vendados de Hayato o encararam por longos segundos.
— Eu vejo isso… toda vez que fecho os olhos.
Antes que qualquer outra palavra fosse dita, uma onda de energia sinistra varreu o salão. Um uivo ecoou pelas paredes, e a criatura que haviam enfrentado na escalada. A fera grotesca de pedra viva e chamas negras, surgiu na entrada, rosnando com fúria renovada. Mas dessa vez… havia algo diferente. Seus olhos estavam mais vivos, movendo-se com inteligência cruel.
— Ele foi dominado…
Murmurou Maigo.
— Ryuma o está controlando.
Takashi e os outros se prepararam para lutar, mas Hayato ergueu a mão.
— Deixem comigo.
Sem esperar resposta, o monge soltou o manto que usava. Seu corpo, antes esguio, se transformou em segundos: os músculos expandiram, os braços aumentaram de volume como rochas moldadas por séculos, e uma aura dourada começou a vibrar ao redor de sua pele. Suas tatuagens brilharam com intensidade, e um selo antigo surgiu em seu peito, o símbolo de reforço absoluto.
A criatura rugiu e avançou. Hayato a recebeu sem armas, apenas com os punhos. No primeiro movimento, desviou de uma garra gigante, deslizou pelo chão como água e acertou um soco no queixo da besta. O impacto fez o monstro voar contra a parede do templo. A estrutura tremeu, mas resistiu.
— Ele está lutando com magia de fortalecimento…
Disse Kaien, espantado.
— Cada movimento dele é como o de um oni desperto.
— Não…
Corrigiu Maigo
— é como o de um humano que aprendeu a ser tão perigoso quanto um.
O monstro voltou a atacar com fúria, cuspindo fogo e desferindo garras envenenadas, mas Hayato o enfrentava com serenidade absoluta. Cada soco era um trovão. Cada esquiva, uma dança ancestral. Após uma sequência veloz de golpes, Hayato pulou no ar, girando sobre o próprio eixo, e desceu com um chute direto no peito da criatura. O chão rachou. A criatura gemeu… e desintegrou-se em uma nuvem de fumaça negra, selada pela força do templo.
O silêncio voltou a reinar.
Hayato respirou fundo, os músculos voltando lentamente ao normal, o corpo envolto em vapor. Sem virar-se, disse calmamente:
— Se querem derrotar Ryuma, precisam aprender mais do que apenas empunhar uma arma. Precisam aprender o que significa carregar o fardo do selo.
Ele se virou para Takashi.
— E você, Takashi… está mais ligado a ele do que imagina.
O grupo se entreolhou em silêncio, sentindo que estavam diante do início de algo muito maior. não apenas uma guerra… mas uma revelação profunda.