Os primeiros raios da manhã banhavam os degraus do antigo Templo de Suijin enquanto Takashi e seu grupo desciam em silêncio. A brisa fria trazia consigo um aroma de pinho e musgo antigo, quase como se a própria montanha observasse cada passo dos viajantes. Atrás deles, Hayato seguia com passos lentos, o manto recolocado sobre os ombros, agora um pouco mais sujo após o confronto da noite anterior. O silêncio só foi quebrado quando Kaien, arqueira sempre atenta, olhou por cima do ombro.
— Hayato, por que selar um Oni em uma espada? Não havia outro jeito?
Hayato ergueu os olhos, e por um breve instante, o peso dos anos pareceu desmoronar sobre seu semblante.
— O Oni não poderia ser destruído. Era forte demais, faminto demais… e Ryuma… Ryuma era o único capaz de conter aquele poder. Mas ele se deixou corromper. Eu… eu ajudei a selar o espírito demoníaco dentro da lâmina. Acreditei que, assim, traríamos equilíbrio. Fui um tolo.
— E qual Oni era esse?
Perguntou Maigo, firmando o bastão no chão. Hayato puxou de dentro do manto um pergaminho antigo, desdobrando-o com cuidado diante do grupo. Os olhos de todos se estreitaram diante da pintura à tinta: uma criatura envolta em chamas negras, com olhos como brasas e uma boca que parecia engolir a própria realidade.
— Akurami, o Devorador de Juramentos. Ele se alimenta da mentira, da traição, e principalmente… do fardo da culpa. Quanto mais Ryuma mata, mais forte o Oni se torna dentro da lâmina.
Takashi olhou fixamente para o pergaminho, sentindo algo se contorcer em seu peito.
— E por que não contou isso a ninguém?
Indagou Raiko, cerrando os punhos. Hayato suspirou.
— Porque todos que sabem... morrem. Eu fugi, me escondi neste templo por anos, esperando que um dia… alguém digno viesse buscar a verdade. E agora vocês sabem.
Enquanto seguiam a trilha estreita pela encosta da montanha, Hayato continuou explicando em voz baixa, mas firme.
— Existem registros, escritos pelos antigos monges, que falam sobre um guerreiro de olhos marcados pela dor. Aquele que herdaria o espírito da fênix selada e confrontaria o Devorador de Juramentos.
Maigo olhou para Takashi, como se já soubesse a resposta.
— E essa fênix… seria você, Takashi?
O silêncio de Takashi foi resposta suficiente. Seus olhos baixos evitavam o olhar dos companheiros.
— Eu não sei. Mas desde criança, desde aquela noite, eu sinto essa chama dentro de mim. Algo que arde, que grita… e que não me deixa esquecer.
Do outro lado do continente, no coração escuro do castelo de Ryuma, o rei guerreiro caminhava diante de um altar coberto por pergaminhos antigos e brasas vermelhas. Ele repousava a mão sobre sua espada cravada no chão de pedra. Seu corvo, aninhado sobre um pedestal de ferro, grasnou duas vezes.
— Eles sabem. Estão mais perto do que deviam
Murmurou Ryuma. Ele ergueu a cabeça, sentindo o calor da lâmina se intensificar.
— Malrik!
A voz ecoou pelos corredores. Em segundos, o jovem entrou na sala, olhos atentos.
— Sim, pai.
Ryuma virou-se lentamente, os olhos brilhando em vermelho.
— Descubra onde estão. Use sua águia. Vasculhe cada sopro de vento, cada trilha abandonada. Se encontrarem Hayato, quero saber. Pessoalmente.
A cena retorna à trilha, onde o grupo finalmente chega ao sopé da montanha, a vegetação se abrindo diante deles como um tapete esmeralda. Hayato para ao lado de Takashi.
— Lembre-se, garoto. Ryuma não é apenas seu inimigo… ele é o espelho de tudo que você pode se tornar, se a dor te consumir.
Takashi assentiu, engolindo em seco.
— Eu vou detê-lo.
E antes que mais palavras fossem ditas, o grupo seguiu em direção à próxima vila, os olhos voltados para o horizonte, sem perceber que nas nuvens acima, uma sombra alada já observava seus passos com olhos dourados. O destino agora tinha pressa.
Os passos pela floresta que se estendia aos pés do Monte Suijin eram silenciosos, mas o ambiente não devolvia a mesma quietude. As árvores antigas se fechavam ao redor como sentinelas, e cada folha que caía parecia acompanhar o grupo com olhos invisíveis. Takashi caminhava à frente, o pergaminho de Hayato ainda firme em suas mãos, os olhos fixos no símbolo da fênix desenhada em traços vermelhos. Sentia seu peito queimar. Não de dor física, mas de algo mais profundo, como se cada palavra lida ali dentro tivesse despertado uma memória adormecida. Atrás dele, Kaien mantinha os olhos em movimento, arqueando as sobrancelhas sempre que o vento mudava de direção.
— Esse silêncio me incomoda
Sussurrou.
— Nem um som de pássaro. Nem o canto da água. Só o som dos nossos passos.
Raiko assentiu, tocando a empunhadura de uma de suas katanas.
— É como se algo estivesse nos seguindo... mas com medo de se mostrar.
Maigo andava com os dedos firmes ao redor do bastão, que em sua forma comum parecia pouco mais que um cajado de madeira entalhada. Mas ele sabia que o que havia aprendido com Hayato não podia ser ignorado: tudo estava conectado, e aquele caminho que percorriam não era apenas uma trilha física.
— O templo guardava mais do que verdades
Disse ele, num tom baixo.
— Sinto como se tivesse aberto algo dentro de mim.
Hayato, que vinha logo atrás, ouvia em silêncio, como um mestre que não mais precisava interferir. Em sua expressão calma, havia também preocupação.
— A espada de Ryuma não é apenas uma arma
Falou de súbito.
— É uma prisão. E o selo… está falhando. A energia do Oni começa a vazar. Vocês precisam agir antes que ele se liberte por completo.
— E se ele já estiver livre?
Perguntou Takashi, sem olhar para trás.
— Se o que enfrentamos não foi nem o começo?
Hayato não respondeu de imediato.
— Se ele já estiver livre… o mundo como conhecemos irá ruir. O espírito de Akurami consome tudo ao redor. Cidades serão engolidas por caos e traição. Irmãos contra irmãos. Amigos contra amigos.
As palavras ecoaram como um mau presságio, e nem mesmo o canto distante de um corvo conseguiu romper o peso do silêncio que se abateu sobre o grupo.
— Então vamos impedi-lo
Disse Raiko.
— Mas você precisa nos dizer tudo, Hayato. Desde o início. Por que Ryuma aceitou portar essa espada? O que o levou a isso?
O velho monge respirou fundo, encarando os galhos retorcidos à sua frente.
— Ryuma… era meu irmão de alma. Um guerreiro nobre, justo. Mas ele perdeu tudo. E na escuridão do luto, aceitou o poder como única saída.
Mais adiante, a trilha se abria para um antigo santuário em ruínas, escondido por trepadeiras e pedra. O local parecia esquecido, mas Hayato parou diante dele.
— Aqui está guardado o segundo registro. Escrito pelos monges que testemunharam a cerimônia de selamento.
Ele empurrou a pedra do altar central, revelando uma abertura onde repousava outro pergaminho lacrado. Ao abri-lo, a tinta desbotada revelou símbolos que pulsavam com uma leve luz violeta. Takashi, ao olhar aquilo, sentiu uma pontada atrás dos olhos. Visões breves tomaram sua mente: Ryuma de joelhos, gritando ao céu, com a espada cravada à sua frente… e o próprio Takashi, mais velho, vestido com a armadura azul, duelando com uma criatura envolta em trevas.
— Vocês viram isso?
Perguntou, ofegante. Maigo, Kaien e Raiko o encararam.
— Não. O que viu?
Takashi olhou para o pergaminho, que agora parecia inerte novamente.
— Uma profecia… eu acho.
Ao longe, em meio às nuvens, Malrik observava de cima, fundido à visão de sua águia. Seus olhos brilharam quando viu Hayato junto ao grupo.
— Finalmente…
Murmurou. Seu corvo grasnou de volta no castelo, e Ryuma se ergueu do trono de pedra.
— Mande as sombras. E preparem o retorno do devorador. Eles não sairão vivos da próxima vila.
O grupo deixa o santuário, cada um carregando mais perguntas do que respostas, mas com a certeza de que o tempo estava contra eles. A estrada seguia adiante… e com ela, o peso da profecia que começava a se cumprir.
Enquanto o restante do grupo seguia mais à frente, descendo a trilha sinuosa que deixava o templo para trás, Hayato permaneceu imóvel por alguns instantes. Seus olhos repousavam sobre Maigo, que vinha mais atrás, o bastão preso às costas e a expressão distante. O velho monge esperou até que o som dos passos dos outros fosse engolido pela mata antes de se aproximar em silêncio. A luz que filtrava pelas árvores os envolvia em um tom dourado, e por um breve momento parecia que o tempo havia parado apenas para aquela conversa.
— Eles sabem?
Perguntou Hayato, sem rodeios, a voz baixa como um sussurro entre folhas.
Maigo parou, respirando fundo. Os olhos semicerrados como se carregassem um peso que não queria dividir. O silêncio entre os dois durou o tempo exato de um sopro do vento.
— Não. É melhor assim
Respondeu, virando-se para encarar o caminho adiante, evitando o olhar do monge.
Hayato manteve-se calmo, mas havia uma tensão sutil em seu semblante sereno. Seus dedos entrelaçaram-se atrás das costas, como alguém que medita antes da tempestade.
— Espero que esteja fazendo a coisa certa
Murmurou, quase como um lamento.
Maigo, ainda de costas, deixou escapar um sorriso triste, que logo se desfez.
— Sendo honesto... eu também.
Por um instante, ficaram ali. Dois mundos divididos por segredos e dúvidas. Mas o tempo apertava. Sem mais palavras, ambos retomaram o passo e se juntaram ao grupo, cada um carregando dentro de si o que não poderia ser dito em voz alta. O caminho adiante era incerto... e o que viria a seguir, mais ainda.